domingo, 31 de agosto de 2008


REVISTA USP DOSSIER SOBRE A REVOLUÇÃO FRANCESA.

DIDEROT, PENÉLOPE DA REVOLUÇÃO

Roberto Romano



"Leio agora um livro de Diderot Estou maravilhado com o talento extraordinário deste homem. Quanto conhecimento e força discursiva!" (Eckermann, Diálogos com Goethe)

"A mão se move a mesa vira verdade é o mesmo que mentira ficção fiação tesoura e lira" (Haroldo de Campos, Galáxias)

"As parcas fiam ávidas a dúvida já lívida..." (Nelson Ascher, Ponta da língua)

Metamorfose. Esta foi a palavra usada por Goethe para concluir as referências de seu interlocutor sobre Diderot. O filósofo seria um avatar da literatura, brilho anunciado já no tempo de Luis XIV, incandescendo com D'Alembert, Beaumarchais, e outros semelhantes. Proteu sublime, o esprit adquire a forma da alma, asas de borboleta livre e multicolorida. Definição perfeita da escrita e dos interesses de Diderot pelo mundo cultural e político.

De Goethe até hoje, o juízo sobre o arquiteto da Enciclopédia varia, mas nota sempre o aspecto ondulatório de sua prosa, repousando sobre tudo e todos, no mundo do saber. Para não estacionar em nada, envolvida no próprio pneuma, nos turbilhões do vento, a pena de Diderot rompeu muitas amarras. "Dispersé, superficiel, erratique, contradictoire, répétitif et rêveur, ce logos spermatikos sème à tous les vents", diz, sobre Diderot, Elisabeth de Fontenay.


Comparado a Montaigne (1) com freqüência, suspeito de plágio filosófico - apropriação direta dos trabalhos de Francis Bacon (2) - visto de forma prudente, por seu relacionamento direto com Catarina II (3), a obra de Diderot tem sido esquadrinhada nos mínimos detalhes históricos, psicológicos, metafísicos, médicos, científicos. Jean Thomas resume os componentes do esprit que vela em Diderot: recusa da metafísica, da teologia, das religiões positivas. Ademais, entusiasmo pela ciência, amor do bem público, moral fundamentada pela natureza, tolerância e cosmopolitismo. Finalmente, abandono das regras, recurso a novas formas literárias, sempre que os gêneros tradicionais eram insuficientes, amor pelas artes e técnicas ao mesmo tempo. O retrato é o inverso, luminoso, do lacrimejante Rousseau.

Os críticos mais pérfidos - que surgiram quando ele vivia - projetaram, dele, a imagem de um sofista eclético, não rigoroso. Na história da filosofia, o jeito comumente usado pelos medíocres da cátedra é sempre este. O que se visava, no caso em questão, era colocar "toute son oeuvre sous le triple signe de la spontaneité et de l'incohérence, autrement dit de l'improvisation" (4). Melhor destino não lhe reservaram os entusiastas: ampliando sua figura romanticamente (textos corrosivos como o "fogo de um vulcão", e outros símiles psicológicos para descrever sua arte) "ils peignent et interprètent Diderot avec les traits épais de sa légende" (5).

O fervor analítico e acadêmico dirigiu-se, sobretudo, rumo à discussão estética, moral, científica, quando se trata deste filósofo em novos tempos. Escasseiam livros e artigos que tematizem sua política, ligando-a ao clima espiritual que resultou em 1789 (6). Na esteira de Sainte-Beuve, discute-se a importância social de Diderot, não tanto pelo que ele pensou, mas por sua forma de agir. Sendo dos primeiros escritores a se promover na escala da "nova magistratura", a da pena - que no século XIX conduzirá, na expressão de Paul Benichou, ao Sacre de l'ecrivain deixando para trás o ideal aristocrático do "celui qui a des lettres", trocando-o pelo "celui qui vit des lettres" (J. Thomas), Diderot foi posto na pele dos jornalistas, obrigados a entregar "leur copie quotidienne ou hebdomadaire: il représente da démocratisation, l'industrialisation de l'art" (R. Fayolle).

Diderot jornalista... Prato feito para as virgens eternamente estéreis da ciência. Editor da Enciclopédia, proxeneta bem-sucedido das letras: a eficácia violenta de sua ação abafaria, nele, veleidades às profundezas especulativas. Comparada à de Jean-Jacques, sua obra seria instantânea - efêmera - e superficial. Textos como O sobrinho de Rameau ilustrariam a condição ressentida de seus colegas menos afortunados (7). Autores "dialéticos" chegam a recolher Diderot nas malhas do "materialismo vulgar" do século XVIII. Leituras marxistas veriam nele, como ironiza E. Fontenay, ou o superado metafísico, ou apenas o João Batista dialético: "Diderot ne mérite ni cette indignité ni cet excès d'honneur". Certo, Marx, ao enviar ao "segundo violino" uma cópia de O sobrinho de Rameau, escreve: "A obra-prima única vai, novamente, te proporcionar prazer" (8). Logo, logo, os materialistas apresentaram a "obra-prima" como triste catecumenato a O Capital...

O próprio Diderot armou a cilada. Ela apanha os leitores que passam ao largo da complexidade existente na pele, na superfície. Acostumados por Rousseau, e por seus êmulos românticos, ao charlatanismo das "profundezas" (9), os hermeneutas desse tipo imaginam que um texto é só... um texto, ignorando nele o resultado magnífico de todo o processo vital e intelectivo.

A face, a máscara: ícones da própria cultura. Imagem arlequinal cheia de formas descontínuas, multicoloridas. Diderot revela a sutileza do gênio, ao mostrar-se uno e múltiplo, fugindo da "autêntica" subjetividade, armadilha em que tombará a maior parte dos românticas. Diz ele a Sophie Volland: "J'avais en une journée cent physionomies diverses, selon la chose dont j'étais affecté". Como auto-representação do escritor, trata-se de um bom antecedente para Fernando Pessoa...

Deixemos de lado todo o saber médico, suposto na teoria das artes e da escrita de Diderot (10). Mesmo sem esta passagem - ela relativizaria a pretensa ingenuidade e diletantismo do autor - podemos lembrar a meticulosa técnica expositiva que, justo por ser polifacetada, polifônica, abarca com elegância e brilho problemas lógicos e teóricos à altura da "corrente genial" (Hegel) que define a filosofia.

Evidentemente, para leituras míopes, que só percebem "rigor" no agenciamento sistemático e gelado de termos unívocos, produzidos por mítica subjetividade una, Diderot deixa muito a desejar. Vale para ele o dito por Heidegger sobre Platão, também recordando a filosofia medieval: "A possibilidade de um sistema no saber, a vontade de sistema (...) pertencem às características essenciais dos tempos modernos". Logo, continua Heidegger, "o pensamento e a certeza nele constituída, tornam-se o metron e o critério da verdade". Destes enunciados, deduz Alain Boutot: "A filosofia platônica não é sistemática. Nem por isto, resume-se a uma reunião desconexa de Diálogos sobre assuntos diferentes, tendo poucos vínculos entre si" (11) Quem identifica "rigor" com um Eu

transcendental (mesmo que este "Eu" seja um "Nós", como em Hegel) ordenando sistematicamente o mundo, nada reconhecerá em Diderot, filosoficamente.

Claro, semelhante "leitor" pouco aprenderá com Platão, Montaigne e outros, inclusive posteriores a Diderot, como Nietzsche: entre as infinitas variações do universo, e a identidade feliz do ego classificatório, eles já escolheram. Mas sejamos ponderados. Diderot não provoca em demasia o possuído pela vontade de sistema? Tal exegeta, ouvinte, seja lá o que for, se acomoda bem com a técnica expositiva cartesiana, o relato: "Mais ne proposant cet écrit que comme une histoire, ou, si vous l'aimez mieux, que comme une fable...". Descartes era menos apaixonado pelo sistema do que os atuais cartesianos. Marx também não era marxista.

Como enuncia, com justeza, Alain Cahné, Pierre: "Quatro vezes, e sempre num gênero expositivo diferente, Descartes buscou redigir as grandes etapas de seu itinerário intelectual (...) esforçando-se por encontrar o estilo tusto, capaz de comover, convencendo, ao mesmo tempo o sábio erudito e o homem do mundo" (12). Há uma enorme distância entre este Descartes, e o pensador que opera "segundo a ordem das razões" suportando a escrita literária apenas como pobre substituto das matemáticas. A herança cartesiana é bem recolhida, nos seus dois lados, num Dicionário que explica, no verbete "Cartesiano": "Adj. derivado de cartesianismo. Funciona como sinônimo de racional, claro, lógico, rigoroso, sólido (...) Pejorativamente: sem fantasia, sem imaginação: ... cartesianos como os bois (M. Aymé, Le confort intellectuel)"(13).

O "leitor" mencionado aceitaria, também com algum esforço, a proposta expositiva de Espinosa: "A primeira significação de verdadeiro e falso parece ter origem nos relatos; diz-se verdadeira uma narração quando o fato dito teria acontecido realmente; falso, quando ele nunca se deu. (...) As idéias indicam apenas relatos, ou histórias da natureza no espírito. Daí, chegou-se à designação, por metáfora, das coisas inertes; quando dizemos que o ouro é verdadeiro, ou falso, é como se o ouro apresentado contasse algo sobre si mesmo, o que está, ou não, presente nele" (14).

Tentativas várias de contar uma história, dando-lhe começo, meio, fim. A partir daí, os "rigorosos" esquecem o traço metafórico de seu discurso, constroem o sistema em pretensas bases "unívocas". Descartes, Espinosa, ainda enunciam o "como se", para bem marcar a percepção do problemático relacionamento entre filosofemas e Ser. No fundo, domina em todos os sistemáticos, certo Aristóteles, o descrito por Elias Canetti: "Nos espantamos com a enorme semelhança entre Aristóteles e a incoerência dos procedimentos científicos modernos, sua tecnicidade glacial, o abuso de sua especialização (...) Esta espécie de pesquisa exclui o entusiasmo e a transformação do homem" (15).

Afinal, na linha dessa lógica, o que é "saber"? A escrita de Canetti fere, na sua fenomenologia: "um engenhoso sistema de caixinhas que arrumamos no fundo de nós mesmos, será preenchido, como se tratássemos de espelhos em mesmo número, por tudo o que a curiosidade nos designar. Basta descobrir um objeto qualquer para jogá-lo lá dentro, ele permanece mudo e morto no fundo da caixa" (16). O sistemático simplesmente coleciona. Ele transforma as coisas vivas em etiquetas. Não por acaso, no relato fantástico cujo sujeito é uma nulidade ontológica, O Capital, o autor frisa, logo no começo de sua fábula: "a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista, aparece na 'monstruosa coleção de mercadorias' (ungeheure Warensammlung)". O romantismo surge, aqui, enquanto recusa de uma fria lógica que reduz o ente humano a algo inerte.


O sistemático, como Aristóteles, "é pensador sem sonho (oposto a Platão), ele exibe desprezo pelo mito, e quando os poetas não lhe servem, não os aprecia. Ainda hoje encontramos gente que só sabe aproximar-se de um assunto, aplicando-lhe compartimentos (...) e imagina que, nas gavetas e caixas de Aristóteles, as coisas apresentam-se com maior clareza, quando, na realidade, elas estão, ali, perfeitamente mortas" (17).

Um leitor assim, "rigoroso", não pode ver "filosofia", coisa séria e fixa, num escritor que ousa falar: "J'abandonne mon esprit à tout son libertinage. Je le laisse maître de suivre la première idée sage ou folle qui se présente, comme on voit dans l'allé de Foy nos jeunes dissolus marcher sur les pas d'une courtisane (...) Mes pensées, ce sont mes catins". Hegel foi melhor leitor das Luzes, e desta filosofia "dissoluta" (embora ainda não, infelizmente para ele, científica): ao contrário da leve atitude de Hume, a maneira francesa de pensar é "mais viva, dinâmica, engenhosa. Ou melhor, ela é o próprio engenho. Ela é o conceito absoluto, voltado contra todo o reino das representações subsistentes e dos pensamentos fixos. Ela abala tudo o que é fixo, atribuindo-se a consciência da pura liberdade" (18).

Burguesa, certamente, semelhante filosofia é tudo, menos filistina. Pensa rápido e lépido. Volteia o mundo inteiro, não se restringe a um só país, como certa dialética pesadona posterior. Assim dirá o Manifesto comunista, repetindo Hegel: com ela, "Alle festen, eingerosteten Verhältnisse mit ihrem Gefolge von altehrwürdigen Vorstellungen und Anschauungen werden aufgelöst..." (19). A dissolução, aqui, é bem mais alegre, e simultaneamente triste, do que faz sugerir certo pós-moderno em voga.


Relato cartesiano, fixado em "racionalismo". Narração de Espinosa, traduzida para o "fatalismo panteísta". Semelhantes astúcias tornam-se difíceis, no caso de Diderot. Sua prosa, indica Jauss (20), só parece mover a forma do relato, "para impedir a narração de atinar com o fim; esta, de fato, é desviada incessantemente rumo a um diálogo que se levanta contra a ordem, pela qual o discurso narrativo pretendia remediar a contingência; e este diálogo reabre um horizonte de problemas novos, questões suspendidas". Contra a imposição violenta do Tratado, Diderot opera uma revolução na forma expositiva da filosofia, atacando os significantes para dissolver velhos significados. Admirador de Platão, ele efetivou um dos mais graves ataques ao platonismo ocidental, antes de Nietzsche.

Em Diderot, um pesquisador correto como Rolland Galle enxerga a dança das formas, no seu propósito antiautoritário. Com a reinvenção do diálogo, se restringe "l'autorité préponderante du maître". Com isto, ele "octroie des droits égaux à la voix de l'autre". Mais diretamente: "la mise en dialogue progressive de la doctrine des Lumières a non seulement renouvelé le modèle antique du dialogue platonicien mais elle en constitue aussi un dépassement, car elle met en question la notion de vérité telle qu'elle est définie par l'ontologie classique" (21).

A noção de polifonia, para descrever o trabalho de Diderot, foi retirada de M. Bakhtine. Este a utiliza para pensar a sátira menipéia, herdeira do diálogo socrático, aberto ao outro. Platão, no lado oposto, afirmaria, de modo monológico, uma verdade feita, estabelecida anteriormente e presente para "ser enunciada no diálogo magistral". Contra a tirânica certeza dogmática, Diderot aponta, no elogio de Sócrates, a dificuldade de sua própria filosofia e escrita: "toute sa dialectique se résout en incertitudes". O "eu" filosofante se dissolve nos pensamentos do sobrinho de Rameau, resolve a questão apresentada por "ele", na forma aparente de respostas fixas. Mas estas apenas dinamizam a violência da dissolução de ambos, filósofo e "vagabundo", na linguagem.

Inevitável, quando se percorre os meandros da escrita de Diderot, o encontro com o termo de Cícero para designar a inteligência. Também é fatal perceber a distinção, também ciceroniana, entre ingenium e técnica. No romano, um estudante de retórica dotado de ingenium (Wit, no inglês, respondendo à noção de Witz, no alemão que, em leituras incautas assume o significado restrito de "humor") dominará rápido as regras, ultrapassando-as. O aluno parcamente dotado aprenderá, penosamente, formas estabelecidas, sem jamais inventar outras. Será, no máximo, um erudito conservador de idéias "sólidas", fixas.

Mutação epistêmica: ao contrário dessa tradição erudita, "le nouveau dialogue socratique conçu par Diderot ne repose plus sur les garants métaphysiques de l'anamnèse (...) il rénouvelle les caractéristiques de la dispute éristique, d'une méthode qui peut aboutir à l'écrasement du contradicteur et de ses opinions; il ne se pose plus comme un entretien entre amis où l'attaque ne vise que le non-savoir, jamais la personne de l'autre" (22). É preciso esquecer, dirá Nietzsche. Quebre-se a tradição cristã que divide o erro e o errado, forma sutil de enlear o último nas malhas da "verdade absoluta", a que acedem só os padres, laicos ou religiosos.

Se recusa o Uno no plano do saber, Diderot também o repele na convivência. Nele assistimos à erotização do conhecimento, diferente da proposta no Banquete. Ali, a pedagogia reclamava que o aluno amasse muitos jovens belos, para melhor separar-se do amor de um só, chegando a pura idéia da beleza. Mas, aduz E. Fontenay, "le multiple et le divers ne sont pas, chez Diderot, ruses de l'Un, ils sont prisés pour eux-mêmes, en vertu d'un don juanisme de l'esprit que constitue ie peché mortel du philosophe" (23). A escrita do autor subverte o estabelecido em filosofia, separa a verdade "des procédures qui ont été imposées par la tradition comme chemin obligé vers elle".

Diderot visa o veraz, mas fareja suas astúcias. Aprendeu com Montaigne e Bacon a ser meticuloso, dando à palavra o peso de sua origem helênica: metis. Rompe matreiramente com os dogmáticos, destruindo os sinais que lhes servem como esteios. Contra o ascetismo estéril e "rigoroso", retorna à fonte dos conceitos, potência de engendrar entes novos. O vínculo amoroso junta-se, na sua imagética, ao prender a vida com todos os dedos.

"Mes pensées, ce sont mes catins". O leitor desatento aos significantes - e são tantos - mal entrevê a revolução metafórica que modifica a prosa política moderna, naquela frase. Vontade e desejo entram na elaboração discursiva do filósofo. Não mais para serem submetidos, como em Kant e na antiga tradição teórica cristianizada, mas como alvo e meio expressivo. Sublinha ainda Fontenay: "l'esprit ne conçoit plus comme une femme vierge qui aurait été visitée, appélée, interpellée par une transcendence, mais (...) il se laisse renverser, comme une fille, par n'importe qui, n'importe où et n'emporte quand (...) Penser, c'est savoir faire alterner le rôle du pro xenète et celui de la prostituée. Au diable les pères et les mères" (24).

Naturalmente, as piedosas e sadias cabeças acadêmicas escapam, horrorizadas, desta orgia. Elas concebem a imaculada verdade, sem apegos carnais, desejos. Rigor severo as define. No alemão, Strenge possui raiz comum com a corda (Strang). O intelecto pode se reduzir à corda que giramos dando-lhe rigidez, tornando-a sólida. Mas o espírito rápido, vivo, rompe o severo (das Strenge) para se libertar, justo para exercer o rigor real, quando ele é necessário. Ninguém engendra algo, sem o renascentista relaxatio animi (Jolles).

Para muito escolar, Diderot não é filósofo menos ainda teórico político. É previsível: "comparado ao gênio, ao ser que engendra ou procria (...) o sábio médio apresenta sempre algo comparável à solteirona: como ela, ignora estas duas funções supremas do ser humano" (25). O donjuanismo de Diderot escandaliza o pensamento científico. Mas... "supondo que a verdade seja mulher, não poderemos suspeitar que todos os filósofos - dogmáticos - quase nada entendiam das mulheres e que a espantosa seriedade, a indelicada insistência com as quais eles se aproximaram da verdade foram só esforços inúteis e pouco apropriados para conseguir, justamente, os favores da mulher?" (26).

Vejamos dois efeitos filosóficos e discursivos de nosso autor, em pensadores inquestionavelmente postos como teóricos políticos. O sobrinho de Rameau é um lugar comum a Marx e a Hegel. Na Fenomenologia, sabe-se muito bem, o espírito burguês é descrito, por seu intermédio, como estilhaçamento essencial. Ali, todos os elementos sólidos se dissolvem, numa perversão universalizada.

Citemos a passagem "bem" conhecida. Na visão moderna, "o Bem e o Mal, ou a consciência do Bem e do Mal, nobre e vil, não possuem verdade; todos estes momentos se pervertem uns nos outros e cada um deles é o oposto de si mesmo". Este é o reino da "cultura pura". Nele, o espelhamento rege os atos de indivíduos e grupos. Todos os partícipes da experiência social se "integram" de modo perverso: "exercem um para o outro a justiça universal; cada um tornou-se estranho a si, em si mesmo, enquanto se insinua em seu oposto, e o perverte do mesmo jeito".

O "todo" cultural, em que os indivíduos se integram e a "união dos extremos absolutamente separados (Getrennten); este espírito é o seu meio termo que chega à existência na efetividade livre destes extremos privados de si mesmos. Sua existência é o falar (Sprechen) universal e o juízo dilacerante (zerreissende Urteilen), em cuja luz se dissolvem (auflösen) todos estes momentos que devem valer como essências e membros efetivos do todo; um tal juízo é o jogo dissolvente (auflösende Spiel) que dissolve a si mesmo (sich auflösen)".

O filósofo "bom" e simples do Neveu, que deseja "moralizar" o social perverso, dele extraindo a violência, a dominação astuciosa de uns indivíduos pelos outros, fica aquém deste mundo. Sua crítica não o atinge. "Se a consciência simples reclama a dissolução (Auflösung) total deste mundo perverso, ela não pode pedir ao indivíduo que o abandone, pois o próprio Diógenes, mesmo em seu tonel, é por ele condicionado...". Sentimento do hic et nunc, rompendo com toda transcendência, harmonia social ou cósmica. Nada de otimismo face à natureza, sobretudo a humana: "Le point important est que vous et moi nous soyons, et que nous soyons vous et moi. Que tout aille d'ailleurs comme il pourra. Le meilleur ordre des choses, à mon avis, est celui ou j'en devais être; et foin du plus parfait des mondes, si je n'en sui pas" (Le neveu de Rameau).

Na irreverência, a especulação metafísica atinge seu grau zero: é abandonada. Ser e nulidade dissolvem-se no dever-ser, no devir. O mundo onde eu deveria estar é a "melhor" ordem, ou seja, onde "vous" e "moi" estamos ao mesmo tempo, em permanente equivalência. A inversão da frase, espelhamento, indica sua subversão: "foin du plus parfait des mondes". Trata se de alterar o mundo, não de interpretá-lo escolarmente. Na frase retorcida, perfeito isomorfismo, na sua transformação em dois isocola, temos o fim "de tudo o que é fixo", para lembrar o juízo hegeliano sobre a filosofia francesa.

Na frase mencionada, "vous et mois nous soyons, et que nous soyons vous et mois", o "ser" corre como num jogo de xadrez, dissolvendo e resolvendo posições contraditórias. Diderot leva ao máximo, abalando-a, a espacialização do pensamento, interrogada por Heidegger em Ser e Tempo. Na história posterior da filosofia, tensão semelhante, só nas críticas de Feuerbach a Hegel, e no elogio do primeiro sobre o espaço que permite a convivência. Embebido pela leitura de Leibniz, e preso ao romantismo, Feuerbach perdeu o sentido do negativo, temporal por excelência, que define a perspectiva francesa das Luzes. "Was daher in den französischen philosophischen Schriften, die in dieser Rücksicht wichtig sind, bewundernswürdig ist, ist diese erstaunliche Energie und Kraft des Begriffes gegen die Existenz, gegen den Glauben, gegen alle Macht der Autorität seit Jahrtausenden" (27).

Vale para o enunciado de Diderot, os isocola acima, a mesma enunciação de J. Starobinski nos outros quiasmas sobre o "dever": "la justification joue avec la polysémie du verbe, devoir, lequel peut être pris dans le sens de l'obligation morale ou dans celui de la nécessité physique" (28). Em todo caso, rompe-se com o metafísico. Dissolução perpétua do todo, na qual desaparece qualquer veleidade da subsistência dos seres, "jogo que dissolve a si mesmo", diz Hegel. "Changez le tout, vous me changez nécessairement; mais le tout change sans cesse (...) Tous les êtres circulent les uns dans les autres, par conséquent toutes les espèces... tout est un flux perpétuel (...) Et vous parlez d'individus, pauvres philosophes: laissez là vos individus; repondez-moi. Y a-t-il un atome en nature rigoureusement semblable à un autre atome?" (Rêve de D'Alembert). A leitura de Hegel, pois, é fiel e certeira, quando fala da potência conceitual desta filosofia. Ocorre, no fim da citação acima, algo ligado à técnica retórica que se volta contra o otimismo, a harmonia social.

Quando define a existência de "vous" e de "moi" por meio de um quiasma, a equivalência de ambos os termos é absoluta. Logo, o jogo especular entre "vous" e "moi" retira qualquer pretensão à diferença entre um e outro. Diderot retorce o argumento imaginado em Leibniz, para definir o princípio de individuação. Contra a figura das folhas, nenhuma igual às outras, lança o contra-ataque do atomismo materialista: "Y a-t-il un atome en nature rigoureusement semblable à un autre atome?". A qualidade pretendida, "o melhor" dos mundos, some. Toda equivalência é apenas discursiva, frásica. O salto para qualquer raciocínio ontológico é sonho. Mas podemos atingir conexões verdadeiras, ao contrário do entendimento que separou a moral, o saber, a estética. "Bâillez donc, messieurs; bâillez à votre aise, ne vous gênez pas. L'empire de la nature et de ma trinité, contre laquelle les portes de l'enfer ne prévraudront jamais: le vrai, qui est le père et qui engendre, le bon qui est le fils, d'où procède de beau qui est le Saint-Esprit, s'établit tout douce ment..." (Le neveu de Rameau).

Ocorre, entretanto, que as conexões verdadeiras, unidas à ética e à estética, formam o quadro da política moderna. Bacon admira em Maquiavel sobretudo o simulado poder que, agindo, parece inativo. Divina providência laica. "Et ces jansénistes ont beau dire, cette méthode politique qui marche à son but, sans bruit, sans effusion de sang, sans martyr, sans un toupet de cheveux arraché, me semble la meilleure. Moi. - Il y a raison, à peu près, dans tout ce que vous venez de dire. Lui. - De la raison? Tant mieux. Je veux que le diable m'importe si j'y tâche". A seqüência vai num crescendo de negações: sans. Ela termina, não de forma "científica", mas exatamente no plano da doxa: "parece". Em semelhante opinião, o "eu" tangencia a racionalidade, mas reforça o campo opinativo: "à peu près". A astúcia da razão, neste ponto, perverte a hipótese, ela pode ser, ou não ser. Os jesuítas que empregam este "método" de imposição, os jansenistas que o denunciam permanecem no campo da fala, explícita ou implícita ("ont beau dire").

Mas tanto dizer não suporta a eficácia prática: "un garçon charbonnier parlera toujours mieux de son métier que toute une académie". Para bom entendimento, uma palavra basta. Diderot filósofo estetizante, mas cuja política é quase nula? Dirijam-se, por gentileza, senhores, aos primeiros parágrafos do Tratado Político espinosano, para verificar o que se diz da política. Espinosa lembra que os verbosos teóricos constroem uma Sátira. Diderot lança a sátira contra os filósofos.

No mundo, político sobretudo, alguns "acreditam" e são enganados. Outros enganam. Mas alguns sabem-se ilusionistas e burlados. Estes são os homens cuja consciência é dilacerada. Eles percebem o poder como um rápido jogo dissolvente, absoluto. "Dans la nature, toutes les espèces se dévorent; toutes les conditions se dévorent dans la société. Nous faisons justice les uns des autres sans que la loi s'en mêle". Novamente a negação dos fundamentos metafísicos da política ocidental: entre a physis e a polis, inexiste ruptura. A distinção aristotélica, entre o natural e o normativo, se evapora. A Fortuna reina, soberana. O domínio opera por choques, beliscões de cada "indivíduo" sobre os demais: as abelhas humanas agem assim. "Celle-ci pincera la suivante: qu'il s'excitera (...); que le tout s'agitera, se remuera, changera de situation et de forme; qu'il s'elevera du bruit, de petits cris..." (Rêve de D'Alembert).

Na sociedade política, como no estado de natureza, cada um devora o outro, ou obelisca, "car les sots et les fous s'amusent les uns des autres; ils se cherchent, ils s'attirent". Voltemos a Hegel: "a consciência dilacerada, conhecendo seu próprio dilaceramento, ao exprimi-lo se transforma no riso irônico sobre o existir, como sobre a confusão do todo, e sobre si mesma: ela é, ao mesmo tempo, o eco deste barulho que nela se escuta. Ela é a tola vaidade que ouve a si mesma (...) a reflexão redobrada do mundo real (realen Welt) em si mesmo (...) Ela é o si (Selbst) que é para si, que sabe julgar tudo, e parolar sobre tudo, sabendo exprimir de um jeito espirituoso, nas suas contradições, as essências sólidas da efetividade, como as determinações sólidas postas pelo juízo; esta contradição é sua verdade".

Quem possui consciência do mundo, tal como ele é, sofre. E faz sofrer. Surge para si mesmo como um turbilhão (Wirbel) dissolvente (auflösenden) que reproduz a si mesmo. O próprio mundo, nesta sua consciência "tem, sobre si mesmo, o sentimento mais doloroso (schmerzlichste Gefühl) e o olhar mais verdadeiro - o sentimento de ser a dissolução (Auflösung) de tudo o que se consolida (sich Befestigen), de ser dilacerado através de todos os momentos de sua existência, fragmentado (Zerschlagen) em todos os seus ossos. Ele é também a linguagem deste sentimento e o discurso engenhoso (geistereiche Rede) que julga lodos os lados de sua condição...".

Ao contrário dos leitores rotinizados, Hegel ampliou o diálogo com a escrita e a corrosiva fala diderotianas. A linguagem da dissolução, a dissolução da linguagem, voltam-se contra a consciência, como seu produto. Por mais que o trabalho de Diderot tenha sido "suprimido e conservado" por Hegel, sua força corrosiva bastante pacificada, o autor da Fenomenologia do Espírito usou tal prosa para compreender o fenômeno político máximo da modernidade burguesa: "Dans le contexte hégélien, les métaphores insolentes du neveu servent à exprimer la double signification de 1789 pour l'histoire universelle: ce tournant est dû, d'un côté, à la réalisation pacifique de l'intellection pure qui sape l'empire de l'erreur(..) et, de l'autre, à une révolution politique qui est une lutte violente avec l'opposé comme tel (...)"(29).

Trabalho astucioso de sapar os fundamentos da escrita, e do efetivo, a operação de Diderot esteve presente nos eventos revolucionários, mas submersa pelas declarações dos seguidores de Rousseau, Danton, e de outros. Bem o viu Hegel. Na Fenomenologia do Espírito, o capítulo que trata de O sobrinho de Rameau, termina com a violenta Revolução Francesa. A queda do "ídolo chinês" serve como transposição dos ídolos ocidentais: a sutil dialética diderotiana impregna o ar respirado pelos dominantes, seu éter de pensamentos, tornando-o insuportável.
Para ainda usar os termos de Jauss: "En tant qu'événement violent, la révolution ne peut aboutir que dans la mesure où l'intellection pure avait déjà miné les assises du pouvoir par son action paisible. Hegel semble avoir été fasciné surtout par cette réalisation subversive de l'Aufklarung" (30).

Marie-Jeanne Königson resume esses lados, citando o artigo Enciclopédia... da própria Enciclopédia. O método crítico de Diderot, ali, mostra-se em sua astúcia textual: "Quand il le faudra (...) ils opposeront les notions; ils feront contraster les principes; ils attaqueront, ébraleront, renverseront secrètement quelques opinions ridicules qu'on n'oserait insulter ouvertemente (...) Toutes les fois, par exemple, qu'un préjugé national méritairait du respect, il faudrait à son article particulier l'exposer respectueusement et avec tout son cortège de vraisemblance et de séduction, mais renverser L'édifice de fange, dissiper un vain amas de poussière, en renvoyant aux articles où des principes solides servent de base aux vérités opposées" (31 ).

O lado corrosivo da escrita, seu efeito poético liberador, oposto às formas estabelecidas (32), levaram Diderot a se integrar na "luta apaixonada contra as frases e palavras vazias, brumosas, nocivamente abstratas, a luta ideocrática contra as 'palavras estelionatárias', segundo a expressão proverbial" (33). Com isto, ele ajudou a produzir a moderna língua política e filosófica, agudizando sua eficácia subversora. Claro, como o Senhor Jourdan, ignorante de que fala em prosa, muito professor inculto, "bem como o editorialista do jornalzinho de segunda, não sabe que rumina palavras de ordem, outrora inovadoras, dos grandes filósofos" (34). Entre elas, as de Diderot.

Um terço do livro de Raynal, Histoire philosophique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes, na terceira edição, foi obra de Diderot. Este volume teve vinte edições conhecidas, de 1781 até 1787, quarenta edições-piratas, capítulos separados. "Toute la génération de 89 l'a lu, et aussi les hommes de 93" (35). A escrita filosófico-política raramente tem efeito imediato. Ela é parte daquela operação de tecelagem silenciosa e secreta do espírito, a que se refere Hegel. Um ato "contínuo, violento, criador" (36) que desfia o panejamento aparentemente sólido das falas e instituições dominantes.

Tanto Hegel, quanto Marx, ao contrário dos êmulos "dialéticos" que destruíram a leve operação de sua filosofia, são avaros no uso do termo "real". Reservam-no para momentos particularmente graves de sua exposição. Para designar ocorrências finitas, dentro do tempo e do espaço, e a sua totalidade, empregam comumente "Wirklichkeit", economizando o termo tão caro à metafísica e ao positivismo comtiano, "Realität" .

Impossível ignorar a constelação semântica de Wirklichkeit, onde se situa o verbo Wirken com a polissemia de tecer, operar, produzir efeito. Outro termo, usado por Hegel como sinônimo de Wirklichkeit, é Wirksamkeit. Ali, o significado de ativo, eficaz, se evidencia. O mundo da cultura, do espírito, ao contrário de uma estável realidade, da qual se busca encontrar "leis" eternas constitutivas, resulta sempre da ação humana, sendo por ela engendrado, tecido. O prius, considerando-se a sociedade, é esta força, energia da ação, cujo efeito (Wirkung) são os laços que unem os sujeitos. Estes se tornam livres por seu próprio ato, fazendo-se ab-solutos.

Percebe-se o interesse de Hegel pela metáfora da tecelagem como conditio sine qua non para a descrição fenomenológica da livre consciência cultural moderna. Goethe, introdutor e comentarista de Diderot, justo no relativo a O sobrinho de Rameau, sempre moveu o símile antigo da tecelagem para indicar a ação da Natureza e do Espírito. A primeira, "Die wirkende Natur", reúne forças que dançam: "Wie alles sich zum Ganzen webt,/ Eins in dem andern wirkt und lebt!". O Espírito da Terra diz a Fausto: "So schaff'ich am sausenden Webstuhl der Zeit/ Und wirke der Gottheit lebendiges Kleid". Sutil maneira de se referir ao mundo como enfeite, roupa, ampliando a concepção cosmética antiga. Sugestão sugada ao máximo por Carlyle.

"Todo efetivo é racional, todo racional é efetivo." Jacques d'Hondt mostrou o quanto este lema pouco tem a ver com a "santificação do existente". Conseqüência marxista: quem tece pode desfazer os fios. A sociedade resulta de formas determinadas, na tecelagem humana. Se ela fosse real, e não efetiva, jamais poderia se esgarçar, ou ser tecida de outro modo. Percebe-se a característica fáustica da filosofia política, em Hegel e Marx só com este significante violentado pela "dialética" posterior. Nesta, Wirklichkeit será reduzido à "realidade". Não, para ambos, mestre e discípulo heterodoxo, "Im Anfang war die Tat!".

O efeito revolucionário de uma escrita mede-se pela capacidade formadora de significantes e significados por tramas dos vários universos discursivos, as Galáxias, para lembrar o trabalho poético de Haroldo de Campos. Neste item, é estratégica a dinâmica transposição de planos, aproximando traços aparentemente separados da língua. O campo da Wirklichkeit, lembra a sugestão de Jacobi, em sua carta a Fichte: o mundo, para o último, seria uma espécie de meia tricotada, onde se teceriam figuras infinitas: sóis, estrelas várias etc. Mas o todo resultaria do movimento de um fio que, se desvinculado, abstraindo-se todos os nós que o acompanham, levaria ao puro ato de tecer. Trata-se de uma percepção imagética aguda de Tathandlunq.

Em Diderot, encontramos a passagem do fazer à escrita no seu verbete da Enciclopédia sobre a meia (Bas). Vejamos: "Le métier à faire des bas est une des machines les plus compliquées et les plus conséquentes que nous ayons". Desde o começo, a determinação lógica da conseqüência, tão cara à tradição filosófica idealista, sobretudo a Fichte. Até aí, poder-se-ia dizer, apenas aproximação arbitrária do leitor. Mas sigamos: "on peut la regarder comme un seul et unique raisonnement dont la fabrication de l'ouvrage est la conclusion". A máquina, lógica exteriorizada, tece os fios do raciocínio, reunindo com firmeza as premissas e as conclusões.

Como a escrita artística, a lógica, a máquina para tecer meias compõe um equilíbrio delicado: "aussi, règne-t-il entre ses parties une si grande dépendence, qu'en retrancher une seule, ou altérer la forme de celles qu'on juge les moins importantes, c'est nuire à tout le mécanisme". A forma, a forma: além do cuidado estético, percebemos a união de rigor, beleza, utilidade.

Raras dialéticas pós-hegelianas poderiam fornecer, daquele modo de filosofar, um conceito mais rigoroso e completo, justo a partir deste comparativo da máquina tecelã: "on se promettrait en vain quelque connaissance de la machine entière, sans entrer dans le détail et la description de ces parties (...) La liaison des parties demanderait qu'on dit et qu'on montrait tout à la fois; ce qui n'est possible, ni dans le discours, où les choses se suivent nécessairement, ni dans les Planches, où les parties se couvrent les unes les autres". Círculo entre conhecimento e sua exposição. Como dizer um Todo discursivamente? Ou através de imagens discretas? Diderot apanha o arcaico ato comparativo entre escrita, no plano do significante, e significado, letra e espírito. Problema que atormenta a filosofia, enquanto gênero literário, de Platão até Marx.

Diderot sempre recusa "evidências". Como a lógica, tanto a cultura quanto seu relato constituem tecidos sutis, enleados pelo homem-máquina ou pela máquina, também ela tecida pelas mãos e inteligência humana. O engenho para fabricar meias é perfeito ícone do mundo, sempre engendrando relações novas ("Daedala Natura", diziam os latinos, Lucrécio sobretudo), no físico e no político. Sobre tais assuntos, afirma Diderot, no mesmo verbete da Enciclopédia: "il fallait tout dire ou rien; que ce n'était point ici un des ces mécanismes dont on pût donner des idées claires et nettes".

Astúcia, méchané, List: a invenção técnica supõe rompimento com o "natural". Ela exige ingenium, Wit. Diderot cita Perrault: "Ceux qui ont assez de génie, non pas pour inventer de semblables choses, mais pour les comprendre, tombent dans un profond étonnement à la vue des ressorts presque infinis dont la machine a bas esta composée, et du grand nombre de ses divers et extraordinaires mouvements. Quand on voit tricoter des bas, on admire la souplesse et la dextérité des mains de l'ouvrier, quoiqu'il ne fasse qu'une seule maille à la fois: qu'est-ce donc quand on voit une machine qui forme des centaines de mailles à la fois, c'est-à-dire qui fait en un moment tous les divers mouvements que les mains ne font qu'en plusieurs heures?".

Tempo, escrita e invenção prendem o discurso. Não falta o espanto, só próprio ao engenhoso que percebe a beleza e simplicidade da máquina, enquanto resultado de ardilosos intelectos e sensibilidades. A grosseria conservadora, de fundamento organicista, que degradou a crítica romântica da técnica, ainda hoje afirma: "tal argumento é mecânico", "isto é uma simples fórmula", "aquela política é mero cálculo", e quejandos. Lixo discursivo que entrava, entre nós, o in vento técnico e artístico. O espantoso, a metamorfose do complexo em simples, e a reunião de várias "simplicidades" em novos conjuntos complexos, e assim ao infinito, desaparece para o romantismo tosco que impera em determinadas áreas do "saber" brasileiro. Sobretudo naquelas definidas como "ciências humanas". Se o ignaro soubesse, diz Kant, a dificuldade, o engenho, a finura que os matemáticos empregam para chegar à bela fórmula, nunca falaria, como papagaio: "isto é apenas uma fórmula". O mesmo, diga-se, das técnicas escriturais, filosóficas ou não, e das máquinas, estudadas pelos mais lúcidos dentre os pensadores, na estética, e na religião, com base nos progressos científicos.

Essa raiva pela técnica, e pelo engenho, circula ainda em nossos dias, na mente do "platonismo invertido", como bem define François Dagognet. Este autor lembra a ligação entre matemática, técnica e óptica, para desvelar a desconfiança da filosofia "rigorosa" no artefato. Repetem incansavelmente os herdeiros do platonismo: a figura do triângulo apenas sugere o verdadeiro. "On oublie peut-être que la géometrie projective ne répudie pas, à ce point, les figures tronquées et déformées; au contraire elle étudie les transformations et les réinsère dans une série ou une loi génératrice qui les justifie" (37).

Dagognet, continuando o pensamento das Luzes, recusa o platonismo e a marca da infâmia colocada por Rousseau sobre as aparências (38). Termina seu trabalho constatando que "la science, la technologie, l'art pictural ont (...) marché à contre-courant d'une philosophie trop accordée à l'intelligible et au supra-réel, méfiante envers les doubles et les amusements optiques". Conservadora, contra-revolucionária, a boa filosofia do "rigor" defendeu, freqüentemente, "la cause de la vérité, de la solidité et de son maintien, des proportions justes comme des références stables". Contra esta fixidez, o autor convida à repetição do programa racional e sensível de Diderot, em nível mais complexo. Para além do "paradoxo", da máquina de tecer meias, ou do comediante que tece máscaras, aparências, é preciso, hoje, baseando-se no trabalho técnico e científico, inventar. Urge "intervertir les rôles ou les positions; le reflet ajoute au modèle, le dévoille, la camera obscura n'étant pas hostile à ce genre de retournements dont elle béneficie: elle même vit de subversions et de renversements. Le prétendu calque ne reproduit pas: à sa manière, il produit (...) défendons jusqu'aux reflets des reflets; descendons d'un dégré encore du côté des ombres et des apparences".

Claro: semelhante programa não separa poesia de ciência, essencial e fortuito. Ele espanta as vistas metafísicas, mesmo as que usam a máscara da "dialética" sob o sinal do "realismo", nas versões mais grosseiras ou sofísticas, como as de Lukács. Para dizê-lo na forma mais apropriada, com Shoshana Felman: "Le réalisme n'est rien d'autre qu'une théologie inversée. Toute lecture réaliste est superstitieuse. Toute lecture qui arrête le mouvement textuel, qui traverse le langage et bloque le sens dans une prétention à la vérité, entre nécessairement dans une structure mystifiée" (39).

No símile apresentado por Diderot - raciocínio, máquina de tecer meias - temos lúcida apresentação da escrita, na filosofia dialética. Esta, nem realista nem idealista, recusa "l'dée nébuleuse", mas também "la matérialité avec sapesanteur: la compenetration des deux l'exige" (40). Que os "materialistas" evitem o escandalo. Para Engels, insuspeito de "esteticismo" e de "culto às imagens", "a matéria enquanto tal é pura criação do pensamento, uma abstração. Quando resumimos as coisas, como dotadas de existência corpórea, sob o nome de matéria, prescindimos das diferenças qualitativas entre elas" (41).

Alfred Schmidt (42) percebe o vínculo entre pensamento e sensibilidade na filosofia de Marx, ao lembrar que, para o segundo, "quem separa o pensamento dos sentidos, alma do corpo, também é incapaz de captar a relação existente entre os conteúdos da cultura e a esfera da produção material". E cita O Capital: "a tecnologia revela o comportamento ativo do homem face à natureza, o processo imediato de produção de sua vida, e, portanto, também o de suas relações sociais vitais, e o das representações espirituais que delas surgem".

É tempo de se conduzir a análise "marxista" para seus antecedentes das Luzes, no campo da reflexão. O elo poético é vital nesta mudança. Como enuncia o prefácio da Phanomenologie des Geistes, lembrado por J. P. Faye: "O conflito entre a forma de uma proposição em geral e a unidade destrutiva do conceito (der sie zerstörenden Einheit des Begriffs) é análogo ao que ocorre entre a métrica e o acento. O ritmo resulta do núcleo oscilante". Daí a busca de Faye por entender o "efeito de 'tradução'", necessário para distinguir os níveis em que se move o humano: natural, técnico, político, etc.

Narrar a história, fazê-la, ambos os atos passam pela mudança formal. "Na própria trama das transformações materiais se tecem as mudanças do 'rosto' (ou da 'forma'), produzidos pela própria forma narrativa." Faye remete a O Capital: "Devemos considerar o processo completo no lado da forma, ou seja, apenas na mudança de forma, ou metamorfose da mercadoria, que mediatiza a mudança material na sociedade". O vínculo entre alma e significante passa pelo artifício: "Roman Jakobson acertava, quando dizia que a produção das ferramentas e o surgimento da linguagem (e o interdito do incesto) é um único processo, o do articulação dupla". O efeito (Wir kung) discursivo passa, agora, além da tecelagem. Textualiza as imagens e a luz que as carrega. "Quando Marx analisa o aparecimento dos quanta de valor, os Wertquanta, precisando que eles se produzem como uma linguagem, wie eine Sprache, abre (...) as possibilidades de um exame teórico das relações entre os corpos sociais e suas emissões" (43).

A dialética das luzes encontra seu passo inicial na Lógica hegeliana. Os primeiros lances desta obra marcam duas maneiras de olhar. Estas, separadas, conduzem ao vazio, à pura insignificância. O Ser imediato, indistinto, nada possui em si mesmo para ser visto, diz Hegel, se é que podemos falar aqui de "visão", "ou melhor, ele é apenas este puro, próprio, vazio ato de ver". Por outro lado, o Nada puro, "na medida em que podemos definir como ato de enxergar" é a mesma ausência de determinação do puro Ser. O concreto, que pode ser visto, só ocorre na passagem mútua dos lados, Ser e Nada. O devir é um movimento em que os dois diferem, mas através de uma diferença que, ao mesmo tempo, dissolveu imediatamente a si mesma (der sich ebenso unmittelbar aufgelöst hat).

Durante toda a exposição da Lógica verifica-se o enleio destas diferenças. Como se trata da purificação visiva, e da mútua compenetração dos opostos, quanto mais ambos, ao mesmo tempo, se contradizem e se afirmam, mais a vista, a teoria, torna-se determinada, concreta. O ser é representado na "imagem da luz, como clareza do ver não-opaco e o nada como a pura noite (...) Mas, de fato, quando se representa este ver de um modo mais exato, nota-se facilmente: a claridade absoluta só permite ver a treva absoluta. Um modo de ver é tão bom quanto o outro: um ver puro é puro ver nada. A pura luz e a pura escuridão constituem dois vazios idênticos. Só na luz determinada - e a luz se determina pelo obscuro e, portanto, apenas na luz entenebrecida, pode-se distinguir algo; bem como só na escuridão determinada - e a obscuridade determina-se por meio da luz - e, pois, na escuridão esclarecida, pode algo ser distinguido. Só a luz entenebrecida e a escuridão iluminada possuem em si mesmas a distinção, constituem um Ser determinado, uma existência" (44).

Nos parágrafos finais da Lógica fica bem certo o entendido pela noção de passar (Übergehen), tornar-se: com a Idéia, a perfeita concretude, não temos ser e nada, com suas respectivas vistas, na pura identidade abstraída. A Idéia absoluta recolhe o teorético (olhar) e o prático na síntese. Só a Idéia possui Realität. Só a Idéia é Ser. "A Idéia só é em sua autodeterminação para se entender, ela se encontra no puro pensamento, no qual a diferença não é um ser-outro, mas é completa transparência para si mesma, e assim permanece (sondern sich vollkommen durchsichtig ist und bleibt)."

Só é possível a passagem entre ser e nada, no processo contraditório entre eles: o infinito. Assim, o ato humano dissolve todas as barreiras opacas. "Ou seja, sendo a Idéia a unidade absoluta do puro conceito e de sua realidade (Realität) posta, que se reúne na imediatez do ser, ela é a totalidade desta forma - ou seja, a natureza. Esta determinação não é um ter-se ocorrido e uma passagem, tal como é (...) o conceito subjetivo que se converte em objetividade, ou fim subjetivo que torna-se vida. A Idéia pura, na qual a determinabilidade ou realidade do próprio conceito foi por ela mesma elevada ao conceito, é a libertação absoluta (...) Nesta liberdade, não há nenhuma passagem (Übergang); o Ser simples, que a Idéia determina para si, permanece como total transparência para ela, e é o conceito que, em sua determinação, permanece em si" (45).

A transparência da Idéia: Ser e Nada dissolvido. A pura liberdade. Ao invés de referir esta doutrina ao campo anterior do saber, que a sustenta e dá sentido (por exemplo, remetendo-se à Carta sobre os cegos, O sobrinho de Rameau, e outros textos diderotianos profusamente aproveitados por Hegel na Fenomenologia, quando trata da luta entre Luzes e trevas, ou seja, a superstição), boa parte das interpretações sobre Hegel aceitaram, como pressuposto inquestionado, a leitura heideggeriana.

Como esquecer o vínculo entre o Le neveu de Rameau e a Lógica de Hegel? Confira-se o que se diz, após a interpenetração de luz e sombras: "A virtude inexiste sem luta; ela é, ao contrário, a própria luta, a mais acabada, completa; deste modo, não é só o positivo, mas absoluta negatividade; nem é virtude comparada ao vício, mas em si mesma é oposição e batalha. O vício não é só falta de virtude - também a inocência é falta - e também não se diferencia da virtude só por reflexão extrínseca, mas, sendo em si mesmo oposto à virtude, ele é o mal. O mal consiste em fundamentar-se em si contra o bem; é a negatividade positiva. (...) Todas as naturezas emergem de sua inocência, indiferente identidade consigo mesmas, e relacionam-se, por meio de si mesmas, com outro, o seu outro, e, assim, encaminham-se para sua destruição, ou, em sentido positivo, retornam ao seu fundamento"(46). O espelhamento, aqui, é pervertido, invertido, e nunca direto, imediato. É universal perversão, como no Sobrinho.

Deixando na sombra essas perversões dos olhares que se enfrentam, e se deformam mutuamente, Heidegger acentua, em sua leitura, a tranqüila identidade Ideal, olvidando a forma violenta do processo de libertação, esta guerra do conceito, em que todas as subjetividades são colhidas, nas suas oposições mortais. Como relata o Sobrinho: "Il nous vient aussi un certain niais, qui a l'air plat et bête, mais qui a de l'esprit comme un démon et qui est plus malin qu'un vieux singe. C'est une de ces figures qui appellent la plaisanterie et les nasardes, et que Dieu fit pour la correction des gens qui jugent à la mine, et à qui leur miroir aurait dû apprendre qu'il est aussi aisé d'être un homme d'esprit et d'avoir l'air d'un sot, que de cacher un sot sous une physionomie spirituelle". Astúcia anamorfótica: esta é a imagem da dialética. Nunca A é igual a A, sequer por comparação. "Quand je dis vicieux, c'est pour parler votre langue; car si nous venions à nous expliquer, il pourrait arriver que vous appelassiez vice ce que j'appelle vertu, et vertu ce que j'appelle vice". O mesmo, diga-se, ocorre com o "positivo" e o "negativo", na reflexão descrita por Hegel.

Em Hegel, o Eu que é um Nós mostra-se perverso. Heidegger vê o desdobramento metódico de sua dialética - a exemplo de muitos outros intérpretes - como relação abstrata de sujeito e objeto. Olvida que tal "objeto" distorce, nas seqüências mais elevadas, a consciência de um outro determinado, do seu outro. Ali, o espelho não serve mais como símile, pois ainda porta certa opacidade. O conceito não reflete as imagens, mas na Idéia pura, é transparência absoluta, ou seja, por ele todas as imagens podem passar. O recurso da língua, por sua força de exteriorização, conduz ao choque dos humanos entre si, o que dificilmente será amortecido no interior do tempo e do espaço.

Vejamos o que diz Heidegger: "A caminhada (Gang) é saída (Ausgang) da tese, progresso (Fortgang) até a antítese, passagem (Übergang) para a síntese e, a partir desta, retorno (Rückgang) a si mesma da posição (...) É assim que ela cresce reunindo, concrescit (...) Deste modo, ela é especulativa, pois speculari quer dizer espiar (...) Deste jogo de reflexos, espelhamento o speculari (...) recebe sua determinação suficiente". Logo, "dialética" é "espelhamento do lado oposto e seu retorno à unidade, como processo de produção do próprio Espírito". Em Hegel, finalmente "O eu pensante reúne o representado na medida em que ele encontra passagem através dele, em que o percorre representativamente. Percorrer atravessando é o que diz o grego: dia". Se ocorre esta travessia solitária do ego pelo objeto, como explicar que o método seja, como concede Heidegger, "o processo de produção pelo qual o tecido da efetividade, do ab-soluto no seu Todo, é operado"? Dizendo que, para Hegel, "o método determina tudo o que ocorre (...) isto é, a História", cala sobre esta última, o designativo hegeliano: um "banco de açougue".

Note-se que Heidegger, mesmo para recusar a dialética hegeliana, nela enxerga a figura do tecido, que enlaça tudo o que ocorre, como efeito. A exposição do saber, em Diderot e Hegel, procura apresentar elementos diversos ao mesmo tempo. Amarrar o discurso, vencer com a força das imagens, velha sutileza das aranhas, unindo-se ao vigor do aço. Esta é uma poiesis que, ao contrário da tradição, e de acordo com a vista burguesa do trabalho, é práxis. Segundo J. M. Könignson: para ir além da autoconsciência, no árido mundo industrial, surge a obra literária que assume o caráter subversivo da técnica, destruindo sem alarde as políticas estabelecidas. A máquina de produzir meias prefigura o autômato: por que não a escrita automática?

Investigações citadas, como as de Jauss, Starobinski, sobre a retórica de Diderot elucidam seu estatuto filosófico, e político. Elas contrariam tratados que se preocupam em definir suas idiossincrasias, plágios, repetições de autores antigos. Seja: mesmo operando como "bricoleur", e, talvez por isto mesmo, Diderot abala o edifício expositivo, na filosofia e na ficção (podemos guardar esta taxinomia depois dele?), desfiando velhos elementos. Proceder como Robert Derathé, entre muitos, significa reduzir Diderot à mesmidade, ou à colaboração menor com o santo Rousseau (47).

Desse modo, foge-se à posição política de algum que encostou o Genebrino na parede, recusando-lhe o testemunho sobre si mesmo (fonte do mais fantástico autoritarismo egocêntrico e sentimental já conhecido): "Je sais bien que, quoique vous fassiez, vous aurez pour vous le temoignage de votre conscience: mais ce temoignage suffitil seul, et est-il permis de négliger jusqu'à certain point celui des autres hommes?" (48). O choroso adversário do teatro jamais perdoou a crítica, próxima ao dito aristotélico: "quem vive só, ou é um deus, ou uma fera". Comentadores falam do "mal-entendido" dos homens das Luzes, quando, após lerem Rousseau, deduzem que o melhor seria ficar de quatro, voltar à bestialidade. É possível duvidar de tamanha "in compreensão". Contra a intimidade rousseauista, inimiga do urbano, vem a flecha diderotiana: "Il n'y a que le mechant qui soit seul" (49).

Nem todos os comentadores alguém esta via - a de abafar o pensamento político de Diderot - bastante sinuosa. Discutindo artigos da mesma Enciclopédia, fortemente marcados pela leitura de J. Locke, diz S. Goyard-Fabre: "Diderot, en recourant, pour fonder l'autorité politique, à l'idée d'un contrat consensuel enraciné dans le consentement libre et volontaire du peuple, devançait le Contrat Social de Rousseau" (50). E, mais adiante: "il prélude à ce que dira Rousseau contre Grotius, en declarant qu'un homme ne peut se donner entièrement et sans reserve à un autre homme". É bem mais do que o papel de simples plagiador, conselheiro, ou influenciado...

Outra matéria disputada, mas que se deixa na sombra, nos panegíricos de Rousseau: a questão da vontade geral. Citemos a Enciclopédia: "c'est à la volonté générale que l'individu doit être homme, citoyen, sujet, père, enfant, et quand il lui convient de vivre et de mourir. C'est à elle à fixer les limites de tous les devoirs. Vous avez le droit naturel le plus sacré à tout ce qui ne vous est point contesté par l'espèce entière" ("Droit Naturel"). Como encontrar esta vontade geral? Ela é, sobremodo, "dans chaque individu un acte pur de l'entendement qui raisonne dans le silence des passions (...)".

Entre os dois enunciados, Diderot coloca uma condição média: "l'homme qui n'écoute que sa volonté particulière, est l'ennemi du genre humain". O traço previne, pois, a facção, mesmo que esta se exprima em nome da vontade de todos, por interesses que, assumindo o estatuto nacional, são particulares. Vontade geral não se confunde com maiorias ocasionais. Por corriqueira que seja a tese, ela ainda tem muito a ensinar, sobretudo nas formações políticas pós-totalitárias.

Hegel analisou brilhantemente esse ponto, na Fenomenologia do Espírito. Trata-se de seu exame do Terror. Mesmo na hermenêutica sobre Rousseau, a confusão é mantida por muitos comentadores: "a expressão vontade geral encontra-se também na Constituição Francesa, e isto foi considerado como 'prova' da influência de Rousseau. Na realidade, o termo era utilizado também por Mably, Diderot e outros menos recentes, em 1789 ele havia entrado para o vocabulário comum, perdendo o seu significado especificamente rousseauniano" (51).

A facção, ouvindo a voz de sua própria consciência, embora tenha na boca a "vontade geral", age em detrimento da universalidade, tornando-se inimiga do gênero humano. Muito autoritarismo partidário, progressista ou conservador, negligencia este aspecto delicado do pensamento político. Do Gulag até Auchwitz, recolhemos os produtos desta operação que substitui o todo pelas partes dominantes no momento.

Diderot recusa a "personalidade" do povo, como o faz Rousseau ao tratar da vontade geral. Ele "redoute encore dans le peuple les faiblesses et les excès psychologiques de la populace" (52). Só quem esqueceu as massas "incontroladas", no fascismo, nazismo, estalinismo (uso as aspas porque, na verdade, atrás das suas manifestações existiam máquinas bem prontas, do "partido" ou do "Estado", para não falar da Igreja), a demagogia, a violência popular - os linchamentos, no Brasil o provam - pode recusar esta cautela. As eleições, sobretudo em povos atrasados técnica e culturalmente, ao invés de libertarem, escravizam. Saída? Eleições, é claro, mas não exclusiva e preferencialmente.

"Le peuple est trop bête. La quantité de la canaille est à peu près toujours le même. La multitude est ignorante et hébétée." Após os vagalhões selvagens das massas fascistas, vale meditar, como Elias Canetti, este tema assumido por Diderot. Sua atitude cética o leva à desconfiança nos sistemas, e nas políticas "populares", dogmáticas. Um exemplo de incompreensão do elemento cético na Enciclopédia, porque isola o político do epistemológico, temos em Jean-Paul Dumont. Baseado no lugar comum sobre o "racionalismo" das Luzes, o autor, após afirmar que "Diderot ne mesure tout à fait l'importance philosophique de son analyse des fondements du pyrrhonisme. Il ne comprend point le sens et l'intention du doute", chega à seguinte frase: "Par un étrange retournement del'histoire, Diderot conclut d'une formule sceptique une dissertation qui entend réfuter le scepticismo" (53). É não ter entendido uma só frase de O sobrinho de Rameau, do Paradoxo sobre o Comediante, da Enciclopédia.

Vejamos alguns pontos onde a dúvida, sobretudo a cautela, de Diderot opera na sua percepção do político. Comecemos com as "Observations sur l'Instruction de S.M.I. aux Députes pour la Confection des Lois" (54). Naquele texto, Diderot deixa bem claro de quem desconfiar, acima de tudo: "Le premier point d'un code doit (...) m'instruire des précautions que l'on a prises pour assurer aux lois leur autorité. La première ligne d'un code bien fait doit lier le souverain". Marx, criticando a Constituição francesa que permitiu golpe de Luis Napoleão, repete este ponto. Muitas constituições de hoje, recentíssimas, esquecem a reserva indicada. Resultado: emasculam o texto das leis fundamentais, deixando livres os executivos de hoje, ditadores de amanhã.

Outra cautela, infelizmente esquecida por legisladores "populares". Periodicamente, diz Diderot, deve ser revisto o texto das leis básicas. O povo, junto com o soberano, jura novamente fidelidade a elas. "Todo soberano que recusar o juramento, deve ser declarado déspota e tirano". Fala-se multo do anticlericalismo, forte nas Luzes. Mas Diderot matiza o seu. Após lembrar o dito: "cada jesuíta é um punhal, nas mãos do superior", ampliando-o para "Deus é um punhal cujo cabo está nas mãos de cada padre", ele compara sacerdotes e filósofos. Estes são, às vezes, fanáticos. Mas inofensivos, pois falam em nome da ratio friamente escutada, alheia ao paraíso ou inferno (55).

Após os sacerdotes, o perigo do "bom ditador". O carisma e a suavidade iluminada do soberano são perigosos. Acostumam os súditos à cega obediência, fazendo-os esquecer "cette alarme continuelle, la conservatrice nécessaire de la liberté". Toda autoridade máxima deve ser limitada, de modo permanente, no plano executivo. O poder tem sua fonte no "consentimento da Nação, representada por deputados ou reunida num corpo". Um soberano que rompa este ponto deve ser considerado em guerra com os governados. Ele torna-se inimigo do seu povo.

Interessante a fábula mecânica narrada por Diderot para explicar a origem da sociedade: "no pretenso estado de natureza, os homens estavam espalhados sobre a superfície da terra, como uma infinidade de pequenas molas isoladas. Acontecia, de tempos a tempos: algumas destas molas se encontravam, pressionando-se em demasia e se quebrando. Os legisladores, testemunhas destes acidentes, procuraram remediá-los, e o que imaginaram? Aproximar as molazinhas e com elas fazer uma bela máquina que chamaram sociedade; na bela máquina sociedade, as molazinhas, animadas por uma infinidade de interesses diversos e opostos, agiram e reagiram umas sobre as outras, com todas as suas forças e, para um momento de guerra acidental, resultou uma verdadeira guerra continua. Nela, todas as molas enfraquecidas e fatigadas não pararam de gritar, e quebraram-se num ano, mais do que se teriam quebrado em dez, no estado primitivo e isolado, onde o ressentimento de um choque era a lei única" (56).

O sabor hobbesiano do trecho mostra-se em sua clareza máxima, na maneira de imaginar o indivíduo, e a sociedade, como agenciamento de engrenagens que se chocam. Note-se que a reunião, a "bela" máquina ideada por "legisladores", ao invés de produzir harmonia, carrega a morte exasperada. O "estado de natureza", onde ocorre a guerra de todos contra todos, está posto depois da união societária. As "molas" fazem o engenho, e nele se dissolvem, morrem. "Mas ocorreu algo pior. Estas belas máquinas chamadas sociedades multiplicaram-se, pressionando-se, e o choque não mais foi de cada mola contra a outra, mas de uma, duas, três belas máquinas, umas contra as demais, e numa colisão espantosa, quebraram-se mais molas num só dia, do que em mil anos do estado de natureza, selvagem e isolado" (57).

Impressiona a finura do filósofo ao expor, imageticamente, o tempo da política, nacional e internacional. A guerra interna, quando os Estados se multiplicam, passa ao exterior, encurtando a vida individual, em proveito de ninguém, salvo das "belas máquinas". O movimento acelerado segue ritmo uniforme, mas os choques evidenciam que a dinâmica sociopolítica produz máquinas para deter a violência, ampliando a ... violência. Com o monopólio da força física, e a burocratização racional da vida, diria Max Weber, surge o Estado verdadeiramente moderno.

Na violência política, qual a "vocação" do intelectual? "Il peut ou laisser tout se détériorer, ce qui est proprement trahir la philosophie, ou intervenir" (58). Mas como? Observando o funcionamento da máquina, agindo depois como bom mecânico, "que melhora os circuitos". Nada de "rei filósofo", pois. O poder legítimo não pertence ao cientista, como pensará o século XIX, nas várias correntes "utópicas", nem é herança de monarcas ou ditadores. "Il n'y a point de vrai souverain que la nation; il ne peut y avoir de vrai legislateur que le peuple." Assim, o déspota esclarecido, que pretende ensinar aos deputados como fazer leis, ou os "legisladores", na fábula da "bela máquina", só podem conduzir o social à tirania, e à guerra continuamente acelerada, no interior do país e no plano internacional. Ao monopólio da força física, nas mãos do poder executivo, para que inexista tirania, é preciso produzir instrumentos que movimentem "contraforças físicas" como o "Parlamento da Inglaterra, que me parece uma terrível contraforça física ao poder real" (59).

Retomemos o fio: os padres, jesuítas sobretudo, são punhais. Ou melhor, seu Deus é um punhal que eles manejam contra o poder secular, atacando as Luzes. Os reis, e os legisladores a seu serviço, transformam os homens em punhais, instrumentos de morte contínua e acelerada. Para deter sua força, só uma contraforça, no plano físico. O Parlamento é um bom exemplo. Mas quem garante a instituição representativa? Conhecemos a história posterior, os golpes de Estado militares, as doutrinas totalitárias sobre o Chefe enquanto "vigia da Constituição" (Carl Schmitt).

Diderot pensa, nesse plano, exatamente como reflete no prisma da escrita. No discurso, os isocola, os quiasmas, servem para opor os adversários, fazendo com que eles não cheguem ao final, detenham-se, suspendam a morte do outro. O equilíbrio das forças enunciativas é precário, e assim deve ser. Nada de final feliz, nem unilateralmente trágico. O relato, como diz Jauss, é sempre suspenso. Para pensar o funcionamento da máquina de "tecer meias", é preciso colher ao mesmo tempo todos os seus elementos ativos. Ora, na bela máquina política, ideada pelos déspotas, esclarecidos pelos filósofos, o que é ativo verdadeiramente, vincula-se ao governante. O povo reduz-se a instrumento. Pior: "s'il y a quelque inconvenient a craindre, ce n'est pas que le monarque oublie sa prerogative, mais que les sujets oublient leurs droits" (60).

Quando some a lembrança dos direitos? Ao se desprezar os elementos mais numerosos na textura do social. "Une société mal ordonnée est pire que l'état sauvage. Pourquoi non? Le mot de société fait concevoir un état de réunion, de paix, de concours des volontés de tous les individus vers un but commun, le bonheur général. La chose est exactement le contraire. C'est un état de guerre; guerre du souverain contre ses sujets; guerre des sujets les uns contre les autres (...) Sous la barbarie, les ãmes sont féroces; sous la tyrannie elles sont lâches'' (61).

Os cidadãos só podem contar com uma salvaguarda para as leis, e para si mesmos. Sem confiar no governante, e dele desconfiando sempre, devem, ao invés de se transformarem em punhais, utilizar a força dos instrumentos guerreiros contra o abuso do poder. "Choisissez l'espèce de gouvernement qui vous conviendra et vous serez libres si vous avez deux habits, l'habit de magistrat, l'habit de médecin, l'habit de commerçant et l'habit du soldat. C'est sous ce dernier l'habit que vous irez faire vos répresentations, en bon ordre, le sable au côté, le fusil avec sa baionnette sur l'épaule. Elles seront écoutées, parce qu'elles seront à bout portant. Modelezvous sur les Suisses, et vous serez libres comme eux" (62). Na retórica, na filosofia, na ciência, e, sobretudo, na política, o eloqüente fala com armas "à bout portant". Caso contrário, sofre a pena do silêncio, morte.

Tarefa difícil. A história estatal posterior, revolucionária e contra-revolucionária o prova. "Tout rentre toujours dans la grande difficulté, celle de limiter l'autorité souveraine, ou d'emmailloter Briarée" (63). A figura mítica retoma a metáfora habitual do tecido: segurar o soberano, gigante de cem braços, com as malhas, os laços da vontade cidadã. Característica de Diderot: a dificuldade não se resolve facilmente, só com engenhos, cabeças educadas na ciência, e baionetas. Vemos até onde vai a metáfora da tecelagem: os "cem braços" devem urdir relações livres, automáticas, entre si, prendendo o poder nas suas mãos, retirando-o das garras de um só: "la servitude d'un seul est un préliminaire essentiel à la liberté de tous" (64).

Todo o imaginário da máquina mostra, em Diderot, uma cautela cética fundamental. A "bela" ordenação maquínica do Estado mata. Mas é tolice recusar a técnica. Trata-se de usá-la contra o poderoso, em favor da liberdade e dos indivíduos. Para isto, torna-se urgente ampliar, na ciência, nas artes, na política, a estreita concepção da "utilidade", irmã gêmea do realismo. "Si la reproduction est la limite de l'utile, et si cette limite ne peut être franchie sans cesser d'etre bon, toutes les mathématiques se réduisent à quatre pages, toute la mécanique à six propositions (...) toutes les manufactures restreintes au travail des matières de première nécessité" (65).

Duplicidade de sentido na mecânica: astúcia de mando e de liberdade, a mais ampla, sobretudo a do pensamento inventivo. O recado contra Rousseau aparece diretamente: "Ce ne sont pas les beaux-arts qui ont corrompu les moeurs; ce ne sont pas les sciences qui ont dépravé les hommes. Etudiez bien l'histoire et vous verrez que tout au contraire la corruption des moeurs occasionnée par des causes tout à fait différents a toujours amené à sa suite la corruption du goût; la dégradation des beaux-arts, le mépris des sciences, l'ignorance, l'imbécilité et la barbarie, non celle dont la nation était sortie, mais une barbarie dont elle ne sort plus. La première est d'un peuple qui n'a pas encore les yeux ouverts; la seconde est d'un peuple qui a les yeux crevés" (66). O gênio abre os olhos, e os refina, com a arte. A tirania surge quando escamas são postas sobre as vistas dos cidadãos, ou se furam as retinas de um povo.

No primeiro caso, o filósofo pode ajudar, civilizando os homens, recusando-se, contra o desejado por Rousseau, a colocá-los "à quatre pattes". No segundo, pouquíssima valia tem o filósofo. Mais uma vez a metáfora ótica une-se à da tecelagem, na crítica da tirania. O sábio possui vistas agudas, enxerga mais do que o povo. Mas não pode se permitir dizer tudo, pois a crença se diz de muitos modos. Há um preconceito, pelo menos, que o teórico não tem o direito de quebrar. Numa tirania, este "preconceito" é o espírito de liberdade que resta ao povo. Desmantelar tal crença se equipara ao crime maior: extrair ao povo toda esperança de mutação, advento da liberdade.

Vejamos o trecho mencionado: "La liberté est dans les démocraties. L'espride liberté peut être dans les monarchies, mais ces ressorts son' bien différents; cependant quand on manque de celui-ci, il faut précisément conserver celui-là. Il faut ou qu'un peuple soit libre; ou qu'il croit l'être. Celui qui détruit ce préjugé national est un scélerat; C'EST UNE GRANDE TOILED'ARAIGNÉE sur laquelle l'image de la liberté est peinte. Cette image qui ATTACHE TOUS LES YEUX DU PEUPLE l'élève, le soutient, le réjouit; queuques bons yeux voyent à travers les trous de cette toile la tête hideuse du despote. Que fait celui qui déchire la toile? Rien pour le maitre dont il est le vil esclave, un mal incroyable à la nation qu'il détrompe, qu'il abat, qu'il avilit, en lui montrant tout à coup la tête hideuse. Le corps dépositaire des lois fondamentales d'un État est cette toile d'araignée" (67).

Note-se a sutileza da crítica: nas democracias, a liberdade tem corpo e alma. No regime monárquico, só alma. As "molas" são diferentes em ambas as máquinas. Por mais tênue que seja a teia da aranha, a Constituição, ela permite ao povo retomar os fios do poder, usurpado pelo déspota. Quem rasga este pano quase transparente prova ter vista aguda, mas ensina apenas a desilusão. Hegel percebeu corretamente este lado da doutrina política de Diderot: ao invés de tentar a derrubada direta dos "ídolos" antigos, sua crítica deve operar como infecção. "Espírito invisível (unsichtbarer) e desapercebida (unbemerkter), ela (a intelecção das Luzes, RR) se insinua em todas as partes nobres e as penetra, logo torna-se senhora de todas as vísceras e todos os membros do ídolo inconsciente e 'numa bela manhã, ela dá uma cotovelada no sujeito e patatrás, o ídolo tomba'". Este é o "stumme Fortweben des Geistes", silente tecelagem do espírito, tarefa difícil de "emmailloter Briarée". Mas, como se Hegel tivesse na memória a fábula da sociedade composta de molas que se quebram, segue o texto da Fenomenologia. O movimento da crítica, sua efetivação tecelã (Verwirklichung) não se propaga sem oposições. Enquanto operação (Tun) consciente, ela deve expor seus momentos na existência (Dasein) determinada e visível, apresentando-se como tumulto sonoro, luta violenta com o seu contraditório enquanto tal.

O comentário inteiro de Hegel apanha o dito de Diderot, citado por mim acima (cf. p.15 deste texto): "Et ces jansenistes ont beau dire, cette méthode politique qui marche à son but, sans bruit, sans effusion de sang, sans martyr, sans un toupet de cheveux arraché, me semple la meilleure". Note-se bem: o silencioso trabalho de tecelagem, "sans bruit", transforma-se, em Hegel, num "lauter Larm und gewaltsamer Kampf". Após o trabalho crítico, que desfia a teia da aranha despótica sem arrancar da vista cidadã a ilusão de ótica, o fantasma da liberdade, chega a luta violenta, a própria Revolução Francesa. Sutil leitura de Hegel: a destruição - posta no texto de Diderot - dos significantes lingüísticos, dilacera antigas significações. O ponto máximo: "an einem schonen Morgen ... Bautz! Baradautz!". A onomatopéia marca a ruptura entre o antigo tecido discursivo, os atos correspondentes, e o novo. Ponto zero das significações, nela ressoa a força violenta do aço, das baionetas revolucionárias, armas "à bout portant".

"Un beau matin". Hegel cita diretamente o enunciado de Diderot. Não desprezemos o elemento estético da frase. Festejando a Revolução Francesa, Hegel retoma a mesma figura solar: "Anaxágoras foi o primeiro a dizer que a Razão governa o mundo; mas só hoje o homem chegou a reconhecer que o pensamento deve dominar a efetividade wirklichkeit espiritual. Aquela foi a magnífica aurora (Sonnenaufgang) (...) Uma sublime emoção dominou aquele tempo, um entusiasmo do espírito fez o mundo estremecer, como se apenas naquele instante se iniciasse a reconciliação (Versohnung) efetiva (wirklichen Versohnung) do divino com o mundo" (68). Hegel utiliza, para descrever o acontecimento revolucionário, toda a terminologia da estética. O fato político se expõe com enunciados produzidos por Edmund Burke, E. Kant, e outros mais reconhecíveis na história da cultura. Restava lembrar o vínculo com Diderot, a sua trindade que abala todas as representações fixas: "le vrai, qui est le père et qui engendre le bon qui est le fils, d'où procède le beau qui est le Saint-Esprit". A síntese epistêmica, política, estética, tecelagem ardilosa do homem, o "império da natureza" - programa das Luzes - "s'établit tout doucement", é certo, mas quando acelera sua marcha, "Bautz! Baradautz!".

Trama inconsútil de aspectos culturais. Em Diderot, nada autoriza a falar em "moralismo absoluto", como o faz certa crítica, em política separada dos outros campos, verdade e beleza. "Si vous y réfléchissez, le beau n'est jamais que le sens commun bien habillé. Mais quelque élégant, quelque riche que soit le vêtement, si le sens commun n'est pas dessous, je n'entends plus qyü'un sophiste ou qu'un faux bel esprit" (69). A liberdade inexiste sem o verdadeiro, e só é feliz quem progride no belo. Mas tudo isto só se consegue com "lauter Larm und gewaltsamer Kampf". Como afirma Diderot: "Mille hommes qui ne craignent pas pour leur vie, sont plus redoutables que dix mille qui craignent pour leur fortune. Que chacun d'eux ait dans sa maison au bout de son champ, à côté de son métier, à côté de sa charrue, son fusil, son epée et sa baionnette" (70).

Se restasse alguma dúvida sobre o efeito político da tecelagem diderotiana na evolução Francesa, os textos mencionados fariam refletir o leitor, o intérprete. Basta recordar o peso de Diderot na obra de Raynal, para ver a gravidade do que ali se diz: "Peuples dont les rugisse ments ont fait trembler tant de fois vos maitres, qu'attendez-vous? Pour quel moment réservez vous vos flambeaux, les pierres qui pavent vos rues? Arrachez-les!''(71).

Terminemos. Hegel, de um lado, e os conservadores, de outro, perceberam a capacidade corrosiva da escrita diderotiana. Sainte-Beuve, como é seu hábito, foge às consequências revolucionárias do estilo, sobretudo no político. Barbey d'Aurevilly, por sua vez, atacou os pontos essenciais. Para ele, Diderot, o ex-beneditino que se transformou em "malédictin", era "un confectionneur, dont la tête, mise en branle, ressemblait à un métier". Mais adiante: "Diderot, lui, eût été ardemment révolutionnaire. Il aurait siégé à l'Assemblée nationale (...) il se serait fait couper le cou avec Fauchet et les Girondins...".

Outro defeito, segundo d'Aurevilly: "la tête de Diderot répugnait au système, qui est l'honneur des têtes humaines". Ademais, "il était du siècle le plus superficiel (...) c'est l'écrivain fidèle aux mauvaises habitudes d'un siècle qui portait la Révolution dans son sein, et qui, pour supprimer un abus, supprimait l'institution entière". Juizo definitivo: "Diderot, ce travailleur insconscient et anticipé pour le compte des savertiers de la Révolution..." (72).

Mais do que um filósofo político, Diderot ligou-se à cortante idéia do século XVIII: nada seria estável, o estilhaçamento domina o núcleo do universo: "Qu'est-ce que ce monde, monsieur Holmes? Un composé sujet à des révolutions, qui toutes indiquent une tendance continuelle à la destruction; une succession rapide d'êtres qui s'entre-suivent, se poussent et disparaissent: une symétrie passagère; un ordre momentané" (73). Quem desejar definir este pensamento como"racionalismo", esteja à vontade. "Rira bien qui rira le dernier".

ROBERTO ROMANO é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia do Instituto de filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e autor de Conservadorismo romântico (Brasiliense - esgotado), Corpo e cristal - Marx romântico (Guanabara) e Lux in tenebris (Editora da Unicamp/Cortez).

PS. Este trabalho estava praticamente estabelecido quando, no Colóquio sobre "Interpretação" patrocinado pela Universidade do Rio de Janeiro (UERJ), recebi, diretamente das mãos de seu autor, os belos textos "O Iluminismo francês e Diderot", e "Diderot: filósofo e crítico de arte" (in Luiz Costa Lima, O fingidor e o censor no Ancien Régime, no Iliuminismo e Hoje. Rio, Forense Universitária, 1988). Infelizmente, dada a premência de publicação, não pude incorporar várias passagens agudas do autor, em temas coincidentes com meu artigo. Chamo a atenção sobretudo para as pp. 151 e seguintes, onde Costa Lima segue a metáfora do poético como "tecido de hieroglifos". Espero, em outra oportunidade, poder discutir sua obra com o cuidado merecido. Agradeço a ele a feliz ocasião de entrar em contato com este prisma de seu labor, que tem sido dos mais fecundos, no seu campo, em nosso país.




NOTAS

1 "Diderot a été pour la France au siécle des Lumières l'équivalent de ce que Montaigne avait été au siècle de la Renaissance" (Jean Thomas).

2 "Bacon est à l'origine de la plupart des réflexions de Diderot sur la méthode experimentale et sur l'exploration méthodique de la nature" (PaulVernière).

3 "Quel mauvais tour ne joue-t-on pas en effet à la libre parole quand, au lieu de l'interdire, on l'engage à prendre corps! D'óù l'extreme ambiguité d'une philosophie qui se veut conseillère du prince" (Elisabeth de Fontenay). Espinosa, cauteloso, recusou semelhante papel, gostosamente desempenhado por Descartes e tantos mais. O desencanto sempre vem, seja em Siracusa, com Platão, seja na Rússia, com Diderot. Neste setor, poucos filósofos mostram astúcia suficiente.

4 Georges Daniel, Le style de Diderot, légende et structure, Genève, Droz,1 986.

5 Georges Daniel, op. cit.

6 Textos recentes: a) Simone Goyard Fabre, "Les idées politiques de Diderot au temps de l'Encyclopédie", e Lesler G. Crocker, "Diderot as political philosopher", in Révue internationale de philosophie, n. 148-149, 1984; b) Michel Delon, "La marquise et le philosophe", e J. M. Goulemot, "Jeux de conscience, de texte et de philosophie, l'art de prendre positions dans l'Essai sur les règnes de Claude et de Neron", in Revue des sciences humaines, n.182, 1981; c) Marc Buffat, "Diderot, le corps de la machine", e Jacques Choullet, "Les machines de Diderot (ecrits politiques)" in Revue des sciences humaines, n. 186-187, 1982; d) Roger Fayolle, Sainte-Beuve et le XVIII e siècle ou comment les revolutions arri venl, Paris, A. Colin, 1972, pp. 277 e ss.

7 Robert Darnton, Boemia literária e revolução, o submundo das letras no antigo regime, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 118 e ss. No mesmo sentido, cf. os comentários de P.E. Arantes às teses de Kojève e outros: "Diderot teria então posto em cena a divisão congênita do intelectual do Antigo Regime? Tudo o leva a crer. De um lado o intelectual arrivé, Voltaire, o último escritor feliz (...), do outro, menos o anti-Voltaire do que o seu duplo, Rousseau, 'o mano capeta do lluminismo' " In: "Dialética e experiência intelectual em Hegel", Cadernos da UNB, 1981, p. 115.

8 Citado por Fontenay, op. cit., p. 205.

9 "Por inverossímil que isto possa parecer a 'espíritos livres' (...) nós acreditamos que a 'psyché' é algo 'profundo', que o nosso 'ego' é uma coisa interessante (...) No que não acreditamos, graças à sacrossanta "psocoologia?" (Gérard Lebrun, comentando o livro de Sennett, O Declínio do homem público). Cf. Passeios ao léu, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 260. Impossível discordar do juízo seguinte: "Nous sommes nés, sans dout, au XVIII e siècle, moins des Lumieres que de leur rupture, et d'une nouvelle torme de ténèbres. Depuis Rousseau, nous savons que la place de la Providence est à prendre, et qu'il suffit de savoir mentir pour pouvoir l'occuper. D'où l'Émile: le sujet de la science cède au pédagogue, qui ment pour mieux instruire". Claude Rabant, Délire et théorie, Paris, Aubier-Monlaigne, 1978, p. 11.

10 Cf. M. Hobson, "Sensibilité speciacle, le contexte medical du 'Paradoxe sur le comedien' de Diderot", in Révue de metaphysique et de morale, n° 2, 1977, p0p. 145 e ss.

11 Cf. Alain Boutot, Heidegger et Platon, le problèma du nihilisme, Paris, PUF, 1987, pp. 23-6.

12 Cf. Un autre Descartes. Le philosophe et son langage, Paris, Vrin, 1980, p. 37 e ss.

13 Cit. em Pierre-Alain Cahne, op. cit.

14 Pensamentos metafísicos. Apêndices, cap. VI (trad. Ch. Apphun) Oeuvres, v. 1, Garnier-Flammarion p. 352. Trecho também comentado por Jean-Pierre Faye, Théorie du récit. Paris, Hermann, 1972.

15 Cito na trad. francesa: Le territoire de l'homme. Paris, Albin Michel, 1978, p. 50.

16 Op. cit., p. 50.

17 Op. cit., p. 50.

18 "Lebhafter, bewegter, geistreicher ist die franzosische Philosophie, oder vielmehr sie ist das Geistreiche selbst. Sie ist der absolute Begriff,welcher sich gegen das ganze Reich der bestehenden Vorstellungen und fixierten Gedanken kehrf, alles Fixe zerstort und sich das Bewusstsein der reinen Freiheit gibt" (Geschichte der Philosophie, in Werke in zwanzig Banden.) F.A.M., Suhrkamp Verlag, v. 20, p. 287.

19 A mudança frásica é apenas, na passagem de Hegel a Marx, de Fix para Fest. Esperemos que alguma leitura sintomal não venha, também aqui, propor rupturas. A indicação da química, no primeiro termo, é respondida pelo Aflosen, com idêntico plano de dissolução da solução do aparentemente estável. Em Marx apresenta-se o elogio do engenho, do famoso Witz, "a forma pela qual algo é desatado (gelost),desmanchando-se os seus nós" (André Jolles, "Witz" in Einfache For men, Max Niemeyer, Tübingen,1974, p. 248). Voltarei, adiante, a esta figura do ingenium enquanto tecelão que ata e desata os fios do espírito. Como diz o mesmo Jolles: o Witz mais simples já e um edifício complicado. "Mas cada elemento deste edifício tende sempre para o mesmo fim: desatar nós, desfazer ligações. Os meios a disposição da linguagem para desatar algo (etwas zulosen) são tão numerosos quanto os que ela tem para atar (zu binden)", p. 249.

20 " 'Le neveu de Rameau', Dialogique et dialectique (ou: Diderot lecteur de Socrate et Hegel lecteur de Diderot)", in Revue de métaphysique el de morale, n.2, 1984, p. 145.


21 Citado por Jauss, e por ele comentado, no artigo em questão.

22 Jauss, op. cit., p. 156. O ingenium ata e desata relações entre os sujeitos. Consiste num poder destrutivo e produtor, ao mesmo tempo. "Se o absurdo significa o desatamento (Losung) da lógica filosófica, a inconveniência (um traço essencial em O sobrinho de Rameau, RR) significa o desligamento (Losung) das regras prescritas pela moral prática, bons costumes, conveniências". Cf. Jolles, op. cit., p. 251. O Witz desfaz os nós da linguagem, da lógica, da ética. "Com seu poder de colocar tudo de ponta cabeça (die Dinge auf den Kopf zu stellen), o Witz encontra-se em todos os domínios". Idem,p. 251.

23 Diderot ou le malerialisme enchanté, Paris, Grasset, 1981, p. 228.


24 Op. cit., p. 228.

25 Para Além do Bem e do Mal, sexta parte, 206.

26 Op. cit., prefácio.

27 Geschichte der Philosophie, ed.cit., v. 20, p. 291.

28 Cf. J. Starobinski, "Sur l'emploi du chiasme dans 'Le Neveu de Rameau'", in Revue de métaphysique et de morale, n° 2, avril-juin 1984, p. 191.

29 Jauss, op. cit., p. 180.

30 Jauss, op. cit., p. 180.

31 Citado por M-J Konigson, Hegel Adam Smith et Diderot", in Hegel et le Siècle des Lumières, Paris, PUF, 1974, p. 66.

32 "Toda expressão verbal estiliza e transforma, em certo sentido, o acontecimento que ela descreve" (Jakobson, Roman).

33 In "Qu'est-ce que la poesie?", Questions de poétique, edição Todorov, Paris, Seuil, 1983, pp. 122-3.


34 R. Jakobson, op. cit.

35 e 36 M-J Königson, citando Hegel.

37 Philosophie de l'Image, Paris, Vrin,1984, pp. 226-7.

38 Cf. sua análise da Lettre à D'Alembert sur les spectacles, op. cit., pp. 31 e seguintes. A denúncia das aparências, e do teatro, se coordena à virulenta crítica da técnica, das ciências, das artes. Para nosso desespero, a cultura conservadora - e mesmo progressista - brasileira, pensa como Rousseau, repudia a Enciclopédia.

39 La Folie et la chose Litteraire, Paris, Seuil, 1978, p. 169.

40 F. Dagognet, op. cit., p. 155, reterindo-se à Estética hegeliana.

41 F. Engels, Dialética da Natureza, trad. esp. Roces, W. Mexico, Grijalbo, 1961, p. 217.

42 O Conceito de Natureza em Marx, trad. esp. Prieto, E. Mexico, Siglo Veintiuno, 1976, pp. 30 e ss.

43 J. P. Faye, op. cit.

44 Logik, Werke in zwanzig Banden, v.5, T. 1, pp. 82-3 e 96.

45 Idem, v. 6, T. 11, pp. 572-3.

46 Logik, v. 6, T. II, p. 72.

47 "L'Encyclopedie de Diderot et D'Alembert a également contribué à vulgariser les théories politiques des juriscolsultes (...) Les articles de jurisprudence, rédigé par le Chevalier de Jaucourt ne sont pour la plupart qu'une compilation de Pufendorf, Barbeyrac et Burlamaqui (...) Les articles de Diderot publiés dans les premiers volumes de l'Encyclopedie sont en partie inspirés par Pufendort et Barbeyrac". Derathé cita flousseau: "le Discours sur l'inegalité, ouvrage qui fut plus du gout de Diderot (...) et pour lequel ses conseils me furent les plus utiles...". Jean-Jacques Rousseau et la Science Politique de son Temps, Paris, Vrin, 1970, pp. 32, 81, 82.

48 Diderot, Correspondence Generale, cit. por J. Starobinski, Rousseau: la transparence et l'obstacle, Paris, Gallimard, 1971, p. 297.

49 Starobinski, op. cit., p. 57.

50 "Les idées politiques de Diderot au Temps de l'Encyclopédie", ed. cit., p .97.

51 I. Fetscher, Rousseaus Politische Philosophie, Berlin, H. Luchterhand, 1968, p. 200.

52 Goyard-Fabre, op. cit., p. 113.

53 Le Scepticisme et le Phénomène.Paris, Vrin, 198, p. 66.

54 Publicado em Diderot, Textes Politiques, Paris, Ed. Sociales, 1971, pp. 61-177.

55 "Observations sur l'Instruction de S.M.I.", p. 67.

56 Citado em Jacques Chouillet, "Les machines de Diderot", in La machine dans l'Imaginaire (1650-1800). Revue des sciences humaines, n? 186 , 187, pp. 258-9.

57 Idem, op. cit., p. 259.

58 Jacques Chouillet, loc. cit., p. 260.

59 Cit. por Chouillet, p. 263.

60 "Observations sur l'Instruction de S.M.I", op. cit., p. 78.

61 Op. cit.

62 Op. cit., p. 161.

63 Op. cit., p. 165.

64 "Observations sur l'Instruction de S.M.I.", op. cit., p. 85.

65 Idem, p. 163

66 Idem, ibidem.

67 "Observations...", p. 74.

68 Phisolophie der Geschichte, op. cit., v.12, p. 529.

69 Lettre Apologétique de l'Abbé Raynal a Monsieur Grimm, in Textes Politiques, p. 201.

70 Apostrophe aux Insurgents d'Amerique, Textes Politiques, p. 214.

71 Citado por Yves Benot, "Préface" aux Textes Politiques, ed. cit., p48

72 Barbey d'Aurevilly,Contre Diderot, Préface de Hubert Juin, Paris, Ed. Complexe, 1986.

73 Lettre sur les aveugles. Oeuvres Philosophiques, Paris, Garnier, 1964, p. 123.