Os laços do orgulho. Reflexões sobre a política e o mal.
Prof. Roberto Romano
Unicamp
falax suavitas, blandus daemon… Narcissus-like, we admire, flatter, and applaud ourselves, and think all the world esteems so of us; and as deformed women easily believe those that tell them they be fair, we are too credulous of our own good parts and praises, too well persuaded of ourselves (…) And such for the most part are your princes, potentates, great philosophers, historiographers, authors of sects or heresies… (Robert Burton, “Self-love, Pride, Vainglory”. The anatomy of Melancholy)
Nos últimos estudos de Erich Auerbach encontramos uma densa análise sobre a paixão mais natural do ser humano, reprovada tanto na cultura grega quanto na judaica e que ainda conduzirá a Humanidade rumo aos piores suplícios, mesmo tendo em vista os totalitarismos do século 20. O nosso tempo começou sua carreira sob a marca do orgulho. Auerbach escolheu para dissertar o trecho do Purgatório dantesco:
O Saùl, come in su la propria spada
quivi parevi morto Gelboé,
che poi non sentì pioggia nè rugiada!
A soberba de Saul, “entalhada em baixo relevo no solo do Purgatório”, diz Auerbach, merece pleno cuidado. Na leitura medieval do episódio bíblico, algo mais profundo do que a melancolia surge naquele personagem. O rei usa a própria espada para arrancar o sopro vital que lhe foi concedido (1 Samuel, 31, 4). Apenas o Senhor pode permitir que o alento entre ou saia dos seres naturais. E Saul era um fruto natural. Após todas as suas desobediências, a última definou a máxima rebelião, sem retorno, contra o Altíssimo.
Como entender, em primeiro plano, a referida passagem no poema sublime de Alighieri? No pensamento doutrinário anterior ao vate, durante a Idade Média, a soberba liga-se ao pecado original, à desobediência. Adão, por orgulho, preferiu o seu arbítrio e recusou a ordem recebida. Nesta linha, Saul ergueu-se contra o mandamento divino quando sacrificou na ausência de Samuel, ao manter a vida de Agague, no instante em que guardou a melhor parte do despôjo. Neste passo, o texto é eloquente, sobretudo se lido em nossos dias: “Tem porventura o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrfícios, quanto em que se obedeça à sua palavra?” perguntou Samuel ao rei.
A superbia encontra-se na origem e na fratura final da existência régia de Saul. Auerbach não indica, mas todos os episódios desta tragédia já se anunciam na rebeldia do povo contra Deus. Em 1 Samuel 8, 4-7 temos a chave da maior desobediência, da qual a vivida pelo soberano é corolário: “Vê, já estás velho”, disseram os anciãos a Samuel, “e teus filhos não andam pelos teus caminhos; constituí-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para que nos governe, como o têm tôdas as nações”. E disse o Senhor a Samuel: “Atende à voz do povo em tudo quanto te dizem, pois não te rejeitaram a ti, mas a mim, para eu não reinar sôbre êles”. Estabelecida a recusa popular, os passos dos governantes humanos são previsíveis. Tal povo, tal rei. A politica entra no contexto de maneira direta, sem nenhum caráter alusivo ou alegórico. O ensinamente requer que a soberania divina seja acolhida sem resistências, caso oposto o Estado caminha para a destruição.
Auerbach explica o sentido tipológico da exegese medieval sobre a passagem em foco, sentido inaceitável para os leitores judeus mas importante para a cristandade. Aquela exegese ajudou poderosamente o antisemitismo católico e cristão. A soberba de Saul representaria o sinal precursor da recusa, por seu povo, do Cristo. Assim como Saul, mesmo pecador, foi aceito por Davi como “ungido” (2, Samuel, 1, 14: “como ousaste por as mãos no ungido de Iahweh para tirar-lhe a vida?”) , também Jesus foi morto porque os judeus recusaram, nele, o Cristo. Ambos, Saul e Jesus, seriam ungidos do Senhor. E Auerbach, comenta os versos dantescos : “Saul é interpretado como figura de Cristo, a sua morte anuncia a Paixão e a montanha de Gilboa significa os corações arrogantes dos hebreus que recusam a mensagem de Cristo, e por isto o orvalho ou a chuva da graça divina não cairão mais sobre eles, que não mais produzirão as primícias do campo”. O suposto regicídio (suicídio real na verdade) de Saul, amplia-se desmesuradamente para o deicídio, o que atingiu proporções tremendas na história moderna e contemporânea. As duas suposições se transformaram em certezas e serviram como base teológica para a doutrina de lesa majestade, humana e divina, que alicerçou o Estado moderno. Ambas supõem a separação entre soberano e dirigidos.
O poder, na era da razão de Estado, concentra-se na pessoa do principe. O segredo é o modo de guardar, simbolica ou realmente, a pessoa que assume o centro do mando. Todos os que dela se aproximam para observá-la ou mover seus passos, tornam-se inimigos efetivos ou em potência e são perigosos para o Estado. Este é um modo terrível de se entender o famoso L´État c´est moi, com a noção de lesa majestade. Tintas religiosas nessa experiência trazem a marca do Cristo, quando surge após a ressurreição: Noli me tangere. (João, 20, 17). A pessoa do rei, como Jesus antes de subir aos céus, é intocável sobretudo quando se trata de revoltas e rebeliões, possíveis assassinatos do governante. (4) Na política cristã moderna, o mesmo veto dirigido aos monarcômacos é aplicado contra os judeus e se potencia ao infinito. Os rebeldes cristãos desejaram matar os soberanos temporais. Os judeus teriam o desejo de assassinar o soberano divino. As penas contra os primeiros eram severas. Uma delas foi aplicada em Ravaillac pelo assassinato de Henrique 4 (1610). O rebelde foi esquartejado com ajuda de facas e de espadas, os lambões de seu corpo foram a seguir postos em chamas. A mão que segurou o instrumento mortal foi queimada separadamente. Se uma pena assim foi dirigida a um fiel que matou o rei, é possível imaginar o que se reservou, no subsolo da consciência cristã, para os supostos deicidas. (5)
Sempre é possível dizer, com Jules Isaac, que trata-se de uma “acusação capital unida ao tema do castigo último, a terrificante maldição que pesa sobre Israel, explicando (e de antemão justificando) seu destino miserável, suas mais cruéis provações, as piores violências cometidas contra ele, os rios de sangue que escaparam de suas feridas sempre reabertas, sempre vivas.De modo que,por um mecanismo engenhoso —alternativo— de sentenças doutorais e de furores populares, encontra-se jogado na conta de Deus o que, vista a esfera terrestre, seguramente pertence à incurável vilania humana, aquela perversidade, diversamente mas sabiamente explorada de século em século, de geração em geração, e que atinge seu ápice em Auschwitz, nas câmaras de gás e nos fornos crematórios da Alemanha nazista. Um desses alemães, desses assassinos servís, um dos matadores em chefe (batizado cristão) disse: ´Eu não podia ter escrúpulos, pois eram todos judeus´. Voz de Hitler? Voz de Streicher? Não. Vox saeculorum.”. (6)
Eric Auerbach, no texto citado, nada diz sobre tais implicações. Mas ele tinha pleno saber sobre semelhantes nexos. E quando alguém do seu nível humano cala sobre alguns pontos, é porque o fato posto no silêncio traz enorme dor que ultrapassa o suportável. Auerbach foi judeu e premido pelos tormentos de sua cultura. Com Leo Spitzer, outro judeu da mais elevada formação espiritual, ele sempre esteve “atento aos textos chave e aos movimentos profundos, ao essencial”. (7) Minha pequena suspeita reside no silêncio do intérprete. O texto sobre o “O orgulho de Saul”, termina com uma análise do juízo cristão sobre a recusa de Jesus pela comunidade judaica. Aquele juízo armou tropas e massas contra o povo judeu e lhe abriu as portas do inferno nazista. O não dito no texto de Auerbach, penso, foi uma advertência sobre as origens ideais pouco explicitadas nas políticas do antisemitismo, raízes malditas no solo de uma religião universal —a cristã— que deve reverência máxima ao judaísmo.
O estudo de Auerbach desce fundo pois envolve o sombrio antisemitismo e toca num ponto comum entre as formas judaicas de pensamento e as cristãs, traço que julgo estratégico para a ética dos próximos tempos. Não que ele tenha sido irrelevante no pretérito. Pelo contrário. Refiro-me ao já mencionado tema do orgulho. Como vimos, pela interpretação do grande crítico literário e pelas passagens do livro de Samuel sobre Saul, a soberba integra a essência do poder, quando este imagina separar-se da soberania divina. Os resultados são trágicos para o líder que desobedece e para o povo.
A tradição cristã enxerga no orgulho a origem da ruptura entre Deus e o homem. Na doutrina católica, desde os Evangelhos, o orgulho marcou uma das piores tentações de Cristo, em passagem unida diretamente ao poder político. Importa recordar o apelo de Satan a Jesus: “Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles, e lhe disse: ´Tudo isto te darei se, prostado, me adorares´. Então Jesus lhe ordenou: ´Retira-te, Satanás, porque está escrito : Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto´”. (Mateus, 4, 8- 10). Na Primeira Epístola de João três coisas afastam Deus e homem, a partir dos impulsos deste último: a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos, a “soberba da vida” (2, 16). (8) O útimo elemento liga-se ao poder político, como enunciam os comentaristas abalizados do catolicismo. (9) A fórmula grega (alazoneia) utilizada para expressar superbia (10), tem ao mesmo tempo uma constelação de significados trágicos e ridículos. Na lingua política grega o termo implica a impostura perigosa, sobretudo nos discursos demagógicos que mais imitam o verdadeiro. Os gloriosos são personagens tragicômicos que usam palavras e signos para enganar os incautos. (11) A sátira, sobretudo a de Luciano, relevantíssima na cultura cristã primitiva,(12) nutre-se quase que totalmente da crítica à alazoneia. (13)
No Eclesiástico, livro considerado canônico pela Igreja Católica, o tema do orgulho segue imediatamente após o do bom governo: “tal o governante do povo, tais os seus ministros; qual o que governa a cidade, tais todos os seus habitantes. Um rei sem instrução arruinará seu povo, uma cidade será construida graças à inteligência dos chefes. Nas mãos do Senhor está o governo do mundo; ele suscita, no tempo oportuno, o homem que convém” (10, 2-5). E logo a seguir: “o orgulho é odioso tanto ao Senhor como aos homens, e ambos têm horror da injustiça. O poder passa de uma nação a outra pela injustiça, pela violência e pela riqueza (…) O Senhor derruba o trono dos poderosos e assenta os mansos em seus lugares. O Senhor arranca a raiz dos orgulhosos e planta os humildes em seu lugar. O Senhor destrói o território das nações e aniquila-as até o subsolo” (10, 7-9 e 14-17). A chave da leitura católica encontra-se no versículo 14 desse trecho: Initium superbiae hominis apostatare a Deo (O princípio do orgulho é o homem afastar-se do Senhor). A soberba inspira o afastamento em relação a Deus, mas também suscita a tentativa sacrílega de atingir o divino com as próprias mãos, como na Torre de Babel. Diz o comentário católico, “o escritor sacro foi movido pela convicção profunda de que o governo absoluto de Deus sobre o mundo lhe ensina que a tentativa humana desagradou o Senhor e a narrativa sugere que o pecado foi a desmesura do orgulho humano e da auto-suficência”. (14)
O maior sinal do orgulho, unido à tentativa de exercer contra Deus o poder absoluto sobre o universo, encontra-se na figura de Satan. No trecho que mencionei acima, a tentação de Jesus, resume-se o núcleo do cristianismo no relativo ao nexo entre política e saber religioso. Naquela passagem, Jesus chama o tentador com o seu nome de origem —Satan— enquanto a tradução grega traz a palabra diábolos, cujo significado é “um inimigo”, ou acusador legal. O diabo é o grande acusador do homem diante do Altíssimo. (Jó, 1, 6-2,7).
Na Cidade de Deus (15) Agostinho analisa o orgulho diabólico e o insere na flutuação humana entre guerra e paz, exatamente o campo da luta pelo governo dos homens. Todo ser deseja a paz. Mas também é sedento de glória. E surge o desejo impossível de impor a todos os demais entes a paz que exalta apenas um deles. Agostinho toma de empréstimo a Virgilio a figura de Caco, o malvado. (16) Totalmente solitário, sem mulher, filhos, amigos, sem mesmo seu pai Vulcano, ele só deseja a paz do seu próprio corpo e nada concede aos outros e de todos arranca o que possuem. Sua natureza se rebela contra ele. Mas até mesmo as mais ferozes bestas, afiança o pensador cristão, das quais se deriva sua parte natural, buscam um tipo de paz. Os poderosos que armam guerra para o dominio de outros povos buscam transformá-los em seu povo e assim atingir uma espécie de paz. A sua marca, assinala Agostinho, é a soberba. “Porque a soberba é a imitação perversa de Deus. Ela odeia o companheirismo da igualdade sob Deus e deseja impor seu próprio domínio sobre seus iguais, em lugar do governo divino. Logo, o soberbo odeia a paz justa de Deus, e ama a sua própria paz injusta.”.(17) Temos aí todas as marcas diabólicas do poder, inclusive nas suas extensões imperiais que se afirmam como propositoras da paz quando na verdade impõem apenas certa paz adequada aos seus parâmetros, não aos divinos.
Sed numquid, domine, qui solus sine thypho dominaris, quia solus verus dominus es, qui non habes dominum….. “Mas Senhor, vós que sois o único que sabeis comandar sem orgulho, porque sois o verdadeiro Senhor e porque não tendes um Senhor…”. Todo o capítulo da Confissões que se inicia com essas frases, trata do mando político. Existem ofícios, sobretudo o governo, nos quais os homens são obrigados a desempenhar o papel de amados e temidos pelos dirigidos. Eles recebem a todo instante a tentação demoníaca com a lisonja. “Ótimo, ótimo” é o que diz o diabo quando agem os líderes políticos. O inimigo dos homens quer fazê-los “semelhantes a ele, não por uma união de amor, mas afim de partilhar seu suplício; pois ele quis instalar o seu trono no norte, para fazer de nós, nas trevas e no frio, escravos do perverso e tortuoso imitador da vossa potência”. Duas observações sobre esses pontos. Em primeiro lugar, o termo usado por Agostinho —thypho— para definir o orgulho: a palavra vem do grego para o latim e significa “inchaço”, seguindo-se metafóricamente a soberba. Mas há um outro significado na constelação conceitual do termo. Ele se aplica, desde o saber médico helênico, a diversos tipos de febre marcadas pela estupidez em que se encontra o doente, seguindo-se o embrutecimento que leva à desrazão, ilusão, jactância, vaidade. O enunciado envia também para “enceguecer, como na fumaça” ou ficar cego pela arrogância. As radiações da palavra já se encontram na lingua clássica com sentido cômico Thyphedanos em Aristófanes, quer dizer o estúpido que tem o intelecto nas nuvens.(Vespas, 1364). (18)
Segunda observação: o neo-platonismo usou e distorceu a idéia platônica da imitação do divino pelos homens, a assimilação ao deus. Trata-se da omoiosis na qual o divino penetra nos humanos. Ao longo do pensamento teológico-político medieval, o soberano é apontado como gemina persona, humano por natureza e divino pela graça. O príncipe ostentaria uma tênue semelhança com o Pai invisivel, soberano celeste. O rei legítimo realiza uma christomimesis que pode garantir, na obediência às suas ordens, a submissão ao Senhor. (19) Na literatura cristã primitiva o uso da mimesis entre criaturas racionais e Deus surge na Epístola de Tiago. Nenhum homem consegue domar a lingua, pois ela é mal incontido e cheio de veneno letífero. “Com ela bendizemos ao Senhor e Pai; também com ela amaldiçoamos os homens que foram criados à semelhança (omoiosin) de Deus”. (3, 9) (20)
As características especulares dessa noção definem, durante dois mil anos de vida cristã no Ocidente, o governo do mundo e sua referência mimética diante do divino. Há um diálogo entre certo jesuíta em um chinês que mostra este ponto. Pergunta o padre ao oriental se este imagina, como blasfemador, ser igual a Deus e acredita-se à altura de de finalizar coisas realizadas por Ele? O chinês disse que sim, deixando entender que podia também criar o céu e a terra. O jesuíta é obrigado a anuir, dizendo ser exato que, se falamos de uma coisa, nossa inteligência a percebe como imagem cujo significado na lembrança é o de uma criação. Assim, é possível, sem vê-los, falar do sol e da lua como de uma criação. O nexo entre modelo e reflexo é mimético, e foi estabelecido no pensamento neo-platônico, sobretudo em Plotino. “O espelho está aí”, afirma, “uma imagem se produz (…) o mesmo ocorre na alma. Se esta parte de nós mesmos, na qual surgem os reflexos da razão e da inteligência não é agitada, aqueles reflexos são visíveis alí. Mas se o espelho está fragmentado, devido a uma quebra ocorrida na harmonia do corpo, a razão e a inteligência agem sem refletir-se nele e ocorre então um pensamento sem imagens”. Plotino teve muita relevância para Goethe. O diálogo acima entre o jesuíta e o chinês esteve na mente daquele poeta, o que testemunha o projeto de uma cena do Fausto onde ocorre o debate com Mefisto disfarçado de estudante. Rembrandt antecedeu Goethe na ideação do Fausto especular. Uma gravura de 1652 mostra o doutor na mesa de trabalho ao redigir o pacto com o diabo. Atrás dele há um crânio sobre uma fieira de livros. Na sua frente, a janela ostenta uma roda brilhante que traz a inscrição INRI (Jesus Nazarenus Rex Judeorum) e no seu interior vêm as inscrições ADAM + TE + DAGERAM e AMRTET + ALGA + ALGASTINA. Trata-se de uma aparição divina cuja luz é insustentável e adverte o pactuário. Este ergue-se, desconcertado, com a pena na mão e fixa a imagem, não diretamente, mas num espelho côncavo esférico, sustentado por uma sombra. (21) Todos esses pontos mostram a relevância, ao longo da cultura cristã, ou da que se edificou contra ela, da mimesis teológica. É possível refletir a luz divina de modo correto? Se pensarmos que o espelho sempre inverte o modelo, mesmo as imitações mais fidedignas são infiéis ao original. Se o próprio espelho é distorcido, ou quebrado, a imagem sagrada desaparece e surgem as trevas do ego conquistado pelo demônio.
Quando Agostinho afirma que o diabo imita o divino de maneira tortuosa, e que ele nos incentiva a fazer o mesmo, estabelece que a busca de arrancar do poder as suas luminosas bases celestiais apenas reforça as trevas do mundo. Tudo se transforma no contrário, a partir deste momento. Todas as perversões tornam-se previsíveis. Esta representação agostiniana encontra-se no mais profundo da alma católica quando se trata de pensar o exercício do mando. Naudé, pensador moderno, diz que nos golpes de Estado “tudo se inverte, os efeitos precedem as causas, nada do que se espera ocorre: ´nos golpes de Estado, vemos cair a tempestade que não se esperava rugir nas nuvens, ante ferit quam flamma micet; as matinas são ditas antes que elas soem; a execução precede a sentença (…) um sujeito recebe o golpe que imaginava dar, outro morre quando pensava estar seguro, outro sofre o que não imaginava; tudo se transforma em noite, no obscuro entre as brumas e as trevas´. É cativante ouvir em Naudé os verdadeiros acentos satânicos nesta descrição. Não é uma caraterística diabólica que tudo se faça invertido? As missas negras não se realizam sob os auspícios de uma cruz de cabeça para baixo? Não é possível dar melhor a entender esta consciência da incomensurabilidade dos espaços políticos”. (22) A imitação correta supõe a legítima hierarquia vertical onde todos os entes estão em seu lugar. Amigo dos paradoxos, Agostinho aponta os hipócritas inchados de orgulho que fazem profissão de combater a soberba… de modo soberbo, os chamados “campeões da humildade”, excelentes imitadores de Satan. (23)
O teatro de Shakespeare apresenta semelhantes entes satânicos. Se Coriolano apresenta-se como orgulhoso confesso, Ricardo 3 é hipócrita autor dos golpes de Estado mais terríveis que a mente humana poderá conceber. Na peça, os soberbos são embaídos pela astúcia do grande enganador. É o caso de Lord Hastings que se acreditava invulnerável e defendia a legalidade. Golpe de Estado sim, imaginava ele, mas nos limites do direito. “Três horas antes, ainda, ele defendia a legitimidade, pois recusara associar-se à sua violação evidente. Ele quisera salvar os restos de pudor, de honra. Ele tinha sido corajoso por um instante. Ele tinha sido…”. A cena do poder é noturna e nela “por um curto momento apenas, um raio de sol transpassa no meio dia as nuvens espessas”. Ricardo 3, o golpista, exige que toda a sua entronização seja feita “segundo a vontade popular”. Assim, “ele surge no balcão e diz seu rosário. Ele é rei pela vontade de Deus”. Na escada cósmica e política, Ricardo 3, no início da tragédia, sente-se como um demiurgo poderoso a exemplo do Príncipe maquiavélico. “Mas Shakespeare é mais impiedoso do que o autor do Príncipe. Ricardo 3, quando sobre a escada (…) deixa de ser o carrasco e se transforma em vítima. Ele foi tomado pela engrenagem”. Nos golpes de Estado jamais se diz que eles são feitos para o interesse dos golpistas. A exemplo do rei monstruosamente diabólico, eles usam a legalidade como desculpa (os antigos governantes a desobedeceriam) e as aparências são piedosas. Satan inverte todos os sinais (24) porque iniciou sua carreira na tentativa louca de subverter a escala ontológica que vai do ser divino ao mais humilde ente natural.
Um dos maiores pilares do pensamento católico é Tomás de Aquino. Nele, a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político. Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra-se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador protestante: “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”. Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade é luminosa, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico.(25) É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa. (26) A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino.
Na Summa contra os gentios, Tomás de Aquino comenta detalhadamente a idealização de Satan e acentua o mesmo aspecto hierárquico ensinado por Agostinho. O pecado maior é o desejo de igualar-se a Deus. E isto supõe “o desejo de ser a regra dos outros e não regular sua vontade pela de um outro superior, é querer o primeiro lugar e não querer submeter-se de algum modo: pecado do orgulho. Assim, diz-se com justeza que o primeiro pecado do demônio foi o do orgulho. Mas um erro no princípio é fonte de erros variados e múltiplos; esta primeira desordem da vontade no demônio é a origem de pecados múltiplos em sua vontade; ódio em relação a Deus que resiste ao seu orgulho e pune com justiça sua falta, inveja em relação ao homem, e muitos outros semelhantes”. (27)
Da hierarquia celeste, segue-se a terrestre e política. Repercutem no texto de Aquino os escritos de Dionísio o pseudo-Areopagita, sempre pelo filtro de Agostinho: “um soldado está sujeito ao seu rei e ao seu chefe de exército; em sua vontade ele pode buscar o bem de seu chefe , e não o de seu rei, ou o contrário. Mas se o chefe recusa a ordem do rei, a vontade do soldado será boa se recusar a vontade do chefe em favor da real; ela será ao contrário má, se obedece a do chefe contra a do rei, pois a ordem de um princípio inferior depende da ordem do princípio superior.” As substâncias separadas, adianta Aquino, “não são apenas ordenadas em relação a Deus, mas umas em relação às outras, da primeiro até a última”. (28) O universo inteiro segue, dos anjos aos governantes, a ordem hierárquica essencial. “A bondade da criação não seria perfeita sem uma hierarquia dos bens segundo a qual alguns seres são melhores que os demais; sem isto todos os graus do bem não seriam realizados e nenhuma criatura seria semelhante a Deus por sua preeminência sobre as outras. Assim a bondade última dos seres desapareceria com a ordem feita de distinção e disparidade; bem mais a supressão da desigualdade dos seres arrastaria a supressão de sua multiplicidade: um é o efeito melhor do que o outro pelas próprias diferenças que distinguem os seres uns dos outros, como o vivente e o inanimado e o racional do não racional”. Esta escala cósmica e ontológica (sobremodo axiológica) continua na soberania política: “a perfeição para todo governo é prover os seus súditos no que diz respeito à sua natureza, tal é a noção mesma de justiça nos governos. Do mesmo modo, pois, que para um chefe da cidade, opor-se —se não for apenas de maneira monentânea em função de certa necessidade—a que os súditos cumpram sua tarefa , seria contrário ao sentido de um governo humano, do mesmo modo a sua natureza seria oposta ao sentido do governo divino.”(29)
Aquino, com base na doutrina da hierarquia celeste, escreveu minuciosas observações sobre o livro de Jó. (30) As mais relevadoras, no vínculo entre poder e orgulho encontram-se em notas sobre os derradeiros versículos do poema. Diz Tomás: “após o Senhor descrever as particularidades do diabo sob a imagem do elefante, o maior dos animais terrestres, ele o descreve na figura do Leviatã, ou da baleia que é o maior animal marinho”. O poder do Leviatã não pode ser evitado ao modo humano, pela lisonja ou ameaças. Assim, “o diabo não teme o homem”. A potência de Satan é imensa. E Aquino enfrenta ao seu modo o problema arcaico da teodicéia: Deus não é cruel por ter suscitado o poder demoníaco. “Por tê-lo suscitado não sou cruel”. A onipotência divina não poupará o poderoso Leviatã : “todas as coisas sob o céu são minhas”.
Aquino segue para as linhas finais: “Nenhuma potência sobre a terra é-lhe comparável. Ele foi feito para não temer ninguém. Ele vê grande em tudo; ele mesmo é o rei de todos os filhos do orgulho”. A versão latina, utilizada pelo doutor da Igreja, é a da Vulgata, a mesma que suscitou o imaginário hobbesiano sobre o poder terrestre: non est super terram potestas quae comparetur ei, qui factus est ut nullum timeret. Omne sublime videt : ipse est rex super universos filios superbiae. (31) Ao comentar este passo, o filósofo cristão ressalta a incomparável e indizível força do Altíssimo, infinitamente superior à do Leviatã. Quando o diabo for vencido, “os anjos do Senhor temerão admirando o poder divino; mas nessa admiração muitos efeitos da virtude divina são-nos conhecidos e (o autor do livro de Jó, RR) introduz aqui e o terror os purificará ; com efeito, como diz Dionísio no capítulo 6 dos Nomes divinos (na verdade, trata-se do tratado sobre as Hierarquias Celestes, RR), os anjos são ditos purificados não de uma impureza mas da ignorância; como toda criatura corporal, se comparada aos santos anjos é pouca coisa, não se indica por aí que os anjos celestes estão muito espantados com o cetáceo corporal, a menos que talvez se enxergue homens nestes santos anjos; os anjos de que tratamos assistem a decadência de Satan, o Leviatã espiritual que foi transido pela justiça divina quando caiu do céu pelo pecado, então os anjos admiraram a majestade divina e se purificaram ao separar-se de sua companhia”. (32)
Finaliza Aquino : “…o intento do demônio é agarrar tudo o que é sublime. E como essas coisas são próprias do orgulho (…) o diabo não só em si mesmo é orgulhoso, mas ultrapassa todo o mundo em sua soberba e mostra-se como fonte de orgulho para os outros, (…) ele mesmo é rei de todos os filhos do orgulho, ou seja, dos escravos do orgulho e que o tomam por guia”. Que lições Job (e cada ser humano após ele) tira da parábola do Leviatã? Responde Aquino: “o que mais deveria ser temido por Jó é que o diabo pedisse para lhe tentar , levando-o ao orgulho e ao seu reino; ser-lhe-ia necessário evitar as disposições e as palavras que respiram orgulho” (33)
Apesar dos muitos choques entre o ensino catolico, representado por Tomás de Aquino e as doutrinas protestantes —na interpretação da origem do mal e do poder mundano— existe pouca discrepância nas duas percepções sobre a rebelião de Lúcifer. Tudo o que enunciei sobre o comentário tomista, foi assumido nas várias igrejas e seitas reformadas. Mesmo autores que ajudaram poderosamente a separar o Estado de seus fundamentos religiosos, como Francis Bacon, usam o símile angelico para expor os nexos entre conhecimento e poder político. “O desejo de poder em excesso causou a queda dos anjos; o desejo de saber em excesso, causou a queda do homem”. (34) Essa fórmula adquire um significado grave se aproximada do aforismo baconiano célebre: knowledge and power meet in one. Sim, desde que limites sejam respeitados.
As achegas anteriores permitem-nos visualizar o maior poema cristão sobre o poder e o conhecimento, após o Inferno dantesco. Refiro-me ao Paraíso Perdido. Milton constrói a sua trama e mantem a espinha dorsal da hierarquia, herança do neo-platonismo, certamente de Proclus, mas com muita segurança também de Dionisio o pseudo-Areopagita. Sem ela, fica sem nenhum sentido cada passo do imenso drama cósmico desenvolvido de modo épico. Sobre Milton tudo foi dito e tudo ainda resta a dizer. Saliento apenas o aspecto da soberba que marca, no caminho dos versos, a Queda satânica e o campo da política humana. (35) Como sublime artesão do verso, Milton exercita um imaginário que vai além dos textos e dos motivos encontrados na vasta história do cristianismo ou da cultura judaica e grega que o moldaram. Assim, não se recobrem totalmente os personagens angélicos e suas atribuições, em Dionisio Areopagita e no poeta inglês. (36) Na hierarquia celeste os anjos ocupam os lugares mais próximos do Altissimo, idéia ampliada por Milton com todos os recursos culturais a seu dispôr.
A soberba une-se de imediato à política angélica no Paraíso Perdido. Lucifer, o glorioso, desejou “ombrear com Deus, se Deus se lhe opusesse” e “do Onipotente contra o Império e trono/Fez audaz e ímpia guerra”. Sua marca, desde então, encontra-se na “Soberba, empedernida, ódio constante”. Na queda, ele traz o sinal do medo, algo próximo em demasia ao exercício político: “De sua coma fúlgido privado; Ou quando posto por detrás da lua, /E envolto no pavor de escuro eclipse,/Desastroso crepúsculo derrama/Pela metade do orbe, e os reis consterna/Em seu poder temendo algum desfalque./Obscurecido, mesmo assim fulgura/Mais que os outros arcanjos, seus consócios;/Mas dos raios profundas cicatrizes/Aram-lhe o rosto macerado, aonde/Mil cuidados contínuos se aposentam/Sob o ouropel de intrépida coragem/De ultriz tenção, de refletido orgulho” (37). Nas suas falas aos dirigidos, anjos de escalão menor na via ascendente dos seres, o monarca do inferno é soberbo orador, em todos os sentidos. Domina a retórica com maestria e nela exibe sua plena arrogância. Diante do silêncio temeroso do exército maligno, que teme assaltar o trono divino, “Com orgulho monárquico se expressa : ´Dos céus prole sublime, empíreos tronos, /Sois intrépidos, sim! mas não estranho/Que hoje o silêncio e hesitação vos prendam./É dilatado e aspérrimo o caminho/ Que à luz do Empíreo vai das trevas do Orco”.(38) As indicações do orgulho luciferino são múltiplas, ao longo do poema. Todas conduzem ao mesmo ponto : “Guerrear nos Céus, dos Céus o Rei supremo,/De lá me arrojam a ambição, o orgulho,/Mas…ai de mim! por quê ? Justo e benigno, /De tal retribuição credor não era,/Ele que o ser me deu, que nessa altura/Me colocou imerso em brilho, em glória”. (39)
No sistema doutrinário de John Milton, a recta ratio encarna-se na pessoa do Cristo, sinômino de harmonia e de paz, enquanto Satã é a razão que delira e arma laços para os demais seres. Como diz um comentador, “Cristo é o Logos da cristandade neo-platônica e o agente executivo de Deus, ao mesmo tempo abolindo a rebelião e criando o universo e o homem de acordo com a sua ´grande Idéia`”. (40) Assim, o sistema do mundo e do poder exigem a soberania da razão e da vontade racional sobre as paixões, sobretudo contra a libido dominandi. A grande raiz de todos os males sociais ou éticos encontra-se no orgulho. O mesmo comentador chega a enunciar que “o orgulho e a presunção constituem o tema inteiro de Milton”. Para tudo resumir, “o orgulho que aspira para além dos limites e das necessidades humanos, o desejo de poder pelo conhecimento, é o motivo que se encontra em toda a tentação de Eva por Satan”. Deste modo, Milton teria diagnosticado, na pessoa de Lucifer, os males todos de nossa modernidade, com o naturalismo, o liberalismo sem peias, o orgulho irreligioso. Ele também mostrou “a vontade de potência, pública e privada, a presunção intelectual, o desejo egoista, buscando seus fins pelo uso da força e da fraude e destruindo a ordem divina e natural no mundo e na alma”. (41)
Um trecho do poema suscita debates acalorados entre os comentadores. Trata-se dos versos onde Cristo se dirige à primeira pessoa da Trindade dizendo: “Omnipotente Pai, razão te assiste/Para te rires de teus vãos contrários/E seguro tratares com desprezo/Seus tumultos e ardis, inúteis, fátuos.” (42) O riso divino não é novidade alguma na época. Recordemos Pascal: na célebre 11a Carta a um Provincial encontra-se toda uma teologia do riso contra a presunção tola e orgulhosa dos homens. Segundo Pascal, a própria divindade criou o riso para colocar Adão no seu devido lugar: “nas primeiras palavras ditas por Deus ao homem após a Queda, encontra-se uma caçoada e uma ironia picante (…) pois seguindo-se a desobediência de Adão (…) parece pelas Escrituras que Deus, em castigo, tornou-o sujeito à morte e após tê-lo reduzido à miserável condição devida ao pecado, riu-se dele (…) com palavras de brincadeira, `Eis que o homem tornou-se um de nós`. Ironia cruel e sensível pela qual Deus o espetou vivamente”. Deste modo, o riso foi merecido pelo homem, a quem Pascal nomeia, em italiano, ridicolosissimo eroe !. (43)
O riso divino levanta a questão: todo o Paraíso Perdido armaria uma enorme comédia na qual anjos e homens seriam apenas e tão somente heróis superlativamente ridículos? Esta possibilidade não é alheia à cultura ocidental anterior a Milton. Nas Leis, Platão pede que imaginemos seres vivos, como nós, especies de marionetes fabricadas pelos deuses: “fomos produzidos para o seu divertimento ou para um fim sério? Não o sabemos.”. E. Curtius lembra que Lutero usou, para designar a justificação, o termo Spiel Gottes quando se trata dos homens. Se tragédia ou comédia, não está ao alcance do homem decidir o sentido último da existência. (44) Robert Burton, a grande fonte moderna sobre a melancolia, ao falar dos demônios, lembra o dito platônico: ludus deorum sumus. (45)
É possível enxergar no Paraíso Perdido as duas faces, a cômica e a trágica. O melhor seria percebê-lo como terrível tragicomédia (46) na qual o sentido existencial se perde ou se ganha, conforme a situação do sujeito.(47) C.S. Lewis, em ensaio clássico sobre o Satan de Milton afirma o primeiro traço —o ridículo— como chave hermenêutica. Razão em demasia conduz à loucura. É assim que Lúcifer —o ente em cuja consciência mais se depositou a luz da razão— ensandeceu por completo. Sua razão é louca. Este é o significado da epígrafe de seu texto, posta por Lewis: …le genti dolorosi/ C´hanno perduto il ben de l ´intelleto. (Dante).
Essa lembrança do verso dantesco, devida a C.S. Lewis, tem enormes razões históricas atrás de si, sobretudo no campo da medicina imediatamente anterior ao poema de Milton. Ao estudar a prática terapêutica do século 16, Jean Ceard discute os nexos entre melancolia e influência diabólica. O melancólico é triste como Lucifer, mas “se o diabo pode teóricamente nos aplicar mil doenças, ele no entanto tem predileção pelas que ofendem o cérebro e os nervos”. Se perseguirmos esta via, o demônio de Milton experimenta o seu próprio mal pois é melancólico e perdeu o siso. Ceard lista os acometidos pela enfermidade na Biblia, sobretudo nos escritos cristãos. Alí encontramos um lunático epiléptico ((Mateus, 17, 14 ss), um maníaco licântropo (Lucas, 8, 27 ss), um outro doente de “convulsão da espinha” (Lucas, 13, ss). O diabo prefere “as doenças de nervos e do cérebro, o que deve nos alertar para certo número de representações pouco conscientes e incompletamente formuladas”. Ao analisar os médicos do século 16, Ceard inicia com Fernel para quem a loucura, fruto do jogo dos humores, consiste na “depravação do funcionamento da faculdade principal da alma que reside na substância cerebral como em seu domicílio” e cujo nome latino é desipientia e os gregos são paraphrosyne e paranóia, ou seja, mentis alienatio. (48) A melancolia ao mesmo tempo provoca e destrói o intelecto, “ela é o seu aliado mais eficaz e seu inimigo mais terrível” (Ceard). Segundo Jean Taxil, outro médico da época “os corpos que o diabo possui interiormente são melancólicos, pois é o humor a verdadeira sede , no qual o diabo se apraz, e do qual ele produz tão estranhos efeitos”. (49)
Ao aprofundar seu estudo, Jean Ceard chega ao ponto que nos interessa mais diretamente. A se acreditar nos médicos discutidos, “o gênio e a loucura têm um parentesco secreto, e a inteligência constitui uma perigosa aventura. Ela, quando se esforça por ir além no conhecimento, corre o risco da revolta e do orgulho que ocasionou a queda do anjo Satan. O tema do Fausto pertence à Renascença”. (50)
Embora acreditem nos demônios, pelo menos para fins externos e por receio do juízo popular e clerical, muitos médicos procuraram, no período, causas naturais que explicariam a loucura e a melancolia. O remédio também poderia ser apenas de ordem natural. Saul era melancólico, é verdade, mas seu arrimo veio da música executada por David. E Vallesius afirma, com muitos outros, que a sonoridade musical é um tratamento considerável. (51) E o mesmo Vallesius cita Avicena, numa atitude bem mais secular que enxerga o demonio como um adendo não importante nos casos de melancolia. Diz Avicena : “alguns médicos pensaram que a melancolia ocorre por causa do demônio, mas, quando tratamos coisas físicas, não nos preocupamos em saber se isto ocorre por sua causa ou não, uma vez posto que, se ocorre por ele, então ocorre de tal modo que muda a compleiçãoe a torna melancólica, que portanto a causa próxima do mal é a melancolia, e seja a causa desta o demônio, ou não, isto pouco importa”. (52)
O palco da tristeza e da melancolia une-se às personalidades caricatas que imaginam-se no centro do universo, perseguidas pelo mais poderoso agente do Mal. O egocentrismo passa do trágico ao cômico. Existem mesmo na Renascença os tratamentos burlescos da melancolia, mas a tristeza não é escondida por eles. (53) A melancolia, doença de poderosos e de intelectuais, tra z a marca da loucura orgulhosa. Robert Burton procura excorcizá-la pelo riso, remédio antigo como Luciano de Samosata. A carta prefácio que ele publicou com The anatomy of Melancholy (“Democritus to the Reader”) é um tratado sobre moral, política, religião falsa, saber e soberba. Os homens desconhecem limites e na busca de satisfação absoluta se parecem com bestas feras “salvo pelo fato de que as feras são melhores do que eles, pois se contentam com a natureza”. Principes, diz ele, “desejam uma vida privada, homens privados têm cócegas por honrarias, um magistrado deseja a vida quieta, um homem quieto gostaria de possuir seu ofício (…) e qual a causa disto tudo, senão o seu desconhecimento próprio? Alguns se deleitam em destruir, outros em edificar, outros em roubar um país para enriquecer a si mesmos e a um outro. Em todas essas coisas, eles são como crianças, nas quais inexiste juízo ou conselho”. (54)
Lucifer, na interpretação de C.S. Lewis, seria um ente mimado que se revolta como criança ou adolescente por não julgar-se livre do pai e não receber o reconhecimento de seu alto valor. Hobbes, no De cive, define o homem perverso como uma criança robusta (malus est puer robustus). Satan, menino auto-centrado, pensa e fala apenas de si. Para ele, a alteridade não existe. Ele quer e não quer, por exemplo, a hierarquia dos seres. Ao destruir a si mesmo enquanto eminência celeste, serrou o galho que o sustinha. Ele seria, diz Lewis, “como o perfume de uma flor tentando destruir a flor”. O pobre diabo é menos um mentiroso do que bela mentira. A primeira mentira que nutre a sua revolta é o desejo de ser como Deus, causa sui. Ao mesmo tempo ele se orgulha de sua origem divina e se revolta contra ela, como, repitamos, adolescentes que muitos pais chamam “aborrecentes”.Para ilustrar a figura, Lewis cita Napoleão Bonaparte, quando o dono do mundo não tinha mais brinquedos mortais nas mãos, exilado que estava. “Imagino”, disse o ex-Imperador, “o que Wellingnton está fazendo agora? Ele nunca ficaria satisfeito com a situação de uma pessoa privada”. Satan e Napoleão jamais conseguem perceber o mando na perspectiva da cidadania “simples”.(55) O demonio divide com os políticos a irresponsabilidade ética. Ele não pode mesmo vingar-se no Altissimo. Solução: vinga-se de Deus nas figuras de Adão e de Eva, gente que nunca lhe fez mal. Age como o covarde dos romances que, não ousa enfrentar um duelo e decide ir para casa bater nos empregados.
A decadência satânica —de anjo a monstro¬— passa, segundo Lewis, pela sequência cômica: “de herói a general, de general a político, de político a agente do serviço secreto que bisbilhota janelas de banheiros ou de dormitórios, depois desce ao nível do sapo e finalmente é serpente”. Um ser intoxicado com o veneno de seu ego, eis Satan. Podemos rir dele, mas Lewis se apressa a dizer que Milton produz o diabo com os materiais encontrados nos humanos. Tudo nele, sobremodo o político, traz as marcas de nossa humanidade pervertida e monstruosa. Infinitamente entediado por encontrar apenas a si mesmo, ele mente e discursa numa contínua propaganda e no culto à sua personalidade. Lewis não diz explícitamente, mas seu texto foi redigido na época do totalitarismo, quando as figuras ridículas de Hitler e de Mussolini, aliadas à de Stalin, ainda estavam frescas na memória. A insistência do crítico na propaganda e no culto à personalidade indica esta situação miserável. (56)
Apesar de sua força persuasiva, a tese de Lewis encontra limites, sobretudo porque o cômico satânico resulta em tragédias como as Guerras Mundiais e o Holocausto. Assim, sua hipótese de leitura foi corrigida por Helen Gardner num ensaio denso e provocativo sobre Satan e a danação. A autora mostra que Milton segue o modelo elizabetano da tragédia e que seu herói perverso pode encontrar modelos mais do que plausíveis em Shakespeare ou Marlowe. Macbeth, pelo poder, Dr. Faustus, pelo saber, ambos são moldes verossímeis para a construção de Lúcifer. Enquanto o diabo era cômico na Idade Média, na era renascentista ele se encarna nos personagens que buscam ultrapassar todos os limites do mando e do conhecimento.
Como o anjo caído, os reis danados do teatro shakespereano, como recordei na figura de Ricardo 3, embora tenham livre arbitrio, desejam a danação porque ela lhes garante a posse ilusória da soberania perene, imortal. No palco trágico, a danação, essencial no poema de Milton, se oferece com todas as suas possibilidades. Uma das marcas mais graves, que também fora enunciada por Lewis, é a solidão do poder. Satan pratica o solilóquio com frequência, o mesmo fazem os heróis perdidos de Shakespeare. As tentações sobre Eva pela serpe recordam muito as falas da senhora Macbeth, as insinuações de Iago e tantos outros caracteres mais. A busca do poder pelo poder, a solidão do mando, as astúcias e dissimulações da raison d´état, tudo isto traz a marca do Malefício. Se o poema de Milton fosse apenas cômico, o seu assunto seria uma “serpente infernal”. Mas o poeta nos apresenta um arcanjo caído. “Não haveria dificuldade se Satan fosse apenas um Iago; o difícil surge porque ele é Macbeth”. (57) Ou melhor, ele não seria a síntese horrível de Iago e de Macbeth ?
O orgulho serviu para Hobbes e Spinoza como tema diretor da análise política. Ambos, no entanto, transferem as sendas éticas do empíreo para o mundo finito e abolem a noção filosófica e religiosa da hierarquia cósmica e social. Hobbes secularizou o Leviatã, que não mais indica o prototipo do Mal mas figura a multidão que fornece a carne do Estado.(58) Com a mudança, o orgulho mantem um estatuto pernicioso. Ele não é pecado contra o Altissimo mas obstáculo para a constituição da res publica. Hobbes foi leitor da Biblia mas também seguiu as linhas do pensamento grego. Sua tradução da Guerra do Peloponeso o prova. (59) Um dos trechos que mais o marcou, naquela obra, é o cerco à ilha de Melos no qual toda a arrogância ateniense veio à tona. No capítulo 5, parágrafos 85 e seguintes vemos as causas do fim inglório do império. Os habitantes de Melos não querem ser reduzidos à servidão e oferecem amizade aos de Atenas. Estes recusam e exigem total entrega. Melos se recusa. Seus homens são exterminados, suas mulheres e crianças conduzidas como escravos. A dureza dos generais anuncia, da Grécia aos nossos dias, a face mais violenta da raison d´État ensandecida pelo orgulho. (60)
Assim, quando prepara a justificação do Estado absoluto, Hobbes tem plena consciência dos prejuízos trazidos pela arrogância dos indivíduos. Ele frequentou muito a República e tem pleno domínio das razões avançadas por Platão não apenas naquele texto, mas em todas as suas obras. Há um ponto essencial nos considerandos do filósofo grego quando se trata de garantir a polis : o controle da filáucia. O que produz a tirania? O amor de si mesmo. A filáucia, em Platão e na filosofia ocidental “é o contrário da amizade efetiva. O livro nuclear neste plano, encontra-se nas Leis (Livro 5, 731 d). É sintomático que, naquele diálogo, no trecho sobre o amor de si, o sujeito acometido de idiotismo seja comparado ao ´amante, cego no relativo ao ser amado, sendo péssimo juiz das coisas justas, boas, nobres´. A paixão impede o conhecimento e a prática do bem. A pior paixão, nós a temos quando amamos a nós mesmos acima de tudo. A frase platônica referida à filáucia impressiona: ´Há um grande mal, o maior de todos, que o maior número de homens tem, e que lhes é congenital. Com ele, cada um é cheio de auto-indulgência e ninguém dele pode escapar. Este mal chama-se amor próprio. Acrescentemos que esta ternura do homem para consigo mesmo pertence à sua natureza e que ele causa nossos erros, pelo afeto que temos para conosco (…) O grande homem não acaricia nem a si mesmo, nem as coisas que são de sua propriedade, mas o que é justo. (…) O governo tirânico é exercício de auto-erotismo e temor generalizado. ´Uma das singularidades do tirano é procurar suprimir não só os seus inimigos, mas também destruir os que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com franqueza, o que é sinal de uma amizade verdadeira. (República, 8, 567 b)”. (61)
O pior mal da polis é o amor que os indivíduos têm para consigo mesmos. Ele desatrela a guerra pelo mando tirânico, onde todos são inimigos de todos. Se recordarmos que o mesmo filósofo compara o tirano ao lobo, temos uma idéia do fundo imagético utilizado por Hobbes afim de descrever os piores impecilhos na busca de atenuar a luta na matilha humana e produzir a paz. A filáucia é fonte de arrogância e esta exige ordens e precedências, impõe hierarquias entre os seres humanos. Para instaurar o Estado, pensa Hobbes —num ataque direto à tradição medieval e ao pensamento aristotélico-tomista, com as citadas tintas de Dionisio o Pseudo-Areopagita— todas as supostas hierarquias devem ser abolidas de imediato. No ítem “Sobre o homem” do Leviatã, o autor refere-se à nona lei da natureza contra o orgulho. “A questão de saber quem vale mais nada tem a ver com o estado simples da natureza, onde todos (…) são iguais. A desigualdade de hoje foi introduzida pelas leis civís. Sei bem que Aristóteles, no primeiro livro da Política, põe como fundamento de sua doutrina que os homens são, por natureza, uns mais dignos de mandar (…) os outros de servir…”.
Hobbes toca no ponto dolorido de toda a hierarquia. É importante lembrar que o neo-platonismo resultou de uma síntese de alguns temas platônicos e de outros aristotélicos. Nesta segunda vertente se determina uma escala hierárquica de todos os entes em relação ao seu fim último. Assim, os homens são desiguais por natureza. Este ponto encontra-se subsumido na escala do Pseudo-Dionísio, o que definiu o pensamento cristão medieval, como vimos em Tomás de Aquino, com sua idéia de uma escala hierárquica, dos arcanjos ao humilde camponês e a recusa da igualdade. Esta corrente aristocrática gerou as ordens medievais, com todo o seu orgulho, o que impedia, no tempo de Hobbes, a instauração do Estado monárquico nacional. Na França, Richelieu domou os orgulhosos barões e os colocou para adular o rei em Versalhes, na Alemanha, conforme indica Norberto Elias, os aristocratas resistiram mais tempo, até o século 20, como impecilhos do Estado. Na Inglaterra, a mensagem hobbesiana foi percebida como perigo pelos donos dos feudos e dos cargos. De Aristóteles, passando pelo Pseudo-Dionísio, a ordem a ser destruída se baseava no orgulho e na honra dos nobres. A destruição dessa corrente doutrinária e costumeira que imperou durantes milênios na vida social, foi lenta e difícil. A Revolução Francesa definiu um marco contra a fantasmagoria aristocrática e clerical. (62)
A edição latina do Leviatã deixa explícita a recusa da hierarquia entre os homens. Diz o autor : “Não existe hierarquia (ordo) entre os homens no estado de natureza”. (63) Desejar uma suposta hierarquia natural ou metafísica é garantir o orgulho que impede o Estado. Assim, Hobbes enuncia a “nova lei da natureza : cada um reconheça o outro como seu igual por natureza. A infração deste preceito é o orgulho”. (64) Desta lei, o autor avança para a outra que lhe é co-essencial: na paz, ninguém pode exigir reservadamente nenhum direito que não se exija reservadamente aos outros. Agir como se os direitos vitais e cívicos fossem privados, é arrogância. Esta última não conhece limites. “Os que observam esta lei são o que chamamos homens modestos, os que a desobedecem, arrogantes. Os gregos chamam a violação desta lei pleonexia, ou seja, o desejo de ter mais do que a parte adequada”. (65)
Além das advertências bíblicas contra o orgulho e das lições platônicas, Hobbes nutriu-se das letras renascentistas, com o ensino de elegância cortesã, tentativas para domar os barões que impediam o nascimento do Estado moderno. Um dos seus mais abalizados comentadores, Quentin Skinner, diz que “os moralistas da era Tudor também se concentram num outro grupo de virtudes, que encaram como, talvez, as mais importantes de todas. São elas a modéstia, a moderação e a humildade, características do que sabem agir com afabilidade e evitar todas as manifestações de altivez, arrogância e orgulho (…) Todos encaram o pecado do orgulho como o mais mortífero dos sete pecados mortais, ao passo que as qualidades da humildade, da moderação e até da sprezzatura, são especialmente valorizadas”. (66)Sem modéstia, sem Estado. Sem Estado, sempre a guerra entre indivíduos, a tirania permanente, sempre orgulho. Assim, a vida em comum, a política, segue a arte dos limites das ambições e das maneiras, arbitrada pelo soberano. (67)
Em Spinoza ocorre uma outra visão do orgulho, embora o alvo também seja o de permitor a vida política. “Acontece facilmente que o homem tem de si mesmo e da coisa amada uma opinião mais vantajosa do que seria justo, e, ao contrário, da coisa odiada uma opinião menos vantajosa do que seria justo. Essa imaginação enquanto se aplica ao homem que tem de si mesmo uma opinião mais vantajosa do que seria justo, chama-se orgulho, e é uma espécie de delírio, pois o homem sonha, com os olhos abertos, que pode fazer tudo o que atinge apenas com a imaginação, considera-o como real, e exalta-se com isso, enquanto que não é capaz de imaginar o que exclui a existência disso e limita a sua própria capacidade de ação. Portanto, o orgulho é uma alegria nascida do fato de um homem ter de si mesmo uma opinião mais avantajada que o que seria justo.”. (68) Um dos maiores impecilhos para a vida comum na política, é o desejo que todos os indivíduos possuem de reduzir os outros ao próprio modo de viver, de pensar e de imaginar os outros como projeções do ego. “este apetite, num homem que não é conduzido pela razão, é paixão, que se chama ambição e não difere muito do orgulho”. (69)
Apesar de todas as diferenças teóricas entre Hobbes e Spinoza, (70) notemos que ambos conceitualizam o orgulho como uma ruptura dos limites, sobretudo da modéstia. Na Ética, a definição de modéstia é todo um tratado da política democrática em prol da liberdade e da alegria de viver em conjunto: “a modéstia, o desejo de agradar aos homens, que é determinado pela razão, refere-se à piedade (…) Mas se ela nasce de uma afecção, é ambição, por outras palavras, um desejo pelo qual os homens a maior parte das vezes excitam discórdias e sedições por uma falsa aparência de piedade. Com efeito, aquele que deseja ajudar os outros, por conselhos ou por ações, a gozarem ao mesmo tempo do bem supremo, esse procurará sobretudo conciliar o seu amor e não fazer-se admirar por eles, de maneira que este método seja denominado pelo seu próprio nome. Procurará também não dar, absolutamente, nenhum motivo de inveja. Depois, nas conversas comuns, evitará referir os vícios dos homens e tomará cuidado em não falar senão parcimoniosamente da impotência humana, mas falará largamente da virtude, ou seja, da potência humana e da via pela qual pode aperfeiçoar-se de maneira que os homens, levados não pelo medo ou pela aversão, mas só pela afecção da alegria, se esforcem por viver, quanto possível, segundo os preceitos da razão”. (71)
Ao contrário do orgulho, a alegria e o conhecimento, bases de uma sociedade democrática, são comunicáveis e ajudam o convívio humano. Em vez da busca auto-erótica destrutiva, o caminho do saber e do respeito mútuo leva à tranquilidade partilhada. Segundo Spinoza, o desejo de conhecer as coisas é contagioso : “o bem que o homem deseja para si mesmo e que ele ama, ele o amará com maior constância se vê que outros o amam e, por conseguinte, ele se esforçará por fazer de modo que os outros o amem, e como este bem é comum a todos, e todos podem com ele experimentar alegria, ele se esforçará por fazer com que todos experimentem alegria”. (Ética, 4, proposição 37). A beatitude suprema, como diz Geneviève Brykman, é comunicavale a todos. (72)
O orgulhoso exclusivista adora lisonjeadores, ama os parasitas sociais, e odeia os generosos. Este é o ensino da Proposição 57, do livro Quarto da Ética. Aqui, em Spinoza, notamos a sabedoria política mais antiga, já enunciada em Platão, sobre a filáucia e a lisonja. Retomemos o texto platônico: “Uma das singularidades do tirano é procurar suprimir não só os seus inimigos, mas também destruir os que, por terem sido seus iguais ou cúmplices, a ele se dirigem com franqueza, o que é sinal de uma amizade verdadeira” (República, 8, 567 b). O bajulador, sofista ou demagogo, assume aparências de fala amiga, mas o discurso veraz exige disciplina, sobretudo na amizade. Quem lisonjeia deixa os amigos nas horas negras, toda pessoa franca enfrenta o próprio amigo, para seu bem, e nunca o abandona. A lisonja acostuma, segundo Platão, o corpo e alma aos prazeres. Spinoza? Vejamos: “os orgulhosos amarão a presença dos parasitas ou dos aduladores (omiti as definições destes por serem assaz conhecidas) e fugirão da presença dos generosos, que têm deles uma opinião exata”.
Sem falar uma palavra de Satan, personagem que ele bem conhecia por sua cultura religiosa, judaica e cristã, Spinoza descreve todas as marcas do Maligno, secularizando-as in totum na Ética. O indivíduo orgulhoso é impecilho para o Estado democrático porque propaga o culto de si mesmo, culto baseado em paixões e idéias falsas, e quebra todos os limites da razão. Façamos uma rápida comparação, naturalmente considerando o secularismo radical de Spinoza. Satan, por inveja, desejou o governo celeste, só recebeu como resultado uma tristeza infinita. Ele é fechado à alteridade, o filauta por excelência. Satan é crudelíssimo e covarde. “Seria demasiado longo enumerar (…) todos os males do orgulho, pois que os orgulhosos estão sujeitos a todas as afecções, mas a nenhumas menos que às afecções do amor e da misericórdia” (Ética 4, proposição 57, escólio). O mais importante, entretanto, na análise spinozana do orgulhoso, é a tese posta no escólio da mesma proposição: o ódio e a inveja do orgulhoso (pois ele é necessariamente pleno de inveja) não podem ser facilmente vencidos pelo amor ou pelo favor. O ser orgulhoso “só se deleita com a presença dos que lhe mostram mais complacência e de estúpido o fazem doido (et eorum tantummodo praesentia delectari, qui animo ejus impotenti morem gerunt, et ex stulto insanum faciunt)”.
Deleite, um sentido assim marca o soberbo que desconhece limites para a obediência dos outros ao seu egoísmo. Também o Satan de Milton: seu deleite é jogar laços para os homens, enganando-os com a luz celeste, seu apanágio antes da Queda. Baldine Saint Girons acentua a polissemia do uso, no Paraíso Perdido, da palavra delight. A tentação maligna vem ao homem como deleite e horror, é um delírio (de lacio, laço) luminoso que envolve o sujeito humano. (73) Satan perde o siso por orgulho e presunção. O mesmo ocorre com o ente humano que se deixa embair nas cantilenas da lisonja e do inchaço subjetivo. Ambos, o arcanjo de Milton e o soberbo descrito na Ética almejam, por falta de aplausos sinceros que apenas o amor pode garantir, tiranizar os demais entes sem nenhum obstáculo, o que é loucura.
Tanto Hobbes quanto Spinoza insistem nos limites do ser humano, e indicam o quanto a soberba nutre-se da ruptura com toda medida. Ambos levam adiante e modificam as doutrinas milenares sobre a moderação no uso do corpo e da alma. A prudência filosófica mostra o perigo da exclusividade de um dom humano sobre os demais, especialmente quando se trata de moral ou política. No De anima, Aristóteles diz que os sentidos ficam inativos ou se destroem, quando são ultrapassados limites e medidas. A vista não enxerga se a luz é insuficiente e, no inverso, ela pode enceguecer por um excesso de luz. No dominio da ética, a virtude é algo a ser medido. Virtude em demasia, ou racionalidade em excesso passam ao seu contrário.(74) Lúcifer expande luz demasiada para os demais anjos e para os humanos. Sua luz é sombra apenas da luz divina.
Em Platão, a perda das medidas é corrigida através de modelos de virtude que precisam ser imitados pelos indivíduos. Estabelecer medidas torna-se a tarefa mais árdua dos que têm por missão guardar o Estado. O bicho homem, segundo o coro teatral de Antigona, é a maravilha do mundo. Ele pode se conter em limites ou fugir para o ilimitado e, neste caso, com a mesma palavra que serviu para desenhar o ente humano enquanto benéfico (Deinos), o poeta indica que foi ultrapassada a barreira do terror e isto se chama hybris. Um analista daqueles versos de Sófocles enuncia coisas que hoje cabem perfeitamente ao terrorismo: "é pela hybris, este movimento impetuoso, que o homem se arranca da situação que lhe foi dada, com força e veemência que o fazem sair do curso comum da vida. Mas neste gesto ele só chega a sair da vida comum perdendo todos os pontos de comparação que poderiam lhe permitir ordenar a própria vida, como se ele entrasse num espaço novo sem mapa nem bússola e, para dizer tudo, capaz do melhor e do pior. Capaz do melhor porque é carregado pelo impulso do espírito. Capaz do pior quando se deixa fascinar pelo exercício de sua própria violência". (75)
Lucifer deseja atingir o Altissimo e seu reino, e apenas consegue impor uma liturgia pervertida em seu Estado. O orgulho impede a paz trazida pelo Leviatã em Hobbes e a alegria democrática em Spinoza. O mundo conheceu muitos governantes que servem perfeitamente no modelo ideado por Milton e pela filosofia ética. A marcha da soberba é célere nos tempos modernos. Não tenho espaço nem tempo aqui para discutir o culto do indivíduo e do satanismo político no pensamento romântico. Uma perfeita descrição desse ideário encontra-se na Comédia Humana. Cito E. Curtius no bonito livro sobre Balzac, exatamente o capitulo sobre “O Poder”.“Vautrin é monstruosamente belo. Leia-se a carta de adeus de Lucien a Vautrin: nela, Balzac resume tudo o que o apaixona naquela figura rebelde de um esteta moral, homem luciferino: ´Existem os filhos de Caim (escreve Lucien) e os de Abel (…) No grande drama humano, Caim representa a oposição. Tua descendência é a de Adão por tal linha, uma linha pela qual o diabo continuou a alimentar o fogo cuja primeira centelha foi jogada sobre Eva. Entre os personagens demoníacos desta familia encontramos de vez em quando natureza tremendas e poderosamente organizadas, que resumem em si toda a energia humana e assemelham-se a certos rapinadores do deserto, cuja vita tem necessidade de espaços desmesurados…Quando Deus quer, estes seres enigmáticos são Moisés, Átila, Carlos Magno, Maomé, Napoleão, mas quando Ele deixa enferrujar no fundo dos oceanos por uma geração estes instrumentos gigantescos, eles se tornam um Pugacëv, um Fouché, um Louvel ou o padre Carlos Herrera. Eles dispõem de um poder enorme sobre as almas fracas, as atraem e destróem. É um espetáculo grandioso no seu genero. É a planta venenosa e colorida que fascina a criança no bosque. É a poesia do mal…”. Comenta Curtius, com acuidade perfeita: “Vautrin se remete ao Paraíso Perdido de Milton, que é apenas ´uma apologia da revolta´. Quando foi traído, caiu nas mãos da polícia, os passantes experimentam um misto de horror e de admiração face à atitude do ´poeta infernal´. `O seu olhar era o do arcanjo caído, que exige guerra eterna`. O que Lucifer é entre os anjos, Caim o é entre os homens. `Uns descendem de Caim, outros de Abel; o meu sangue é misto: sou Caim para os inimigos, Abel para os amigos”. (76)
Uma correta síntese do satanismo na literatura romântica, apesar dos anos que passaram desde sua publicação, encontra-se no livro pioneiro de Mario Praz, La carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica (1930), especialmente no capítulo 2, “As metamorfoses de Satan”. (77) Praz acentua o traço mais saliente de Lucifer, a sua melancolia. Este é o grande motivo das formas românticas. A razão em demasia conduz à loucura. “O impulso para conservar a si mesmo é o primeiro e único fundamento da virtude” ( Ética, 4, proposição 22, corolário). Este enunciado spinozano foi muito mal compreendido na filosofia moderna. Infelizmente autores como Adorno e Horkheimer ajudaram muito nesta incompreensão.(78) Se lida ao modo daqueles representantes da chamada Escola de Frankfurt, a frase significaria o máximo do individualismo burguês, um lugar comum da civilização ocidental. Mas ela precisa ser posta no contexto da escrita (algo que para Adorno, é certo, não conta muito visto os seus passeios rápidos em mais de dois mil anos de cultura, que vão de Ulisses ao executivo das empresas capitalistas, como se o mesmo impulso dirigisse os personagens) e nesta o seu lugar não é, certamente, no mesmo sentido do egoísmo e do orgulho invejoso. A precaução de Spinoza para com os limites, a passagem à loucura pelo excesso dos princípios que, limitados, são perfeitamente saudáveis, deixa bem clara a sua exegese. O prisioneiro no campo de concentração, o perseguido político, sabem muito bem que o único fundamento é conservar a si mesmo. Mas isto não os retira da comunidade e dos valores inter-subjetivos, muito pelo contrário. Quem chegou a ser “incômodo” para os poderes tirânicos tem plena consciência dos seus iguais. Só que lutar por si mesmo e por eles, em situações extremas, é uma só e mesma coisa. Por este motivo a prudência deve guiar os seus passos, visto que a temeridade e as bravatas apenas adiantam o fim de seus dias e, com ele, o de muitos companheiros.
Elias Canetti, no monumento à política e à moral chamado Massa e Poder, mostra os limites que o mando pode encontrar, mas indica que a tendência à auto-conservação dos tiranos é, infelizmente, a regra diabólica. O poderoso, como Lucifer, está sempre à busca de aumentar o seu reino, mas não em proveito dos outros, apenas pensando em si mesmo. Ele percebe apenas um aspecto do conatus sese conservandi: o egoísta. Assim, o indivíduo que entra no círculo do poder se caracteriza sobremodo pela “sobrevivência”. Um personagem serve a Canetti como fio condutor da mencionada sobrevivência. Trata-se de Flavio Josefo. Ao comandar a resistência aos romanos da fortaleza de Jotapata, ele escapa enquanto todos os defensores do lugar ou se matam ou são mortos pelos inimigos, alguns são aprisionados. Josefo se esconde numa cova, situada ao lado de uma cisterna. Alí, encontra quarenta homens que pretender resistir a qualquer custo. Mas o lugar é denunciado. Os romanos prometem vida a Josefo, que tem uma visão profética, ou supostamente profética: foi-lhe revelado que os judeus seriam vencidos. Os amigos de Josefo agora, são os romanos e os seus inimigos os que estão com ele na cova, os judeus que desejam suicidar, para não cair nas mãos dos romanos. Ele tenta dissuadí-los com o veto religioso ao suicídio, mas percebe que só conseguirá escapar, se todos os que estão na cova morram. E propõe um sorteio, no qual não fica bem claro se houve ou não truques de sua parte. Quem retira a sorte mata o próximo, e assim sucessivamente. Josefo não mostra escrúpulos no caso deste assassinato plural, um suicidio coletivo. Todos morrem, para que ele possa salvar-se.
E termina Canetti: “O engano é total. É o engano de todos os condutores. Eles fingem estar encabeçando a marcha de seus subordinados para a morte. Na verdade os enviam na frente para eles próprios poderem salvar a própria vida. O ardil é sempre o mesmo. O condutor que sobreviver; ele se fortalece nisto. Quando tem inimigos aos quais possa sobreviver, muito bem; quando não os tem, continua tendo seus próprios companheiros. De qualquer forma, ele utiliza ambos, alternadamente ou de uma só vez. Os inimigos são utilizados abertamente, afinal, é para isto que eles são inimigos. Os companheiros só podem ser utilizados às escondidas”. (79) A passagem para o absoluto, o caminho rumo ao infinito, define o poderoso, que sempre deseja mais poder, e mais poder, como Satan.
Não existe limite no acúmulo de mando e se alguém obstaculiza este desejo, morre. Tudo o que ultrapassa os limites atinge a loucura. Assim, diria eu, Satan não deseja apenas o poder, mas a glória o esplendor sublime sem nenhuma escuridão em si mesmo, e toda obscuridade nos outros. Canetti também apresenta, como num quadro sinótico, a proximidade entre o glorioso e o tirano. “A massa do maníaco de glória é formada por sombras; ou seja, por criaturas que não têm outra razão de viver senão a de pronunciar um nome muito determinado (…) O rico coleciona montes e rebanhos. No lugar destas coisas está o dinheiro. Os homens não lhe interessam; para ele é suficiente o fato de poder comprá-los. O detentor do poder coleciona homens. Os montes e rebanhos nada significam para ele, a não ser que necessite deles para a aquisição de homens. Mas ele quer homens que vivam, para arrastá-los ou para levá-los consigo à morte. Os que nasceram antes e os que nascerão depois têm para ele importância seundária. O famoso coleciona coros. Destes, quer escutar apenas o seu nome. Eles podem estar mortos ou vivos, ou podem nem ter nascido ainda; tudo isto lhe é indiferente. Basta que sejam numerosos e que tenham sido exercitados em repetir seu nome”. (80)
Satan deseja assaltar os céus, invadir o terreno que foi seu na partilha celeste e que hoje pertence ao inimigo. Sua plena soberba se transmuta em ódio pelo Cristo e por seu Pai. Esta é uma estratégia enlouquecida, aconselhada pelo orgulho. A sedução de Deus é uma outra estratégia não menos louca. E agora o presidente Schreber torna-se, na pena de Canetti, o grande modelo dos poderosos mundiais. Eles querem sobreviver, mas o tempo fornece limites para as suas vidas. E vem a tentaç\ao luciferina por excelência, a da eternidade. Conquistado Deus, o eterno permite a existência plena, liberada até mesmo da sobrevivência. Os poderosos desejam ser Deus, um novo Deus, e buscam deglutir a antiga divindade. Nota-se um aprofundamento dessa experiência demoníaca em relação às anteriores, dantesca ou miltoniana.
Dentre os desejos de Schreber está o de invulnerabilidade frente à massa dos mortais, além da volúpia de sobreviver à custa dos subordinados, a mais forte inclinação dos poderosos. Deus é o máximo poder. Schreber termina sua delirante narrativa com um "fato". Enquanto juiz e poderoso, escreve, "tudo o que ocorre refere-se a mim. Eu me converti para Deus no homem absoluto ou no único homem, em torno do qual tudo gira, ao qual deve ser relacionado tudo o que ocorre e o qual, a partir do seu próprio ponto de vista, também deve referir todas as coisas a si mesmo".
O paranóico sempre se percebe cercado pois "seu inimigo principal jamais se contentará com atacá-lo sozinho. Sempre procurará atiçar contra ele uma malta odiosa, soltando-a no momento exato. Os membros da malta a princípio se mantêm ocultos, podem estar por toda parte". Para o poderoso, todos conspiram contra ele. Seus inimigos são uma totalidade homogênea. Indivíduos, para os poderosos da história, se diluem em massas compactas. O poderoso desmascara os supostos indivíduos, reduzindo-os ao Inimigo. Só ele, inocente, pode sentenciar milhões à morte. (81)
Segundo Canetti, a paranóia de Schreber liga-se diretamente ao poder. Ela é a normalidade dos homens numa sociedade de massas. No delírio, o juiz alemão insere a própria massa dos homens em seu corpo e em sua alma, digerindo-a. Os homens não existem para ele enquanto indivíduos autônomos, mas se diluem em multidões de pequenos entes ameaçadores. “Qualquer tentativa de análise conceitual do poder será mais pobre do que a clareza da visão de Schreber. Todos os elementos das circunstancias reais estão nela: a intensa e contínua tração sobre os indivíduos que irão se reunir numa massa, sua intenção duvidosa, sua domesticação, sua miniaturização, o fato de se amalgamarem no poderoso que representa o poder político em sua pessoa (...) o sentimento do catastrófico que está vinculado a tudo isso, uma ameaça à ordem universal...”.
Com Schreber ficamos informados de que Deus, detentor do poder, tem partidos e seu reino reúne províncias. Para aumentar o seu mando, Deus elimina os homens incômodos. A impressão que temos ao ler o livro do juiz alemão, diz Canetti, é que “Deus está em guarda, como uma aranha, no centro da teia política”. Quando se percebe que na terra um Salvador representa Deus —Schreber sintetiza em sua pessoa o Soter religioso e o político— captamos a extensão da paranóia instalada no indivíduo que ocupa o cargo de julgador dos homens e de mando sobre eles.
Schreber disputa com o artífice das leis, na tentativa de se fazer Deus. “Um doente mental”, enuncia Canetti, “que passou seus dias vegetando numa clínica, pode, pelos conhecimentos que proporciona, ser muito mais significativo do que Hitler ou Napoleão, e iluminar a humanidade a respeito de sua maldição e de seus senhores”. Nas Memórias, Schreber indica que as tentativas de dominação que sofreu por parte de seres minúsculos se caracterizavam sobretudo pelas perguntas e ordens. Comenta Elias Canetti: “Como instrumentos do poder, ambas são bem conhecidas; como juiz, Schreber mesmo as tinha manipulado exaustivamente”.
“Tudo o que ocorre refere-se a mim. Eu me converti para Deus no homem absoluto ou no único homem, em torno do qual tudo gira, ao qual deve ser relacionado tudo o que ocorre e o qual, a partir do seu próprio ponto de vista, também deve referir todas as coisas a si mesmo”. O comentário de Canetti sobre a atitude do juiz que domina, soberano, o mundo social, e para quem os homens nada significam a não ser que sejam integrados numa multidão, é perfeito: “Vêm-nos à lembrança algumas representações da iconografia cristã: anjos e santos, todos apertados lado a lado feito nuvens, às vezes como nuvens de verdade, nas quais apenas olhando-se com muita atenção percebem-se as cabeças individuais”. A forma angélica, definitivamente, une-se aos desejos de mando humano, o que passa pela domesticação impossível do divino. No caso de Schreber, “seu delírio, sob o disfarce de uma concepção antiquada do mundo, que pressupõe a existência dos espíritos, é na realidade o modelo exato do poder político, que se nutre da massa e que é composto por ela”. O juiz louco sempre pensou que Deus desejava destruir seu intelecto. Ele perdeu o siso por desejar a preservação absoluta de seu gênio, como no lamento dantesco sobre os que perderam a inteligência. Como nos doentes de melancolia renascentistas, o inimigo ataca os nervos de Schreber, só que agora o adversário não é o diabo, mas o próprio Deus. Trata-se, então, de se transformar em mulher para o prazer divino, o que é uma forma de lisonja. O jogo entre Deus e Schereber é uma trágica mimesis, pois o espelho da sua inteligência se quebrou. Schereber tudo faz para desarmar Deus e isto é luciferino.
Finaliza Canetti : no caso de Schreber “não se pode negar que seu sistema político chegou a obter grandes honras algumas décadas mais tarde. Numa versão mais brutal e menos ´culta´, ele se transformou no credo de um grande povo”. O líder daquele povo “chegou à conquista do continente europeu e, por pouco, ao domínio do mundo”.
Nos dias de hoje, diz Canetti, o poder é mais fugaz do que nunca. Todos sobreviverão ou ninguém sobreviverá. Se o mando é rápido e desaparece, mais veloz do que nunca, a escada blasfema do poder, que mira conquistar o Eterno, torna-se cada vez mais alta e vertiginosa. “Quem subiu demasiadamente rápido ao ponto mais elevado, ou quem de alguma forma conseguiu apropriar-se do poder supremo, pela própria natureza de sua posição vive dominado pelo medo de mandar e deve tentar libertar-se dele. A ameaça contínua, da qual ele se vale e que constitui a essência propriemanente dita do sistema, se volta finalmente contra ele. Esteja ou não realmente ameaçado por inimigos, ele sempre se sentirá ameaçado. A ameaça mais perigosa vem de sua própria gente, a quem sempre dá ordens, que está mais próxima dele, que o conhece bem (…) A morte como ameaça é a moeda do poder”.
Conclusão
O alvo dessas reflexões é discutir o quanto o poder possui de luciferino, com todas as marcas do anjo terrível. Deixamos o século 20 e logo nos portais do nosso tempo caimos na guerra generalizada, nas lutas entre potências, no orgulho dos nacionalismos. Ao mesmo tempo testemunhamos a razão louca de Estado, mímesis diabólica que operou em atentados terroristas fanáticos — como os de 11 de setembro ou dos que instalam bombas em seu corpo e alma— cuja réplica consiste na diminuição dos direitos humanos no mundo e na própria sede do poder imperial. O crepúsculo do século anterior reafirmou o homem como lobo sedento de sangue. Basta recordar os milhões de mortos na África e no Camboja. A sombra totalitária não foi exorcizada, pelo contrário, ela está mais presente do que nunca na midia e na propaganda, cujo nome diabólico é Mentira.
Na luta pelo mando dos homens, religiões milenares e venerandas convivem, em seu interior, com rebeldes ao compromisso de igualdade e respeito na fé. Alguns chefes de Igreja, como foi o caso do Pontífice Católico, proclamam a essência superior de seu credo sobre todos os demais. Enquanto isto, líderes de outras tradições calam-se ou incentivam assassinatos e horrores inauditos. O fato de que tais sentenças de morte coletiva serem proibidos nos seus escritos sagrados, aumenta a violência daqueles atos. “É preciso não transformar Deus num punhal”, disse um dia o ateu Denis Diderot. Ele sabia perfeitamente sobre o que falava, porque grande número de crentes sucumbe à tentação por ele denunciada.
Enquanto as querelas teológicas renascem, com a morte de milhares e a destruição da esperança de vida melhor no planêta, ameaças políticas, econômicas, sociais, científicas renovam o arsenal de horrores futuros, caixas de Pandora atômicas, a partir das quais são devorados o espaço e o tempo que nos restam. Sabemos que o nosso mundo tem um tempo, contado em milhões de anos é verdade, mas finito. Um dia ele será pó, de onde saiu. Enquanto ele puder constituir uma casa para nós, seria de todo necessário que nos dedicássemos carinhosamente à sua manutenção.
O saber cresce em escala geométrica nos países poderosos e segue ritmo lento na via nos pobres. Os primeiros, soberbos, proclamam-se “superiores”, classificando-se como “guardiões da civilização”. Ainda não digerimos a Revolução Francêsa e o sentido da igualdade entre as nações. A ONU permanece como sonho de paz internacional, sonho que passa todos os dias ao pesadêlo das lutas e da falta absoluta de segurança. Se Hans Jonas apelou para o sentido de nossa responsabilidade diante do planêta, sua voz não foi ouvida e talvez nunca o será. Os donos do mundo julgam-se elevados o bastante para julgar o que é o Bem e o que é o Mal, quem é bom e quem é perverso. Eles se arrogam o monopólio da Justiça. E isto é luciferino.
A propaganda e a midia seguem o rumo da pior violência, ao bombardearem os intelectos com delírios de consumo e de grandeza. No quinto exercício espiritual, previsto para a primeira semana de retiro, Santo Inácio de Loyola (1492-1556) diz o seguinte: "com os olhos da imaginação, veja-se o comprimento, a largura e a profundeza do inferno... (ouça-se) os choros, os urros, os gritos, as blasfêmias....(cheire-se) a fumaça, o enxofre, e as coisas em estado de putrefação....(experimente-se com o paladar) as lágrimas, a tristeza, o verme da consciência....(toque-se) as lavas de fogo que envolvem as almas e que as queimam". Aquelas visões foram realizadas nos campos nazistas,onde o inferno abriu a garganta e devorou milhões de seres humanos. Na porta daqueles espaços, a ordem moralista : "O trabalho liberta". Canetti diz que a invenção mais tremenda dos homens é a do inferno. Depois que ele foi produzido na imaginação, todos os tormentos seriam previsíveis. Santo Inácio manda que os cinco sentidos sejam exercitados, possibilitando o pandemônio na consciência. Não bastam os olhos, são requisitados o gosto, o tato, o olfato. Todo o corpo transforma-se em fábrica diabólica. Estamos longe, em termos de tecnologia, de alcançar a perfeição de um aparelho que sintetize os cinco sentidos. Mas a midia se esforça para trazer, apenas com a vista e as orelhas, o inferno à nossa casa, ao nosso corpo, aos nossos corações e mentes. Ainda não inventaram uma TV com sabores, gosto, cheiro. Mas Santo Inácio poderia propor esta forma de imprensa como auxiliar na tarefa de produzir o inferno. O cheiro e o gosto, se eles chegassem ao público, seriam o da podridão, essencial nos excrementos da alma. (82)
O antisemitismo cresce nos últimos tempos, disfarçado de mil maneiras, depois de se esconder, como brasa sob as cinzas, na vergonha experimentada por um átimo após a Segunda Guerra Mundial. Somente o diálogo poderia franquiar as portas de um futuro pacífico para todos os povos e religiões. Mas o futuro não se define sem plena consciência do pretérito. É por esse motivo que realizei uma anamnese das doutrinas sobre o poder e o satanismo. Satan mora nos mesmos palácios governamentais, habita as mesmas casernas, especula nas mesmas bancas de sempre. E se disfarça, não raro, sob a máscara da piedade. Sem o passado, não existe futuro. No caso do antisemitismo, como diz Jules Isaac, “enquanto as igrejas e os povos cristãos não reconhecerem suas responsabilidades iniciais (…) o anti-judaísmo manterá sua virulência. O arcebispo de Nova York constatou outrora que existe na Inglaterra um antisemitismo latente; ele existe em toda parte e seria surpresa se ocorresse o contrário : pois a fonte permanente deste antisemitismo latente é o ensino religioso cristão sob todas as suas formas, a interpretação tradicional e tendenciosa da Escritura, interpretação da qual tenho a convicção absoluta de que ela é contrária à verdade e ao amor d´Aquele que foi o judeu Jesus”. (Jesus e Israel).
Enquanto religiões não dialogam, a intolerância, os ódios, tudo conspira para indicar que vivemos sob o signo de Caim. Dormimos sobre bombas atômicas postas em ninhos da desgraça cósmica no Oriente e no Ocidente. As finanças se dirigem à indústria bélica, arrancam migalhas de pão dos frágeis seres humanos para entregá-las aos especuladores do deus mercado. É preciso, diante deste quadro dantesco, repetir com Elias Canetti que “existe algo horrível no esgotamento dos deuses (…) Deus esperou e agora sai do átomo”.
Não é permitido parolar sobre ética ou valôres quando se atingiu o estágio presente do mundo. Nada do que assistimos é novidade, mas tudo vem potenciado de modo inaudito, o tráfico de armas, das drogas, da morte, da corrupção política, do fanatismo. Como sempre, temos na Biblia a alternativa contra a cegueira, o espelho dos tempos: “não é possível ler a Biblia sem indignação nem sem deixar-se seduzir. Nela, os homens são palhaços, tartufos, despotas! E o que não se faz contra ela! Ela é a digna imagem e o digno modelo da humanidade, um ser grandioso, feito ao mesmo tempo de claridade e de sombras. Ela é a verdadeira torre de Babel, e Deus sabe disto” (Canetti). Tanto Deus sabe que jamais deixou de chamar, para que deixássemos o orgulho que sussura ao nosso ouvido —extrema lisonja— a pretensa superioridade sobre os que respiram o mesmo hálito que nos foi concedido. Ele chamou nossos pais no Paraíso, depois do pecado, chamou os homens durante milênios. Ele chama e ouve. Emudecemos e ficamos surdos. “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. Não é preciso nem prudente dizer mais.
Notas
1) “Ah, Saul! Como alí eras visto com a tua própria espada, morto em Gilboa, que depois não voltou a sentir tombar nem chuva nem rocio!”. As próximas considerações devem-se todas ao texto de Auerbach, do qual extraio a súmula de suas análises. Cf. Auerbach, Erich : `L´ orgoglio di Saul”, in Studi su Dante, Milano, Feltrinelli, 1995, pp. 269 e ss.
2)Segundo a Biblia de Jerusalem (SP, Paulinas, 1973, p. 466). Na Vulgata : “Quare non timuisti mittere manum tuam ut occideres christum Domini?” (2 Regum, 1, 14 in Biblia Sacra Vulgatae Editionis, S. Apostolicae Typographi Ac Editores, Marietti, 1959, p. 233).
3)Cf. Auerbach, E. op. Cit. Pp. 270-271.
4)Cf. Jean-Pierre Chrétien-Goni: “Institutio arcanae. Théorie de l´institution du secret et fondement de la politique”. In Lazzeri, Christian, e Reynié, D. : Le pouvoir de la raison d´état. Paris, PUF, 1992, pp. 135 e ss.
5) Para uma análise do ponto de vista cristão, cf. Albert de Rochebrochard: “Juifs et Chrétiens au temps de la rupture. Essai historique”, na Internet, o texto pode ser encontrado na página http://web.wanadoo.be/rupture/frame.htm O autor procura indicar que a idéia de um verdadeiro deicídio seria impossível para os cristãos primitivos, pois suporia de fato pensar que Deus estivesse submetido à força humana. Ele estuda a expressão théo-ktonoi, termo criado pelos padres da Igreja para designar os que mataram Deus, e indica que para os padres da Igreja os atores do suposto deicidio são vários, incluindo os romanos, e não apenas os judeus. De qualquer modo, trata-se de um trabalho feito por Rochebrochard com base em autores judeus e cristãos, num espírito que parece distante das sombras antisemitas que, infelizmente, ainda hoje são fortes no cristianismo.
6) Jésus et Israel. Paris, Fasquelle, 1959, pp. 351-552. Existe tradução para a nossa lingua, realizada pela Editora Perspectiva.
7) Cf. Alberto Vàrvaro, “Prefazione” a Auerbach, E. : San Francesco , Dante, Vico e altri saggi de filologia romanza. Roma, Reiuniti Ed., 1987, p. 8.
8) Na Vulgata: “Quoniam omne quod est in mundo concupiscentia carnis est, et concupiscentia oculorum, et superbia vitae” (ed. Cit. P. 1214).
9) No mundo político ocorre “um desejo incontrolado de honras, estima, hierarquia, pompa e espetáculos, ligados aos vicios do orgulho, ambição, vanidade, e auto-exaltação”. Cf. A Catholic Commentary on Holy Scripture, Bernard Orchard (Ed.), London, Thomas Nelson and Sons Ldt., 1951, p. 1187,
10) Cf. Novum Testamentum Graece et Latine (Libreria Editrice Vaticana, Vaticano, 1981) p. 1262.
11) Cf. John Hesk, Deception and Democracy in classical Athens (Cambridge, University Press, 2000), p. 232.
12) Cf. Emilio Mattioli : Luciano e l ´Umanesimo. (Napoli, Nella Sede dell`Istituto, 1980).
13) Braham, R.B. : Unruly Eloquence. Lucian and the Comedy of Traditions. (Cambridge, Harvard University Press, 1989).
14) Cf. A Catholic Commentary….ed. cit. p. 192.
15) Livro 29, capítulo 12.
16) Eneida, 8, 190 ss. Dante retoma a figura de Caco o ladrão fraudulento que procura um outro ladrão, o qual ousou blasfemar o nome de Deus. “Ov´è, ov´è l ´acerbo?”. Todo o campo semântico do trecho liga-se à soberba monstruosa. Cf. Inferno, Canto 25, 13-27.
17) Cito na tradução inglêsa de R.W. Dyson. Cambridge, Univ. Press, 1998, pp. 933-936.
18) Cf. P. Chantraine, Dictionnaire é tymologique de la langue grecque, histoire des mots, (Paris, Klincksieck, 1984), V. 2, p. 1147.
19) Cf. Ernst H. Kantorowicks : The King´s two bodies (Princeton, New Jersey, University Press, 1970), pp. 87 e 93/94.
20) Joseph M. Willmouth: “An Exegetical Word Study and Commentary (King James Version)” http://www.bibleteacher.org/James05.HTM. Para a idéia neo platônica e política do termo, cf. Ada Neschke-Hentschke: Platonisme Politique et Théorie du Droit Naturel. (Louvain/Paris, Éditions de l ´Institut Supérieur de Philosophie, 1995), p. 97. O tema serviu, não raro, para jogar sobre o pensamento de Platão, sombras místicas alheias a ele. Maria Sylvia Carvalho Franco, em trabalho Inédito sobre o Renascimento, discute com rigor estas mutações que fazem de Platão um místico, ao modo de Ficino, desconhecendo a materialidade mesma dos diálogos.
21) Para esta passagem, cf. Jurgis Baltrusaitis, Le miroir essai sur une légende scientifique. (Paris, Le Seuil, 1978), p. 88
22) Naudé é citado em Etienne Thuau: Raison d´État et pensée politique à l ´époque de Richelieu, (Athènes, Ed. de L´Université de Paris, 1966), Cf. Jean-Pierre Chrétien Goni, op. cit. pp. 135-136.
23) Cf. St. Augustine´s Confessions, trad. William Watts (Cambridge Massachusets, Harvard university press, 1979, coll. Loeb Classical Library, 17, Latina), Livro 10, capítulos 36, 37, 38. pp. 182-193.
24) Toda esta passagem é extraída de Jean Kott: Shakespeare, notre contemporain. (Paris, Payot, 1978), pp. 29-49.
25) Estudo há bom tempo esta doutrina hierárquica. Considero os seus detalhes desde a minha tese de doutoramento sobre a Igreja e a política (Cf. Roberto Romano, Brasil: Igreja contra Estado, SP, Kayrós Ed. 1979). Ainda julgo insuficientes os elementos teóricos para publicar um livro sobre o tema. Mas penso que ele é essencial para se entender os pressupostos da política católica, tanto no interior quanto no relacionamento da Igreja com a sociedade civil e política. Desde Lorenzo Valla, o estudo desse autor foi modificado, a partir do seu próprio nome. A partir das análises filológicas de Valla, a lenda que envolveu a suposta presença de Dionisio no areópago, quando Paulo de Tarso pregous aos incrédulos gregos o Cristo. Todo o tema é difícil e fascinante, mas não posso desenvolver, aqui, os seus meandros. Os leitores que desejem informações sobre o assunto, leiam os textos do próprio Dionísio. Uso para os fins deste trabalho a edição dirigida por Maurice de Gandillac, Oeuvres complètes du Pseudo-Denys, l´Aréopagite (Paris, Aubier, 1943), e também a edição magistral da Hierarquia Celeste (Cf. Roques, René, Heil, Günter, et Maurice Gandillac : Denys l ´Aréopagite, L´Hierarchie céleste, Paris, Cerf, 1958). Para uma síntese compreensiva do problema, cf. Paul Tillich : A History of Christian Thought. From its Judaic and Hellenistic Origins to Existentialism (NY, Touchstone Book, 1967).
26) Ainda hoje um livro sugestivo é o escrito por Arthur O. Levejoy: The Great Chain of Being (Cambridge, Harvard University Press, 1936 e 1964). Para o assunto tratado neste ponto de minha exposição, cf. o capítulo III, “The chain of being and some internal conflicts in medieval thought”, pp. 67 e ss.
27) Somme contre les Gentils, Trad. Bernier, R. e outros, (Paris, CERF, 1993), Livro 3, CIX, pp.651-653.
28) Somme….ed. cit., Livro 3, p. 653.
29) Somme, Livro 3, LXXI, ed. cit. pp. 550-551.
30) Cf. Job, un homme pour notre temps de Saint Thomas d´Aquin, Exposition Littérale sur le livre de Job (Paris, Tequi, 1980).
31) A Septuaginta usa o termo Basileus para indicar o Leviatã, o rei dos orgulhosos. Cf. Septuaginta, Stuttgart, Deutsche Bibelgesellschaft, 1979, p. 842. A tradução de Lutero une o fato régio e a animalidade do poder: “…er ist König über alle stolzen Tiere”. (…ele é o rei de todos as feras arrogantes”) Cf. Lutherbibel erklärt, Stuttgart, Deutsche Bibelgellschaft, 1987, p. 816. Na Biblia do Rei Tiago 1 da Inglaterra, o enunciado diz “He beholdeth all high things; he is a king over all the children of pride”. Cf. The New Scofield Reference Bible, Authorized King James Version, NY, Oxford University Press, 1967, p. 599.
32) Tomás de Aquino, Job un homme…. Ed.cit. pp. 568-569.
33) Aquino, Job un homme…ed.cit. p. 571. Para um correto comentário sobre o livro de Jó e o problema do governo absoluto de Deus sobre o mundo, Cf. Moshe Greenberg, “Jó” in Robert Alter e Frank Kermode : Guia Literário da Bíblia (SP, Unesp Ed. 1997), pp305 e ss, sobretudo páginas 321-322.
34) Cf. Francis Bacon: “Of Goodness & Goodness of Nature” : “The desire of power in excess, caused the angels to fall; the desire of knowledge in excess, caused man to fall: but in charity there is no excess; neither can angel, nor man, come in dan ger by it. The inclination to goodness, is imprinted deeply in the nature of man; insomuch, that if it issue not towards men, it will take unto other living creatures”. Cf. Francis Bacon, The Moral and Historical Works, London, George Bell & sons, 1874, p. 33.
35) Uso como texto base a edição de Scott Elledge: John Milton, Paradise Lost (NY/London, W.W. Norton & Company, 1975). Será também utilizada por mim a tradução de A.J. Lima Leitão, O Paraíso Perdido (BH/RJ, Villa Rica Ed., 1994).
36) Para uma exposição autorizada sobre o tema, cf. West, Robert West: Milton and the Angels. Athens: University of Georgia Press, 1955.
37) Paradise Lost (I, 589-604). Ed. Scott Elledge, p. 23.
38) Paradise Lost (II, 430 ss) Ed.Scott Elledge, p. 39.
39) Paradise Lost (IV, 41 ss). Ed. Scott Elledge, 79.
40) Cf. Douglas Bush, “Paradise Lost: Religious and Ethical Principles”, in Arthur E. Barker (Ed.) Milton. Modern Essays in Criticism. (London/NY, Oxford University Press, 1977), p. 167.
41) Douglas Bush, op.cit. p. 171-174.
42) “Mighty Father, thou thy foes/Justly hast in derision, and secure/ Laugh´t at their vain designs and tumults vain,/Matter to me of glory, whom their hate /Illustrates, when they see all regal power/Giv´n me to quell their pride, and in event/Know wether I be dextrous to subdue /They rebels, or be found the worst in heav´n”. Paradise Lost, 5, 736-743, Ed. Scott Elledge, p. 122.
43) Cf. Roberto Romano, “A superior maestria do riso”, in Lux in Tenebris (SP, Unicamp Ed, 1987), p. 18-20.
44) Cf. E. Curtius, La littérature européenne et le moyen-âge latin. Trad. J. Brejoux (Paris, PUF, 1956), sobretudo o capítulo VII, 5 : “Les métaphores relatives au théâtre”, pp. 170 e ss.
45) Robert Burton (1577-1640) : The Anatomy of Melancholy, (NY, New York Review of Books, 2001), p. 326.
46) Desenvolvo algumas idéias sobre o tema no prefácio que escrevi para o livro que reúne peças teatrais de Elias Canetti. “A crítica do narciso coletivo é uma arte aprimorada desde a Grécia (a referência de Canetti a Aristófanes e à linhagem dos grandes satíricos mostra-se decisiva), fincando raízes também na cultura bíblica. Vanitas vanitatum... et omnia vanitas. Talvez nenhum refrão seja mais repetido -e no entanto mais eficaz para descrever a tolice humana, insuportável quando o intelecto reflete a si mesmo, entenebrecendo o mundo e seus fundamentos. A glória, a vanglória, o saber arrogante que se confunde com a ignorância, as análises de tudo isso foram potenciadas ao máximo no encontro, durante o helenismo, entre a cultura grega e a judaica Renascença e Reforma, ambas mergulhando nas águas mais profundas da Grécia e do povo israelita, levantaram monumentos literários nos quais, até hoje, brilha a mais fina ironia já lançada sobre os habitantes irritadiços de Babel. (…) O mundo moderno é sandice e loucura (…). Em semelhante mundo, como num espelho mágico, tudo aparece de cabeça para baixo, invertido e pervertido…”. Cf. Roberto Romano: “Prefácio” a Elias Canetti: O Teatro Terrível (SP, Editora Perspectiva 2000).
47) Desde remotas épocas a forma literária em O Paraíso Perdido confunde os analistas. Juizos categóricos conduzem a recusas e a teses problemáticas, como a de Hegel: “Milton parece tendo-se em conta a sua época, um modelo digno de admiração, seja pela cultura reunida por meio do estudo da antiguidade, seja pela correta elegância da expressão. Ele, no entanto, é absolutamente inferior a Dante na profundidade de conteúdo, na energia, na originalidade da invenção e fatura e particularmente pela objetividade épica. De fato, de um lado o conflito e a catástrofe do Paraíso Perdido pende para um caráter dramático, de outro (…) a tendência lírica e didascalico-moral constitui um traço peculiar de se afasta muito do assunto, no que diz respeito à forma original”. Cf. GWF Hegel, Estetica, Trad. N. Merker e n. Vaccaro, (Milano, Eunaudi, 1976, T. 2), p. 1241. Os “defeitos” encontrados por Hegel são pequenos, se o diagnóstico do filósofo é comparado a outras exegeses.
48) J. Fernel, Universa Medicina, 3a-.ed. Francfort, Wechel, 1574, p. 515, citado por Jean Ceard: “Folie et demonologie au XVIe siècle”, in Colloque International Folie et Déraison à la Renaissance. Bruxelles, Editions de l´université, 1976, pp. 128 e ss.
49) Jean Taxil, Traicté de l´epilepsie, maladie vulgairement appellee au pays de Provence, la gouttete aux petits enfants, Lyon, 1602, ch. 2, citado por Jean Ceard, op. Cit. p. 137.
50) Jean Ceard, op. Cit. p. 138.
51) F. Vallesius, De iis quae script sunt physice in libris sacris, sive de sacra philosophia, Lyon, Fr. Le Fevre, 1587, p. 77, citado por Jean Ceard, op. Cit. p. 141.
52) O trecho de Avicena é citado por Vallesius, op. cit.
53) Cf. Hyacinthe Brabant : “Les traitements burlesques de la folie aux XVIe et XVIIe siècle”, Colloque International Folie et Déraison…ed. cit. pp. 75 e ss.
54) O texto de Robert Burton foi reeditado em várias ocasiões e muito repetido nas análises sobre a loucura dos poderosos e dos intelectuais Cf. The Anatomy of Melancholy, Introduction of W.H. Gass (NY, The New Yorok Review of books Ed., 2001). Excelente apreciação do tema, que rendeu inclusive uma lúcida interpretação de Rousseau, encontra-se em Starobinski, Jean: Histoire du traitement de la mélancolie, des origines à 1900. (Bâle, Geigy). Com este livro, Starobinski iniciou o que ele mesmo chama “a descida aos infernos” da cultura moderna. Neste caminho, Rousseau, la transparence et l´obstacle (Paris, Gallimard) é um ponto decisivo. Trata-se alí de expor os sentimentos de um filósofo ensandecido, mas cujos enunciados são dos mais agudos, captando os maiores problemas da sociedade e da política modernas.
55) Quantos assim existem na política! São eles que exigem para si foros privilegiados e determinam quem, na polis moderna, é cidadão de primeira e de segunda classe.
56) Para toda esta passagem, cf. o ensaio completo de C.S. Lewis, “Satan”, in Arthur E. Barker, op. cit. pp. 196-204.
57) Cf. Helen Gardner: “Milton´s ´Satan´ and the theme of Damnation”, in Arthur E. Barker, op. cit. pp. 205-217.
58) Considero essencial nas exposições de Hobbes o aspecto secularizador. Mas reconheço que existem outras leituras em plano contrário, as quais apresentam excelentes argumentos.Cf.Gabriel L. Negretto : “Hobbes’ Leviathan. The Irresistible Power of a Mortal God” na página da Internet com o seguinte endereço eletrônico: http://www.giuri.unige.it/intro/dipist/digita/filo/testi/analisi_2001/8negretto.pdf. O autor analisa com bastante extensão o tema do orgulho na perspcetiva do Leviatã. Em sentido oposto ao seu, cf. Michel Villey: “Acredito que os resultados jurídicos do sistema hobbesiano contradizem de modo direto os primeiros princípios do Decálogo. Hobbes forjou com suas mãos um novo ídolo, um novo Baal, uma torre sacrílega de Babel, o Leviatã, o estado, o ´monstro fio´ (…) ele é um dos responsáveis pela descristianização da Europa (…) considero Hobbes um precursor das novas religiões que subjugam a Europa contemporânea: religião do homem, de sua liberdade, de sua razão, e do Estado moderno”. “Positivisme juridique moderne et christianisme”, in Cristianesimo, secolarizzazione e Diritto Moderno. A cura do Luigi Lombardi Vallauri e Gerhard Dilcher (Milano, Giuffrè Ed., 1981), pp.213-215. Na leitura do autor, Hobbes concedeu em demasia a Cesar, em detrimento do Altissimo.
59) Cf. Thucydides, The Peloponnesian War, The Complete Hobbes Translation, with notes and a new introduction by David Grene, London, The University of Chicago Press, 1989.
60) Na tradução de Hobbes indicada, pp. 364-372. Friedrich Meinecke inicia ou seu tremendo livro sobre a Razão de Estado com a citação de Tucidides, exatamente no episódio de Melos. Cf.L´Idée de la raison d´état dans l´histoire des temps modernes, trad. Maurice Chevalier,Genève, Droz, 1973, p. 31.
61) O item das Leis é extraído da tradução de L. Robin das Oeuvres de Platon. (La Pleiade, p. 784). O trecho entre parêntesis é de Roberto Romano : “Uma questão de costumes” in Lerner, Julio (ed.) Cidadania, verso e reverso. SP, Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania, 1998, pp. 192-193. Um livro importante para o assunto, é o de Jean-Claude Fraisse: Philia, la notion d´amitié dans la philosophie antique (Paris, Vrin, 1984).
62) O autor que mais permite pensar sinteticamente a passagem do aristocratismo para a modernidade, neste ponto, ainda é Hegel, sobretudo na Fenomenologia do Espírito. Cf. La Phénomenologie de l ´Esprit (trad. Hyppolite, J. ), “L´Esprit” (T.2). (Paris, Aubier, 1941).
63) Cf. Léviathan, trad. François Tricaud de l´anglais, annoté et comparé avec le texte latin. Paris, Sirey, 1971, p..153, nota 93.
64) “That every man acknowledge other for his Equall by Nature. The breach of this Precept is Pride”. Leviathan, Ed. C.B. Macpherson, Penguin, 1977, p. 210.
65) Leviathan, ed. Cit. pp.211-212.
66) Cf. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. Trad. Vera Ribeiro, (SP. Unesp Ed., 1997), p. 115.
67) Cf. Skinner, Quentin, op. cit. p. 426.
68) “Superbia vocatur, et species Delirii est, quia homo oculis apertis somniat….Est igitur Superbia Laetitia ex eo oritur, quod homo de se plus justo sentit”. Cf. Bento de Espinosa, Ética. Joaquim de Carvalho, (Lisboa, Relogio d´Agua Ed.1992), pp. 292-293. Trad. Appuhn. Charles, bilingue (Paris, Vrin, 1977), p. 293.
69) Ética, 5, proposição 4, ed. Joaquim de Carvalho citada pp. 449-450. ed. Apphun citada, p. 179.
70) Para as relações entre os dois pensadores, cf. Stuart Hampshire, Spinoza (Harmondsworth, Penguin, 1951), sobretudo o capítulo “Política e Religião”.
71) Ética, 4, apêndice cap. 25, ed. Joaquim de Carvalho citada, pp. 436-437. Apphun, pp. 158-159.
72) Cf. G. Brykman, La judéité de Spinoza. (Paris, Vrin, 1972), pp. 75-76.
73) Cf. Baldine Saint-Girons,”Introduction” a Ed. Burke, Recherche philosophique sur l ´origine de nos idées du sublime e du beau. E. Lagentie de Lavaisse (Paris, Vrin, 1973). Citado em Roberto Romano, “O sublime e o prosaico: revolução contra-reforma”, in O Caldeirão de Medéia (SP, Ed. Perspectiva, 2001) p. 273.
74) Cf. Lambros Couloubaritsis: “L´un comme mesure de toutes choses”, in Jean-Claude Beaune (ed.) La mesure instruments et philosophie. (Paris, Le Cham Vallon, 1994), p. 200). Cf. Roberto Romano, “A razão terrorista” Revista Mosaico (BH, Fundação João Pinheiro, 2001), republicado em O Desafio do Islã e outros desafios (Ed. Perspectiva, São Paulo, 2004).
75) Cf. François Chirpaz, “L´hubris selon Eschyle et Sophocle”, in Jean-Claude Beaune (ed.) La mesure… ed. Cit. p. 200.
76) Cf. Ernst R. Curtius, Balzac, trad. Vincenzo Loriga, (Milano, Il Saggiatore di Alberto Mondadori, 1969), pp. 132 e 138. Apesar de seu conhecido conservadorismo, e talvez devido a ele, o autor capta a carga demoníaca na crítica do poder moderno em Balzac, outro conservador mais do lúcido.
77) Uso a tradução inglesa de Angus Davidson: The romantic agony (Oxford, Oxford University Press, 1979, 2a ed.).
78) Cf. Theodor W. Adorno e M. Horkheimer: “Le concept d´”Aufklärung” in La dialectique de la raison, fragments philosophiques. Trad. E. Kaufhol (Paris, Gallimard, 1974), p. 45.
79) Cf. Massa e Poder, Trad. R. Krestan (Brasilia, Editora UNB, 1986), p. 267.
80) Massa e Poder, ed. cit. pp. 442-443.
81) Todos estes passos são extraídos de O Desafio do Islã e outros desafios.
82) Este parágrafo integra O Desafio do Islã.
sábado, 29 de março de 2008
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