quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Roberto Romano texto lido e comentado no 1º Seminário de Ética e Decoro Parlamentar. 2003


DEPARTAMENTO DE TAQUIGRAFIA, REVISÃO E REDAÇÃO

NÚCLEO DE REDAÇÃO FINAL EM COMISSÕES

Câmara dos Deputados.

CONSELHO DE ÉTICA E DECORO PARLAMENTAR

EVENTO: Primeiro Seminário Nacional de Ética e Decoro Parlamentar

DATA: 09/12/03 - INÍCIO: 14h18min - TÉRMINO: 17h57min



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O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Subcontrolador-Geral da União e ex-Deputado Jorge Hage.

A sociedade brasileira toda faz grande aposta no controle daquilo que o senso comum identifica como um dos 5 maiores problemas nacionais, que é a corrupção. Avançar nesse sentido é muito importante. Tenho certeza de que V.Sa. e o Ministro Waldir Pires, pela história de vida, são os mais capacitados para liderar esse controle, que também tem de ser da sociedade. Muito obrigado.

Ato contínuo, já instalo nosso último painel, com largo atraso, ressaltando que quem esperou não se arrependerá. Convido o Prof. Roberto Romano, da UNICAMP, e o Prof. Ricardo Caldas, da UnB, para comporem a Mesa e iniciarmos nossos trabalhos.

Registro a presença do Deputado Elimar Máximo Damasceno, de São Paulo. Já estiveram aqui conosco os Deputados Júlio Delgado, João Almeida, Gustavo Fruet, Fernando Gabeira, além da importante presença do Deputado Orlando Fantazzini, que, com sua equipe do Conselho de Ética organizou este tão importante seminário. Parabéns a S.Exas.

Iniciaremos o último painel, porque sei que nossos debatedores têm horário. Torço para que a Ordem do Dia não se inicie no plenário. De qualquer forma, tenho convicção de que será muito proveitoso.

Com a palavra aquele a quem me permitirei chamar de Roberto pela nossa amizade de quase meio século. Muito prazer, Roberto, em vê-lo aqui.

O SR. ROBERTO ROMANO - Em primeiro lugar, agradeço ao Deputado Orlando Fantazzini o convite. O que o Chico disse é verdade: conhecemo-nos em 1966, no Rio de Janeiro.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - No jardim de infância, digamos, nas primeiras letras.

O SR. ROBERTO ROMANO - Fizemos muita passeata, lutamos contra a ditadura e outras coisas mais.

Quando me foi proposto esse tema, lembrei de 2 autores que me parecem estratégicos para pensar a questão tanto do decorum quanto da ética e, sobretudo, que permitem fazer a ligação da ética parlamentar com a vida civil.

O primeiro é o autor da maior ética moderna: Spinoza, que tem 2 tratados políticos absolutamente importantes: o Tratado Político e o Tratado Teológico-Político. No caso de Spinoza, parece-me importante reter a lição que destaca o respeito e a reverência que os cargos públicos devem suscitar na população. Spinoza tem uma idéia contrária à de Hobbes: quando se faz o pacto político, não se abre mão do direito de natureza; continua-se plenamente um ser natural e um ser pensante. Não existe possibilidade de separar essas qualidades dos seres humanos, porque elas não são só destes; nós somos atributos da substância divina.

Spinoza é monista. Então, quando pensamos, de certo modo, é Deus quem pensa; quando agimos, é Deus quem age. Não existe poder humano capaz de limitar a força dos homens quando pensam e quando agem. Portanto, alienar essa força é um absurdo, no pensamento de Spinoza e contrariamente ao de Hobbes.

Isso leva Spinoza a dizer no Tratado Político que o poder tem que contar com a atitude natural dos homens e não pode modificar sua natureza. É esse ponto que me parece importante. Ele diz: "O Estado tem a força e, portanto, o direito de fazer com que os homens tenham asas para voar ou, o que é tão impossível quanto, que eles considerem com respeito o que excita o riso e o desgosto". Não se pode esperar, exercendo cargo público, que os homens deixem de observar as pessoas.

Por que são importantes o medo e a reverência? Em primeiro lugar, porque nunca — e aí ele também se coloca contra Hobbes — abrimos mão do nosso poder. Cada indivíduo tem poder, cada grupo tem poder, que se exerce no interesse próprio — esse também é um ponto importante —, e apenas e tão-somente por questão de cálculo racional os homens aceitam abrir mão desse poder em função do coletivo. Quer dizer, se essa cessão de poderes não é retribuída e se o Estado não retribui essa confiança, ele deixa imediatamente de existir.

Por isso, uma autoridade que se apresente, do ponto de vista público, como um legislador que não segue a lei é o pior criminoso dentro do Estado; é aquele que impede a existência do Estado; é pior do que o ladrão; é pior do que o assassino, porque a existência do Estado é a única tranqüilidade e segurança dos cidadãos.

Quando os cidadãos, diz Spinoza, percebem que seu interesse, a segurança, a expansão do corpo, a alegria, os saberes, etc., não estão sendo cumpridos pelo Estrado, eles agem de maneira imediata na busca dos seus interesses. Esse é um ponto que me parece importante. O texto está com os senhores e não me estenderei.

Spinoza é leitor e seguidor de Maquiavel. Sobre essa busca dos interesses grupais ou individuais, quando o Estado e os legisladores — ele insiste nisso —, aqueles que fazem as leis, não devolvem aos cidadãos aquilo que se espera do Estado, os indivíduos permanecem na sua situação de massa. Spinoza faz uma distinção muito clara entre povo e vulgo. O povo reunido, obedecendo às leis e contemplando o exemplo dos legisladores e dos governantes, é o povo democrático; o vulgo é quando ele não tem mais essas determinações nem esses exemplos e se torna uma massa furiosa. O povo é temível, diz ele, nessa hora.

Isso é perfeitamente possível de entender quando vemos a situação de países que não conseguem estabelecer o regime democrático, com certeza, e que têm autoridades que não legislam em função do interesse público, mas usam o interesse público para seu interesse particular.

Deixo o Spinoza com um pedido aos senhores, sobretudo aos que trabalham com a questão da ética no Parlamento, para que realmente aprofundem a leitura de Spinoza, porque se trata não apenas de um pensador realista, ao modo de Maquiavel, mas do maior pensador democrático do Ocidente. Não estou exagerando. Nesse caso, temos efetivamente uma fundação de pensamento democrático extremamente realista. Os senhores sabem que boa parte das críticas feitas à democracia, desde Platão, assumidas por Hobbes e pelo pensamento conservador, têm fundamento, não são despropositadas. Nesse caso, temos na profundidade de Platão uma defesa da democracia e, ao mesmo tempo, um enorme realismo no trato dessa questão.

Deixo Spinoza e passo ao mais importante monumento político sobre a sociedade contemporânea e a violência societária, que é o livro de Elias Canetti: Massa e Poder. Trata-se de um expositor frio dos fenômenos que levaram aos desastres nazistas e fascistas e a todas as formas totalitárias e genocidas do século XX. Canetti mostra até que ponto a voragem das massas pode ser conduzida nos genocídios dos campos de concentração onde milhões foram abatidos.

O capítulo de Massa e Poder mais grave para a questão da ética e do decoro parlamentares é o intitulado A essência do sistema parlamentar. Nele, Canetti mostra que a política no Parlamento continua a guerra geral por outros meios. Os senhores sabem que essa tese vem de Clausewitz e define até hoje o pensamento estratégico das potências imperiais. A continuação da política na guerra, como a continuação da guerra na política, são lados complementares, teorizados por Hobbes, por Maquiavel, por Platão e por Tucídides. Mas Clausewitz deu aos dois enunciados sua abrangência máxima.

Em Massa e Poder, o Parlamento é um campo de guerra prolongado. Os partidos constituem a extensão da estrutura psicológica dos exércitos combatentes. A essência parlamentar encontra-se nesse elemento bélico. A diferença encontra-se no fato de que a guerra no Parlamento é feita para evitar a guerra civil. Enquanto nesta última todos podem ser mortos, no Parlamento são escolhidos indivíduos que lutam em nome dos interesses dos seus eleitores, mas não podem ser mortos. Este é o pleno sentido da imunidade parlamentar: em vez das balas e das baionetas, os votos no plenário. Essa garantia repercute na vida civil, que vive sempre em guerra, dando-lhe condições de prolongar a vida.

Citando Canetti: Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação continua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a contagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os 360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica fora do jogo. Dentro do Parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa da maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um duplo aspecto: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção).

Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa guerra; cada uma dessas vontades tem a convicção do maior direito próprio e da própria razão. O sentido de um partido consiste justamente em manter vivas esta vontade e esta convicção. O adversário que fica em minoria não se submete porque de repente tenha deixado de acreditar em seu direito, mas apenas porque se dá por vencido. É fácil para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma complemente diferente Ele conta porém com batalhas futuras. E o número destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em batalha alguma.

Esta imunidade contra a morte é a essência de todas as demais imunidades parlamentares e a fonte de todas as garantias dadas aos cidadãos que seguem a lei redigida pelo Parlamento, sancionada e imposta pelo Executivo, julgada pelo Judiciário. O sistema representativo só funciona se ela existir. "Ele desmorona", diz Canetti, "assim que algum posto seja ocupado por alguém que se permita contar com a morte de qualquer um dos membros da corporação" parlamentar. Nada é mais perigoso do que ver mortos entre vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu resultado. Um parlamento só é um parlamento enquanto excluir os mortos.

Com a imunidade parlamentar vive e morre o Parlamento de qualquer país.

Na eleição geral, a imunidade estratégica ainda não é a dos eleitores, mas a das cédulas de votação. É permitido influenciar os eleitores de quase todas as maneiras, até o momento em que eles se comprometem definitivamente com o nome de sua preferência, que o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironizado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas batalhas eleitorais; se ele tiver orientação política, seus destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos.

A sacralidade do voto nas cédulas e a votação sem mortes, a imunidade parlamentar afastam a matança que se mantém na vida civil. Todos os votos, o dos cidadãos e dos parlamentares, são anotados em números. Quem joga com estes números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar à morte e nem sequer se apercebe disto.

Os entusiasmados amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas intenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tratados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue. O Deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito mais para o Deputado. Ele existe justamente para votar com freqüência. Mas também é muito menor o número de pessoas entre as quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de seus grandes números.

Tanto o pensador político do século XVII, quanto o prêmio Nobel no século XX mostram a importância da ética e do decoro parlamentar para a vida em segurança mínima dos homens reunidos em sociedade. Segundo ambos, a guerra de todos contra todos não é abolida com o advento do Estado. Ela continua na vida civil, com toda a violência. O meio para atenuá-la é justamente a tarefa dos legisladores e dos governantes, os quais têm imunidade como se fossem portadores de bandeiras brancas no debate que suspende, no âmbito dos parlamentos, a matança, a cobiça, a rapacidade, os truques que os indivíduos e grupos usam uns contra os outros. Se existe fraude na bandeira, se existem pessoas que se julgam acima dos regimentos e das leis porque investidas da função parlamentar, se existe atentado à ética e ao decoro, desaparece o Estado, instaura-se a morte e a guerra como fruto daqueles atentados. Os senhores conhecem como ninguém a violência tradicional da sociedade brasileira, que se prolonga e agrava em nossos dias. Em nossa vida civil, a morte ronda as relações de vizinhança, de parentesco, comerciais, políticas, ideológicas. A capangagem, a prática do escravismo, o uso de mão-de-obra barata e jovem no tráfico de drogas, a barbaridade do trânsito urbano e nas estradas, as fraudes, o assassinato de mulheres pelos maridos em nome da pretensa honra, o estupro de crianças em pleno lar, os abortos clandestinos que jogam o nada sobre embriões e corpos de jovens mulheres aos milhares, as lutas ao redor da terra, o desprezo pelos pobres postos em mãos médicas canhestras ou de má-fé, o descontrole das polícias cuja opção preferencial é pelos negros e demais negativamente privilegiados, os plágios universitários, a espionagem industrial, e temos uma lista infindável de crimes e práticas letais saídas da caixa de Pandora chamada sociedade civil brasileira.

Nesse universo de tristeza infinita, a confiança na palavra dos governantes e dos legisladores é o único meio de fazer com que os cidadãos abandonem as suas armas ou deixem de ser cúmplices ou vítimas dos que estão fora da lei. Quem frauda um painel de votação ou mente da tribuna, quem se apodera de bens públicos no Orçamento Nacional, quem desvia recursos para sua conta privada comete crime de lesa fé pública e de golpe contra o Estado. Quem promete algo nos palanques e pratica o seu oposto nos palácios dá um passo tremendo rumo à redução do povo soberano ao estatuto de vulgo sem dignidade. Ensina que a palavra dada não tem substância. E sem palavra confiável não existe Parlamento, porque o próprio nome, Parlamento, é o lugar que sucedeu a prática racional grega do logos, do discurso racional que tranqüiliza e protege os cidadãos. É isto que diz Canetti ao criticar os que adulteram votos. Eles, na verdade, desejam regimes sem votos, regimes onde o único voto permitido é a morte na guerra de cada um contra todos.

Citei o ensinamento de Spinoza e de Canetti para introduzir o nosso problema, justamente numa Casa abalada nas últimas décadas por gravíssimos atentados à ética e ao decoro. Em termos pessoais, como professor de ética na universidade pública, não me furtei à crítica e à análise pública daqueles problemas. Fui inclusive processado por um de seus pares porque não me calei diante de atentados às exigências éticas. Absolvido pela Justiça, continuo acreditando que o Parlamento é a via para atenuarmos a guerra de todos contra todos, gravíssima no Brasil. Se o Estado perde sua força e a fé pública, ganham terreno as potências da morte genérica, vencem os bandidos. É sintomático que as quadrilhas organizadas dominem parte do território de nossas grandes cidades, definam espaços de quase soberania — inclusive arregimentando colaboradores nos 3 Poderes oficiais — na mesma proporção em que a cidadania perde a confiança no regime democrático e na política. Se fracassar no Brasil a vida dos parlamentos, a voragem da morte levará nossa esperança de vida, em primeiro lugar, e de vida livre e digna.

É por esse motivo que saúdo os promotores deste evento e todos os senhores. Saúdo na iniciativa de se discutir a ética e o decoro parlamentar, o Estado democrático de direito, sonho dos cidadãos honestos de nosso País.

Muito obrigado. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecemos ao Prof. Roberto Romano a participação.

Convido o demiurgo deste encontro, um lutador em prol da ética pública, a assumir lugar à Mesa.

Com a palavra o Prof. Ricardo Caldas.

O SR. RICARDO CALDAS - Antes de começar a exposição, quero agradecer ao Deputado Orlando Fantazzini, aqui representado pelo Deputado Chico Alencar, o amável convite, e também dizer que, para mim, é uma honra e um privilégio estar nesta Comissão.

Fiquei muito honrado em ter participado da Comissão de Reforma Política e muito satisfeito em saber que ela já aprovou, em texto preliminar, ponto que tive a oportunidade de defender na própria Comissão: a reforma global. Havia ficado um tanto surpreso ao perceber que a reforma estava sendo discutida pouco pontualmente. Na minha visão, ela tinha de ser discutida sob perspectiva global, voltada para o cidadão. Na ocasião, disseram que a minha visão era minoritária, que não teria nenhuma possibilidade de ser aprovada. No final das contas, acho que a sociedade brasileira foi a vencedora.

É sobretudo uma honra estar ao lado de pessoa tão ilustre quanto o Prof. Roberto Romano. Tenho certeza de que minha apresentação não terá o mesmo brilhantismo da de S.Sa. Ainda assim, peço aos presentes que sejam pacientes e me cedam cerca de 15 ou 20 minutos de seu tempo. (Pausa.)

Pretendo mostrar um pouco da visão histórica da ética e como a ética, de certa forma, não mudou ao longo do tempo. Pretendo mostrar também como se conceitua a ética hoje e qual a nossa necessidade de ética. Falarei ainda sobre o que, no meu entendimento, se denomina de crise da ética moderna — não sei se o Prof. Roberto Romano terá oportunidade de me corrigir.

Basicamente, falarei da origem do termo, do que poderíamos entender por ética, e de como ela evoluiu.

Vamos passar para o segundo (inaudível). Isso pode se traduzir de duas formas... (inaudível) e também outros valores e propriedades de caráter. Esse tipo de tradução dá origem também a entendimentos diferenciados sobre o que viria a ser a ética.

Se analisarmos do ponto de vista dos costumes, o que teríamos? O estudo dos costumes não nos auxilia a conhecer a moral nem a compreender a ética. Ou seja, simplesmente falar quais são os costumes de uma sociedade não nos diz o que é certo ou o que é errado. Costumes referem-se simplesmente a usos e tradições e, em princípio, deles não poderiam vir, ou advir, uma noção de ética, ou de ética pública, o termo sobre o qual me convidaram a falar.

Na tradução para o alemão, por exemplo, utilizou-se algumas vezes a palavra sitten, que refere a costumes, mas no sentido de moral superior baseada nas tradições e costumes. Daí também a dificuldade em se obter conceito ou visão do que realmente seria a ética.

Outra visão, a que de certa forma prevaleceu, foi a de Aristóteles, de que ética seria a propriedade de caráter. Nessa perspectiva, a ética representa os estudos sobre o ethos nesse sentido ou sobre a propriedade de caráter, porque essas poderiam ser boas ou más. E daí vem todo o estudo que os antigos chamavam de virtudes ou vícios.

É interessante que o conceito de ética ficou tão difundido ao longo do tempo que se formos verificar, por exemplo, no Dicionário de Política, de Bobbio, talvez a fonte mais conhecida, mais legítima e mais bem vista na área de Ciência Política, ele nem sequer menciona o termo ética.

Na acepção corrente, poderíamos entender ética simplesmente como o estudo dos juízos da conduta humana, a qual pode ser qualificada como boa ou má, seja de forma relativa, ou seja, vendo de sociedade para sociedade, ou vendo a conduta como boa ou má de uma forma absoluta.

A grande dificuldade da ética antiga e da ética moderna, já adianto, é a questão de como definir bom ou ruim, boa ou má. Quer dizer, o que é uma atitude boa, o que é uma atitude má? Esse aspecto terá reflexos tanto na vida privada do indivíduo quanto também na vida pública da pólis, ou no caso aqui, do Parlamento.

Observamos uma grande confusão das pessoas entre o que é ética e o que seria moral. A ética seria, como vimos, o juízo da conduta humana. E o que seria então moral? A moral poderíamos definir como um conjunto de regras, costumes e valores que prevalecem ao longo do tempo em um certo período: a moral vitoriana, a moral nazista, a moral helênica, etc. Ou seja, ela está associada a uma dada sociedade, a um certo período.

Aí chegamos ao ponto de o que seria a ética na Antigüidade. Para os gregos, a idéia de ética está diretamente associada com a política. Como já foi mencionado pelo Prof. Romano, a questão da ética e da política é porque ela permitia os grandes debates. Então, os conflitos deveriam ser trazidos a público e ser manifestados na pólis. Daí a importância da oratória, que era a maneira como as pessoas poderiam se manifestar, e até mesmo havia, de certa forma, uma luta, mas só que era uma luta oral, não era uma luta das armas. Isso já foi mencionado aqui.

O que seria então a política na visão antiga? A política visa ao bem-estar da sociedade. Esse conceito é tão importante, tão caro e tão difícil de ser definido. O que é bem-estar? Diria que os conceitos mais importantes da Ciência Política, especialmente a Ciência Política contemporânea, têm dificuldades em serem definidos. O que é um bem público? O que é um bem comum? Existe ou não uma vontade geral? Essa é uma das grandes discussões em Ciência Política.

Com essa perspectiva de bem-estar da sociedade, então, a ação de governar e propor leis estaria comprometida com a preservação dessa mesma cidade, combinada com a aptidão para comandar com sabedoria e justiça.

Outro conceito quase que praticamente impossível, e talvez o Prof. Romano tenha outra opinião sobre isso, é definir o que seria justiça. A justiça é algo que as pessoas têm a impressão se ela existe ou não, mas é difícil medir, é difícil definir, é difícil quantificá-la. O que acho interessante nessa visão é a política voltada para o bem comum, o bem-estar, e baseada na idéia de sabedoria e justiça.

O que seria político na Antigüidade? Acho importante resgatarmos esse conceito — fico me considerando cada vez mais um saudosista, eu já me considero um defensor dos velhos tempos nesse sentido, o professor falou dos conservadores —, o político é o homem de bem. Então, diria que perdemos essa noção tão simples, tão básica e tão importante na Grécia Antiga, na Antigüidade, etc. E hoje temos até dificuldade. Quando as pessoas falam isso, as pessoas pensam: "O fulano é um ingênuo, ele não sabe das coisas que estão acontecendo". Mas, na verdade, essa era a razão verdadeira da política, era a essência da política. Trouxe aqui, mesmo correndo o risco de, ao final, ser taxado de ingênuo, ultrapassado, etc. Não faz mal.

Esse político converte a experiência na disposição para a prudência, entendida como a ciência prática do legislador. Vejam então algo mais interessante: o legislador tem que estar voltado para o bem-estar da sua cidade; logo tem que legislar com prudência.

Aqui, a tradução perante cada situação, ou problema descoberto, a virtude de deliberar com pertinência a respeito do existente e do eventual, a fim de esclarecer o critério justo de ação política. Vejam novamente a idéia de justiça implícita na ação política. Ou seja, o legislador atua em função dos casos existentes, mas também em função de casos futuros. A intenção é que haja uma lei geral, justa e que seja aceita por todos.

É claro, é óbvio — não precisaria dizer, porque todos sabem disso —, que a Justiça é um dos princípios gerais do Direito, mas, às vezes, as pessoas não percebem isso. Então, o que seria a lei? A lei seria a prudência aplicada ao governo da cidade. É interessante essa visão.

Como poderíamos relacionar ética e política? A política estaria associada a uma vida bem conduzida. Vejam que aqui, mais uma vez, temos a idéia de uma ação valorada, o que seria uma vida bem conduzida ou mal conduzida? Novamente a idéia de valores, ou seja, alguém opinará sobre esse valor. E aqui discuto outro ponto, já mencionado pelo Prof. Romano, a política unindo-se à ética na retórica. Assim, a retórica seria o objeto do debate. Para Aristóteles, ela contribui para definir, digamos, uma potência humana, ou dito de maneira mais moderna, para potencializar o indivíduo.

Os torneios oratórios substituíram a resolução violenta dos conflitos, como bem disse o professor aqui, o Parlamento dá origem a lutas, a brigas, etc., mas em muitos casos são lutas por valores, lutas por idéias, lutas por ideais. Enquanto as pessoas estiverem lutando no Parlamento, a harmonia social está garantida.

O uso da palavra enuncia um projeto. A palavra pode ser de crítica, de denúncia, de reforço da autoridade e até de constituição da capacidade de manifestar o justo e o injusto. Vejam novamente a idéia de justiça trazida à vida política. Ou seja, não se pode falar em vida política sem se ter em mente o conceito de justiça ou conceito de ética.

A política ética na teologia medieval.

Outro ponto interessante, porque já se tem uma mudança de perspectiva. Na Idade Média, havia a idéia de uma ordem superior imposta a todos por Deus, sob a forma de lei. Ou seja, todo Poder vem de Deus. O advento e o sucesso do cristianismo acabou levando essa nova perspectiva a tomar corpo na Filosofia. Pouco antes, em Roma, havia o reino de César, temporal. Na Idade Média, surge mais um: o reino de Deus, espiritual. Ambos seriam continuação dessa perspectiva de visão divina. Nasce uma nova forma de governo: a teocracia. Hoje, alguns dizem: a teocracia é uma coisa ultrapassada, velha. Mas até hoje existe no Irã, Arábia Saudita e em outros países. A legitimação do regime se dá então pela palavra de Deus. Passa-se então dos civitas para o de regnu, de cidadão para o de reino, ou seja, a idéia de reino onde o cidadão passa a ser um súdito. Haverá um senhor para o qual se presta um serviço de vassalagem, e o reino, a idéia de Cristo Rei, a idéia da cidade de Deus.

Não preciso nem dizer que o maior defensor dessa perspectiva foi justamente Santo Agostinho. Forma-se então uma espécie de oposição entre a lei divina e a lei humana. O que seria a cidade ideal na concepção de Santo Agostinho? O que ele diz? Aquilo é modelo de cidade, mas nós nunca vamos alcançá-lo. Porém, isso não quer dizer que não devamos perseguir esse ideal. Ele é o nosso objetivo.

Uma cidade perfeita seria aquela baseada nas escrituras, que se contraporia à decadente cidade humana, onde a lei divina foi degradada. Esse modelo, o sonho de cidade ideal, também está presente em Platão.

São Tomás de Aquino retomou a visão aristotélica de bem comum. Difere na parte em que São Tomás de Aquino diz que política consiste no aprendizado da legislação justa, do ordenamento das coisas e dos homens, tendo em vista o bem coletivo e a justiça divina.

Vejam que independentemente do período histórico, alguns conceitos são perenes, ou seja, a idéia de justiça permanece, a idéia de legislação voltada para o bem comum permanece. Apenas na perspectiva medieval, ou logo depois, Deus é o legislador de todas as coisas. Ele vai impor a lei eterna, a lei divina.

Existe o governo divino que visa o bem comum. Não se trata de mais um modelo, agora é uma possibilidade. Então, para São Tomás de Aquino, as pessoas deviam implantar esse governo divino na Terra.

Com o advento da modernidade e o nascimento do Estado moderno, surgem outras correntes de pensamento, como o humanismo e o racionalismo. Essas formas de pensamento reestruturarão completamente a perspectiva política. É o início da separação do religioso e do político, como já havia ocorrido de certa forma na Grécia Antiga e em Roma. Agora, volta a se separar dentro de uma nova perspectiva.

Alguns autores, e não desejava entrar nessa discussão, talvez a maior parte deles, apontam O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, como o ponto de referência dessa divisão. Por que Maquiavel? Porque ele busca a verdade das coisas. Maquiavel não aceita mais a idéia de uma verdade divina, de uma lei divina. A política é governada por outras leis que não as leis divinas. As leis políticas são próprias. Aí Maquiavel estabelece a divisão entre a moral e a política. A partir daí, certos atos realizados pela política estariam justificados. Não seriam justificados do ponto de vista do indivíduo, mas politicamente são aceitáveis. Então, como mencionei, política e moral estão separadas. E o príncipe — talvez seja o melhor exemplo disso —, para se manter no poder, pode recorrer a várias artimanhas, como exercer todo o mal de uma vez só e o bem aos poucos.

Surge então Spinoza, bastante citado aqui. Não quero me alongar neste ponto, apenas chamar a atenção para um aspecto interessante. Ele muda e por isso é considerado um dos maiores pensadores da questão ética. Ele muda o conceito de Deus e de ética. Começa a falar que Deus é o Universo, e alguns autores dizem que a posição dele se aproxima de algo que lembraria o panteísmo. No entanto, ele vai mais além, e esse é o ponto interessante, porque ao mesmo tempo em que diz que Deus é tudo, Deus acaba não sendo nada; se Deus está presente em todas as coisas, ele também não está presente em nenhuma, ou seja, ele acaba tirando o aspecto divino de Deus. Tanto isso é verdade que ele diz: o homem existe para ser feliz. Ora, se Deus nunca disse isso, a perspectiva é mundana, não é mais divina — essa é uma interpretação.

O que o homem busca para ser feliz? Ele busca o prazer e a ausência de dor, que não são conceitos divinos, mas conceitos individuais, completamente opostos àquela perspectiva. O homem bom e feliz, o homem sábio que busca o conhecimento também não são objetivos de perspectiva divina. Todo homem deve amar a si mesmo e procurar o que é útil. É a concepção utilitarista da sociedade centrada no homem e não em Deus. Ao mesmo tempo em que Spinoza fala da importância de Deus acaba de certa forma dessacralizando o Divino, ao mencionar e valorizar princípios humanos.

Nietzsche é outro autor que merece ser citado, e evidentemente não posso citar todos. Talvez Nietzsche represente o fim de um ciclo quando diz que Deus está morto. Ele acaba completamente com qualquer elo possível e imaginário, qualquer associação entre Deus e a sociedade. Ele considera o cristianismo uma doença social destrutiva, porque transforma homens em ovelhas, em pessoas passivas. Afirma ainda que não é isso que precisamos; na verdade, precisamos de super-homens. Ele radicaliza bastante sua vida, sua perspectiva. Para Nietzsche, o homem deve atingir o seu mais alto potencial e sem nenhum limite, vejam só. Aqui ele menospreza completamente qualquer noção de ética. O que é ética para Nietzsche? A moralidade do indivíduo está acima do bem e do mal. Isto é, o indivíduo está livre para agir conforme a sua consciência determina. Esse ponto me lembra muito, não sei se o Prof. Romano concorda, a idéia do Leviatã, de Hobbes: o imperador, o soberano não tem limitações; ele age conforme a sua consciência. Então, esse super-homem está acima do rebanho. Ele não é mais prisioneiro dos costumes nem da moral. Toma suas decisões éticas baseado em sua própria moralidade, que não é imposta pela sociedade.

Vejam o risco a que chegamos: é o completo o desaparecimento da ética. Não preciso dizer — a maioria dos senhores e senhoras sabe disso — que Nietzsche é considerado por muitos, e me incluo nesse grupo, como um dos principais inspiradores do regime nazista. Vejam então que a idéia de ética, de bondade ou de moralidade simplesmente desaparece, em razão desse super-homem que, no caso, alguns autores consideram como o homem ariano, o homem nazista.

Próximo. Chegamos à ética na sociedade política contemporânea. E tomo a liberdade de citar Marx Weber, um dos autores que considero dos maiores sociólogos de todos os tempos, não só século XX, mas talvez de todo o período contemporâneo. Weber dizia que existem dois tipos de ética: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. O político jamais pode ter a ética da convicção. O político, por exemplo, jamais pode ser um pacifista. Por quê? Porque em alguns momentos ele pode ter de tomar uma decisão que vai acarretar a morte de pessoas, como no caso de uma guerra. Se ele for um pacifista, ele vai pensar: não posso agir dessa forma, porque contraria os meus princípios. Weber diz que o homem político tem de ser pragmático. E eu poderia citar como exemplo Gandhi, ótimo para libertar a Índia da dominação britânica, mas talvez um mau Primeiro-Ministro em virtude das decisões que teria de tomar.

E o que ele diz ? Que o político deve atuar em razão da ética da responsabilidade. E o que seria essa ética da responsabilidade? Ele deve estar consciente de que suas ações terão efeitos nas gerações seguintes.

Aproveito a oportunidade para citar um caso real. Durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill recebeu informações de que os nazistas iriam bombardear uma cidade próxima a Londres. Ele tinha também a informação de que nessa cidade haveria um culto com cerca de 300 pessoas no momento do bombardeio. Se houvesse o bombardeio, essas pessoas certamente morreriam. Sempre um exemplo nas discussões sobre ética, a pergunta é a seguinte: o que Churchill deveria fazer? Avisar as pessoas sobre o iminente bombardeio e, com isso, salvar vidas humanas, ou permitir o bombardeio e manter em segredo a decifração do código dos nazistas e, com isso, possibilitar que futuros segredos militares fossem desvendados?

Não preciso dizer qual foi a opção do Churchill. Ele fez a opção pela última alternativa. Ou seja, deixou a cidade ser bombardeada; talvez centenas de vidas tenham sido afetadas pelo bombardeio nazista. Mas o que ele poderia argumentar a seu favor? Eu agi com a ética da responsabilidade. Aquelas vidas humanas perdidas no bombardeio foram a contribuição do Reino Unido para a derrota do regime totalitário nazista. Então, ele não agiu conforme a ética da convicção, mas conforme a ética da responsabilidade proposta por Marx Weber.

Próximo. Chegamos ao ponto final. Quero manter-me fiel à minha promessa de falar em torno de 15 minutos, para não perder a atenção das senhoras e dos senhores. Quero referir-me agora à crise da ética que vivemos hoje.

Por que existe essa crise da ética? Porque não temos mais nenhum referencial. Como não existe mais uma relação entre moral, religião, bons costumes, o que é certo, o que é errado, as pessoas se sentem sem ter que dar satisfação dos seus atos. Ah! Mas existe a lei. É claro que existe a lei. Mas sabemos também que nem todas as pessoas seguem a lei na esfera privada.

Então, quais são as grandes questões do nosso tempo, tanto no final do século XX, quanto no início do século XXI? Eu ousaria dizer que as grandes questões do final do século XX e do século XXI são as questões éticas. Quem em parte traz para nós essas discussões, por exemplo, mas não apenas eles, são os ecologistas. Quando os ecologistas falam: temos de pensar nas próximas gerações, eles estão atuando de maneira ética, ou seja, estão preocupados com a ética da responsabilidade no sentido weberiano. Não sei se eles sabem disso, mas estão seguindo a segunda versão da ética do Weber.

Direitos humanos. Neste particular, quero destacar o papel importantíssimo das organizações internacionais, da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Quando alguém cria uma carta de direitos humanos, traz a questão da ética para o primeiro plano. Se, em muitos casos, o príncipe abandonou a moral para simplesmente seguir a razão do Estado, as organizações internacionais tentam resgatar essa moral e ética perdidas.

Não quero entrar na discussão se os direitos humanos devem ser vistos de uma perspectiva universalista, globalista ou se são relativos, variam de cultura para cultura — essa é outra discussão —, o que quero ressaltar a importância de se resgatar o conceito de direitos humanos. Por exemplo, a questão do aborto. Deve haver aborto legal ou não? Nos Estados Unidos, até hoje não há legislação federal sobre aborto — alguns Estados possuem, mas a União, não. Todas as decisões importantes sobre aborto nos Estados Unidos foram tomadas pela Suprema Corte. A questão da eutanásia, também uma grande polêmica, a questão da bioética, a questão de transgênicos ... Vejam o paradoxo do final do século XX, início do século XXI: a ciência avançou tanto, é até capaz de criar vidas em laboratórios, e o cientista, que não tem de dar satisfação a ninguém dos seus atos, agora está sendo premido por questões éticas.

Até que ponto ele pode criar uma vida humana? Não temos resposta para essas questões, porque a ética está em crise. Por isso, é importante resgatarmos o conceito de ética.

Estamos vivendo a questão da guerra no Iraque. Quantas vidas foram perdidas em virtude da política externa ou do interesse nacional de uma potência imperial?! Como a sociedade internacional reage a esse fato?

"Ora, mas existe a Organização das Nações Unidas", dirão alguns. Com certeza, existe a ONU, mas o que a ONU fez relativamente à atuação concreta de um Estado? Nada. Ela se viu paralisada. E somos novamente obrigados a resgatar Hobbes: quem falou mais alto foi aquele que tinha a força, o poder, tinha o maior exército do planeta.

Mas será que é esse tipo de sociedade que queremos? Será que nós queremos ser governados pela força, por um modelo de democracia, por um estilo de vida que não é o nosso? Não quero entrar no mérito da questão — se gosto ou não do Governo Bush; não tenho nada contra nem a favor, pelo contrário —, mas quero mencionar uma ação específica sobre a qual acho que vale a pena todos refletirem. Uma das primeiras ações que ele tomou após a vitória, não para Presidente em 2000, mas para a Câmara e o Senado em 2002, foi uma nova lei que restringe os direitos humanos. Hoje, nos Estados Unidos, qualquer indivíduo pode ser detido pelos órgãos de segurança baseado apenas em forte suspeita, para ser investigados se praticou algum ato terroristas ou se nele está envolvido. E o indivíduo pode ficar — não sei quantos exatamente — talvez mais de 30 dias preso sem ter um processo constituído contra ele. Isso é gravíssimo. Nem em nosso regime militar chegamos a esse ponto.

Agradeço mais uma vez ao Dr. Pinotti e aos senhores a presença. Estou à disposição, caso haja alguma pergunta.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradecendo aos Profs. Ricardo Caldas e Roberto Romano, reiteramos que as exposições foram riquíssimas, muito instigantes e valiosas, produziram um nível de reflexão que, no pragmatismo do Parlamento, nem sempre acontece.

Temos 30 minutos para os debates, respeitando o horário de partida dos nossos convidados e o da sessão plenária da Casa, que terá Ordem do Dia. Vou insistir na sistemática que o Deputado José Thomaz Nonô, de forma rebelde — S.Exa. é um revolucionário do PFL —, impediu, que é um conjunto de indagações. Peço aos debatedores para registrarem as perguntas. Depois, faremos as considerações finais.

Está franqueada a palavra ao Plenário para a formulação de perguntas.

Com a palavra a Sra. Adísia Sá. Seja bem-vinda.

A SRA. ADÍSIA SÁ - Boa-tarde. Eu sou a professora e jornalista. Valeu a pena ter saído ontem do Ceará e retornar amanhã para assistir a esse encontro. O coroamento, sem sombra de dúvida, ocorreu agora, quando se fez uma reflexão sobre ética, a parte justamente de que estamos precisando: da teoria e da provocação.

Tenho duas perguntas a fazer. A primeira é dirigida ao Prof. Romano. O Prof. Romano fez uma análise do quadro político-social do Brasil, dando uma visão panorâmica desse quadro que tanto nos angustia. Mas, como um pensador, ele não nos deu uma resposta — apenas nos provocou, nos instigou. Como eu ainda me ligo muito a Marx, e nós já explicamos muito o mundo em uma das suas teses sobre Feuerbach, agora chegou o momento de mudar o mundo. Pergunto ao professor: neste quadro, nós não temos um caminho? Que caminho seria esse?

E ao Prof. Caldas farei a outra pergunta. Costumo, em "n" palestras que tenho feito pelo Brasil sobre ética — que é minha área predileta, fora a do jornalismo —, dizer que sou muito feliz com esse momento de grande impacto e de tragédia humana que vivemos, em que nada está — ainda o velho Marx &mdashestá sustentado, tudo está se esvaindo. Neste momento de contradições, neste mundo de indagações que nos cerca — indagações que levam as pessoas de pensamento a uma angústia filosófica e existencial —, sinto-me feliz. Tudo está se esgarçando, tudo está sendo destruído, tudo está desmoronando. Pergunto, então, ao Prof. Caldas: este momento de hecatombe epistemológica, existencial, política, não será um parto, não estaremos partureando uma nova ética?

Muito obrigada.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Obrigado. Alguém mais?

O SR. ANDRÉ BOR-ROZA - (Exposição em espanhol)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) Mais alguém? (Pausa.)

Então, permitam-me algumas palavras. Os nossos professores foram os gregos; passamos por Spinoza e chegamos a Weber. Agora, eu quero "tupiniquinizar" a questão.

Na sua origem, a República brasileira foi fortemente influenciada pelo positivismo. E o positivismo tem um elemento autoritário forte no exercício da política. E o certo é que chegamos ao início do século XXI com uma inegável crise da representação.

Senso comum: todo político é ladrão. Há até uma música gravada pelo sobrinho do Tim Maia que diz: "Manuel foi para o céu.... se eu fosse um político minha vida não estaria assim". A gente dança distraidamente e é subtraído em tenebrosas transações...

A minha indagação é muito imediatista talvez. Será que há elementos para se perceber, no Brasil de hoje, de democracia formal — democracia formal que na República Velha garantiu o predomínio oligárquico —, do século XXI, inclusive com a troca de guarda no Palácio do Planalto, aqui ao lado, possibilidades concretas de avançar nessa questão comezinha da ética na política? Que passos este Parlamento, por exemplo, poderia dar no sentido de avançar nesse aspecto, para ganhar credibilidade?

Hoje de manhã, Presidente João Paulo Cunha, abrir este seminário, disse que o Poder Legislativo é o mais aberto, o mais transparente e, por isso, apanha mais. Mesmo assim — e parece até erudição pequenininha de musicólogo —, todo mundo diz que o Parlamento não é a Geni nacional. É ótimo ser Geni. Ninguém ouviu a música, nem percebeu a letra do Chico. A Geni era mal vista, mas era fundamental: ela é que salva a população. No entanto, não é bem isso o que o povo pensa de nós. Não somos nem Geni — e nós contribuímos para isso, no exercício do mandato.

Concretamente, para essa representação ser mais substantiva, para o povo se identificar um pouco mais conosco, para afastarmos de vez o perigo do autoritarismo, para aquela frase muito bonita do Mário Covas — não sei se perceberam, gravada em bronze no hall do Anexo II desta Casa, "Com todas as mazelas, com todas as mediocridades, é melhor um Parlamento do que nenhum Parlamento" — ser confirmada, que avanços os senhores nos recomendariam, como cidadãos que estão lá na base? Porque tenho certeza de que a Comissão de Ética e Decoro há de tentar também, durante o nosso mandato, melhorar essa concepção.

O SR. DEPUTADO ORLANDO FANTAZZINI - Deputado Chico Alencar, permita-me fazer um questionamento que muito me preocupa. Andei refletindo sobre essa questão da ética da convicção e da ética da responsabilidade. Parece-me que muita gente, sob o manto da ética da responsabilidade, justifica tantas mazelas, tantos desrespeitos e tanto aviltamento à dignidade humana. Hoje, isso deve estar prevalecendo nos Parlamentos em geral e não só aqui no Brasil. E podemos fazer menção aos Parlamentos americano, inglês e tantos outros, que apóiam a invasão ao Iraque, o genocídio. Será que essa ética da responsabilidade não é uma criação para justificar a falta de ética na vida cotidiana dos Parlamentos e da sociedade como um todo?

O SR. ALBERTO ARAGÃO - Boa-tarde.

Quero parabenizar os presentes e dizer o seguinte.

Pegando a deixa do Deputado Orlando Fantazzini, falamos da ética da convicção e da ética da responsabilidade, mas me parece que temos duas ordens: a ordem do dever ser, do ideal, e a ordem da realidade. E ainda podemos falar da ética da efetividade. Seria a concretude, a realização dos propósitos, dos princípios incluídos na Carta Magna para o cidadão. A ética da efetividade dos direitos talvez seja um ponto importante.

O SR. JAIME FERREIRA LOPES - Sou assessor da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados.

Pelas exposições aqui proferidas, também dá para apreender isso. A sensação que vivemos hoje é a do império do pragmatismo, não só na política, mas também no contexto da vida em geral. Hoje, ser pragmático se tornou um caminho louvável que deve ser sempre perseguido. E, às vezes, em nome ou a partir dessa visão de que se deva ser pragmático sempre, a ética vai para o espaço. E quando, às vezes, alguém se coloca contrário a essa visão, é tachado de jurássico, de não ser moderno.

Então, como sair dessa contradição — e essa seria a minha indagação — ao mesmo tempo, sem perder a capacidade de ser pragmático? Em alguns momentos, isso é necessário, mas não como norteador da vida política.

O SR. RUY SIQUEIRA - Sou Professor de Ética do UniCEUB e Secretário da Comissão de Direitos Humanos.

Quero fazer uma pergunta ao Prof. Ricardo Caldas. Nessa crise dos paradigmas que vivemos atualmente, a crise da ética, enfim, em outras instâncias — parece que foi trazida a questão da simpatia pelo conceito tradicional —, a pergunta é a seguinte: o que seria esse retorno à simpatia, ao conceito tradicional? Eu tenho um problema sério. O senhor em Estados teocráticos. De novo, é velha a idéia etnocêntrica, que é o islâmico. E esquecemos que a modernidade não deu conta dessa superação do Estado teocrático. Em algumas Constituições dos países nórdicos — estou falando da Europa moderna —, está inserida no preâmbulo a idéia da igreja reformada. No Preâmbulo da Constituição brasileira está a inscrita a palavra Deus. A minha pergunta é: nesse retorno ao conceito tradicional, é possível construir uma ética desvencilhada dessa cultura cristã, tão forte e presente na moral e na ética, por exemplo, e até mesmo no Direito, sobretudo positivista?

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Vamos agora para a etapa final, ouvindo primeiramente o Prof. Roberto Romano.

O SR. ROBERTO ROMANO - Diante de todas as perguntas, a começar pela da Sra. Adísia Sá, gostaria de fazer uma profissão de fé.

Sou adepto das luzes do século XVIII e sou platônico. Por que sou platônico e adepto das luzes? Porque acredito que a vida humana é uma produção técnica. Ela é uma produção de arte. Em Platão, o demiurgo é um technist. Ele produz o cosmos, e o faz com tamanho engenho e arte que fica contente, porque o mundo é bonito, ele vale a pena.

Na base dessa máquina do mundo, exposta no Timeu, ele propõe a República. A República é uma máquina de viver bem. É uma técnica produzida para que as pessoas vivam bem e felizes. Nessa perspectiva, governar — ele usa uma metáfora de ordem técnica — é tingir almas com a tintura das leis. Por quê? Se alguém apenas colore o exterior do corpo, o sol vai embora e desaparece o respeito. Mas se tinge as almas com a tintura das leis, não precisa mais forçar. Aquilo é uma atividade técnica do indivíduo; ele vive aquilo daquela maneira; ele aprende a técnica de procurar traços.

Outra metáfora muito utilizada por Platão é a da caça. É preciso que o Estado impeça a caça do homem pelo homem — a guerra — e impeça a caça do homem pelo homem — a escravidão. No caso, quando fala da justiça, a justiça é como se fosse uma caça. Ela está no meio da moita. Diz, então, Sócrates que temos de cercar a caça, mas não temos garantia de que vamos agarrar a caça, porque ela pode fugir, pois é um animal astucioso. Portanto, ninguém pode dizer que tem a justiça na mão. A justiça é uma busca; é uma tentativa técnica de agarrar o que é correto. Definições a priori de que isso é justo e isso é injusto são absolutamente errôneas sem o conhecimento técnico e sem a prática da política.

Nessa medida, o pensamento platônico — infelizmente Platão é conhecido pela sua versão neoplatônica — reduz ao máximo a hierarquia na coisa no ser, e traz a possibilidade de estabelecer gradações na atividade técnica e no pensamento.

Ora, o que fazem os pensamentos neoplatônicos, de Santo Agostinho, etc.? Introduzem justamente a hierarquia. Temos um Deus — inefável, indizível, etc. —, que jorra como fonte de luz e vai se tornando cada vez menos claro e menos translúcido quanto mais próximo dos seres inferiores. Temos a hierarquia, no caso de Dionísio, o Areopagita, com o grande texto que serviu de espinha dorsal para Santo Tomás de Aquino e outros, com a idéia de que o cosmos inteiro é uma hierarquia de luz e, portanto, não pode existir igualdade. Assim, toda a técnica humana é impotente para quebrar o laço da hierarquia. Existem Deus, anjos, arcanjos, padres, freiras e, lá embaixo, está o leigo comum. É contra a cosmovisão que as luzes, e também o Renascimento, se voltaram. Por isso, o grande peso da técnica no caso das luzes, o apelo à técnica, a política como técnica.

Claro que os argumentos conservadores restauraram a idéia de hierarquia. O romantismo conservador, o positivismo e outros pensam a hierarquia contra a igualdade, que a igualdade é um conceito metafísico, uma bobagem da Revolução Francesa. Assim, temos instaurada a idéia de ordem e de hierarquia. Nesse quadro, o que mais se ataca é justamente a identificação da palavra humana como técnica; o peso do logos como capacidade de transformar, de nomear o mundo e de servir como instrumento.

André Leroi-Gouhran, grande etnólogo do século XX — que me parece cada vez mais leitura urgentíssima, sobretudo em sociedades como a nossa —, mostra a interdependência do instrumento técnico do nosso corpo e da palavra. Ele mostra bem que, quando começamos a nos erguer, a ficar de pé e emitimos os primeiros vagidos, as primeiras palavras com sentido, a nossa estrutura craniana mudou: aumentou o crânio e diminuiu o queixo. Ele usa uma expressão muito interessante: "somos inteligentes porque ficamos de pé". Acho isso fantástico. A palavra é um elemento técnico, um elemento de liberação.

O que vejo como questão primeira em termos de atividade política? É claro que a filosofia sempre foi uma tentativa de curar a palavra. Se existe uma crítica virulenta no plano da cultura à logorréia é a filosofia, que sempre procurou encontrar palavras que tenham sentido e eficácia e se estabeleceu como terapia da palavra. Hoje em dia, é mais do que urgente a terapia da palavra, porque, em nome da crítica e da recusa da democracia, se fez a crítica da palavra. Quando alguém diz "isso é mero discurso", lembro-me da frase de Hegel: "Discursos dirigidos a povos são atos". A propaganda é muito clara nessa linha e a manipulação fascista foi isso: atos. Não se separa o ato da palavra, porque a palavra encaminha, justifica o ato.

Nessa medida, Sra. Adísia Sá, parece-me que a sua atividade, a atividade da imprensa, da universidade, do Parlamento, é justamente a primeira atividade política no sentido de restaurar a dignidade da palavra e a confiança na palavra. Quando estendo a mão e digo "pegue, que você não cairá no abismo", se isso for falso significará morte. Portanto, "confie no Parlamento, mas votaremos todas as leis que vêm do Executivo", "confie no Parlamento, mas lhes trairemos", ou, segundo o exemplo do Deputado José Thomaz Nonô, "confie no Parlamento, mas na hora de votar o confisco das poupanças, apoiamos o Executivo", isso me parece um elemento importante.

Do ponto de vista político, não conheço outro filósofo que tenha dado mais importância à palavra do que Marx, que tem uma formulação muito bonita sobre a palavra e o valor do peso da palavra, inclusive em uma discussão muito prática justamente sobre o dia de trabalho. Na discussão do dia de trabalho, Marx faz a distinção das palavras gewalt e kraft, mostrando que não podemos jamais deixar — para escândalo de boa parte do marxismo — de ter esperança na possibilidade de uma lei do Estado que modifique as relações sociais. Literalmente, foi preciso uma lei do Estado para diminuir a jornada de trabalho. Essa questão precisa ser bem pensada.

Perdoem-me por falar nesta Casa desta maneira, mas o Estado brasileiro foi ideado para ser contra-revolucionário. Quando o querido D. João VI veio fugido de Napoleão, trouxe com ele a idéia de criar nos trópicos um Estado que não caísse nas loucuras das revoluções francesa e americana. Antes, já tinham reprimido as nossas revoluções, como a Inconfidência Mineira, que era das luzes. É muito interessante lembrar que os inconfidentes queriam instalar uma fábrica e uma universidade, duas coisas proibidas.

Quando D. João VI veio com essa idéia, trouxe como proposta retirar do Estado brasileiro aquilo que teria sido a desgraça da Revolução Francesa, isto é, o poder dos Deputados, o poder das assembléias. Na condição de Deputados Federais, V.Exas. devem se lembrar bem da anedota: "Saúdo Vossa Majestade", quando o Imperador fechou o Parlamento e os Parlamentares se inclinaram diante do canhão. Quando eles vieram com essa perspectiva, no Primeiro Império, houve o contrabando da teoria do Poder Moderador, de Benjamin Constant — o deles, não o nosso; não o positivista, mas o liberal francês. Em Benjamin Constant — basta ler seus textos — o Poder Moderador é neutro e serve para diminuir as tensões e os choques, dar um contributo para melhorar a máquina do Estado, ideada por Montesquieu — trata-se de uma máquina, porque é uma balança —,a inflexão dada na Constituição do Estado brasileiro ao Poder Moderador foi que este deixou de ser neutro e passou a ser determinante sobre os 2 outros Poderes. É por isso que, se os senhores lerem Carl Schmitt, um dos mais ferrenhos defensores do poder decisionista, verão o elogio ao Poder Moderador do Império brasileiro.

O que ocorreu quando se deu o final do Império? Houve a subsunção, a passagem silenciosa, mas muito eficaz, do Poder Moderador, com todas as suas prerrogativas, para a Presidência da República. Vivemos essa realidade e não tocamos nela. Se me pedirem alguma coisa nessa linha, diria o seguinte. Primeiro fato: pense-se a estrutura, a gênese e a lógica do Estado brasileiro. Veja-se se a introdução dessas prerrogativas da Presidência da República correspondem ou não à diminuição da importância dos outros Poderes e se a caça ao Parlamento e caça do Parlamento à Presidência da República — porque também ocorre —, não provocam o desequilíbrio permanente que notamos na República brasileira.

Este é um ponto que me parece grave. Discutimos, discutimos, mas supondo sempre este não-dito: temos o Poder Moderador. A tal ponto que os Presidentes da República — não digo o atual —, estiveram colocados em tal solidão que os define como guardiães únicos da totalidade do Estado. Se ocorre qualquer problema na Presidência da República, o Estado inteiro entra em absoluta subversão. Não preciso lembrar a abdicação de Jânio Quadros e tudo o que sucedeu durante o regime militar como resultado desse desequilíbrio.

No meu entender, temos de ter a visão dessa ética, porque isso se transformou em costume. Infelizmente, em decorrência disso, o Brasil é um país executivo-centrista. Em qualquer instituição, o Gabinete é o mais importante. Na universidade, se você for um bom membro da congregação, já é candidato a diretor, se for um bom membro do conselho, já é candidato a reitor. Tem-se a ilusão de que tudo vai ser resolvido no gabinete reitoral. E se desvaloriza as congregações e as instâncias do debate e da palavra, inclusive. Existe a crença, que o positivismo muito ajudou a piorar, de que o Executivo, decide e é capaz. O positivismo é uma espécie de transformação perversa do platonismo.

Luiz Pereira Barreto, em seu discurso de 1900 ao Clube dos Engenheiros, tem como idéia central: os engenheiros sabem, por isso podem prever, por isso podem prover. Assim, só pode fazer política aquele que é um técnico, que é um cientista do poder. O resto não tem mais importância. Claro que os engenheiros não mandam mais; hoje, são os economistas. Os economistas têm o monopólio do saber, da previsão e do golpe de Estado. Perdoem-me, mas no Banco Central temos mais poder efetivo concentrado do que no Parlamento inteiro, justamente pela preeminência do Executivo, o que leva a muitos abusos, como as medidas provisórias e tudo o mais que os senhores conhecem muito bem. Duas ditaduras, a de Vargas e a militar, acentuaram o peso do Executivo, que virou um ethos, um costume.

Parece-me que é preciso lutar pela valorização do Parlamento, do diálogo e dos outros Poderes, mesmo que estes não queiram, como o Judiciário. Senão, não vejo possibilidade de se estabelecer efetivamente uma República igualitária no País.

A imprensa parece-me fundamental, mesmo com as mazelas que tem, e eu as conheço profundamente. Parece-me que a imprensa é uma forma de se manter o valor do logos, o valor da palavra, o valor da fé pública. É por isso que tenho essa convicção. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Agradeço ao Prof. Roberto Romano a participação .Concedo a palavra ao Prof. Ricardo Caldas.

O SR. RICARDO CALDAS - Não vou falar sobre positivismo, porque o Prof. Roberto já dissertou sobre o tema. Prefiro responder às perguntas que me foram endereçadas.

Quanto à questão da tragédia humana mencionada pela Sra. Adísia Sá, concordo plenamente, e esqueci de mencionar a pobreza. Estamos convivendo com a pobreza nos planos nacional e internacional e em níveis crescentes. Essa é também uma questão que gera uma indagação ética.

Na verdade, não tenho assistente. Foi apenas uma brincadeira, não sei se engraçada ou não. Mas, para a informação do Plenário, acho que seria interessante mencionar.

Quanto à crise da representação do Parlamento, concordo que ela exista — e, aliás, já a procurei expor na Comissão da Reforma Política. Destacarei alguns elementos do nosso sistema eleitoral, que não reflete mais a vontade da população, na minha forma de ver. Está havendo um distanciamento entre o eleitor e o eleito, e o nosso sistema não contribui para diminuí-lo, ao contrário. Defendo 2 pontos importantíssimos para corrigir isso: primeiro, o parlamentarismo, que aproxima o eleitor do Governo. Temos de retomar a discussão sobre o parlamentarismo; e, junto com ele, sugiro o sistema distrital misto, em que a metade do território é divido em distritos e a outra em listas. Permite-se, assim, que o indivíduo vote numa pessoa da qual ele está próximo.

Outro ponto fundamental: não se pode falar em representação, em Câmara dos Deputados ou em Senado Federal sem falar em partidos políticos. Precisamos fortalecer os partidos políticos. A nossa civilização, hoje, na minha forma de ver, não fortalece esses partidos. O voto em aberto acabam estimulando uma guerra interna entre os Deputados, que deveriam atuar de forma conjunta. Não vejo como fortalecer o Legislativo sem uma reforma política.

Há algo de novo? Eu diria que sim. A própria discussão encaminhada inicialmente pelos ecologistas e depois por outros grupos, defensores de aborto, contra a eutanásia, etc., está nos levando a repensar a sociedade. Como vejo a nossa sociedade?

Nesse aspecto, sigo tanto a visão de Raimundo Faoro quanto a de Sérgio Buarque. Vivemos ainda, por menos que queiramos e não gostemos de ouvir isso, numa sociedade tutelada, paternalista, desarticulada como um todo. Ela só é articulada quando existem grandes interesses em jogo, os quais, em geral, são específicos, de grupos de pressão que terão, por exemplo, um ganho econômico, mas sociedade no sentido de povo vejo como essencialmente desarticulada. As grandes discussões não chegam à população. Ainda vivemos com essa herança patrimonialista, difícil de romper. Isso é algo que levaremos muito tempo para modificar.

Vejo de positivo, até certo ponto, as ONGs, no sentido de que elas mobilizam as pessoas e geram capital social. Há controvérsias em Ciência Política sobre a questão. Alguns autores da Ciência Política não aceitam que as ONGs sejam estratégias de mobilização, mas, na verdade, grupos mobilizados para atender a interesses específicos.

Não vejo dessa forma. Acredito que as ONGs e a sociedade civil podem levar a um crescimento da cidadania. Cito como exemplo o movimento do Betinho contra a fome, que acabou gerando uma mobilização nacional e sendo incorporado pelo atual Governo com um dos pontos de sua agenda.

A questão do capital social é fundamental, no sentido de que procura resgatar a idéia de civitas, de cidadão, de alguém que pode dar uma contribuição à sociedade. Essa idéia de civismo, tão mal utilizada nas disciplinas de OSPB, EPB, etc., agora está ganhando nova roupagem, de civismo não militaresco, de preocupação com algo além dos nossos próprios interesses, ou seja, de agirmos em favor do nosso bairro, da nossa coletividade. E, a propósito, recomendo, para quem tiver oportunidade de ler, o trabalho do Putnam, em que ele analisa por que o norte da Itália se desenvolveu mais do que o sul e por que o sul da Itália é tão pobre e tão clientelista. Qual a sua conclusão? Não há capital social no sul; o capital social da Itália concentra-se no norte, onde as pessoas participam mais da vida comum. Elas exigem mais, portanto, há mais transparência. Então, o capital social contribui para 2 aspectos: fortalecimento da democracia e desenvolvimento econômico. São teses absolutamente originais e interessantes, que recomendo a quem tiver oportunidade de ler.

A questão da ética da responsabilidade. Weber, pelo menos na leitura que faço, em nenhum momento sugere que a responsabilidade seja a maneira de alguém não ter convicções. O estadista deve ter convicções, é claro, tanto que ele divide os políticos em 2 grupos: os que vivem da política, que querem extrair recursos da política, e os que vivem para a política. Ele supõe, é evidente, que quem vive para a política tenha algum grau de dedicação.

Obviamente o estadista tem de ter convicções, mas no momento de agir ele tem de levar em consideração as conseqüências da sua decisão. Esse o sentido da ética da responsabilidade. Às vezes, ele pode até estar ferindo uma convicção sua, como no caso de Churchill. Pode ser que Churchill não fosse a favor de que pessoas morressem, mas era um momento em que havia a necessidade de uma ação contra um mal maior, no caso, o regime totalitário. A ética da responsabilidade, então, neste caso, acaba sendo superior à ética da convicção.

Foi mencionada a questão da ética da efetividade. Da mesma forma que o Prof. Romano, que se identificou com Platão, eu quero tomar a liberdade de me identificar com Sócrates e Aristóteles, no sentido de que devemos buscar novamente a virtude, que está no meio termo, no equilíbrio. Se alguém radicaliza demais, se vai para um extremo, perde a noção do meio termo. Aristóteles dizia não acreditar na sabedoria individual, mas na sabedoria do coletivo. É nisso também em que acredito.

Não se pode defender a efetividade, ou seja, os fins, sem defender os meios; senão, passamos todos a ser oportunistas — qualquer coisa que façamos vale a pena se der um resultado certo. Por exemplo, o bloqueio do Collor estaria correto se ele tivesse conseguido derrubar a inflação. Eu acho que não. Aí vem a questão da virtude novamente. O que é um cidadão virtuoso? E já me considero respondendo um pouco à pergunta sobre em que sentido me considero um saudosista. Saudosista no sentido de buscar, de ter e de querer retomar um pouco a visão de ética, que já está perdida. Todos deveríamos ter a ética como forma básica de conduta.

Atualmente, que as empresas modernas procuram? Muitas delas disseram não à corrupção, ao trabalho forçado, ao trabalho infantil. Cito como exemplo o Instituto Ethos, que procura estimular nos empresários a idéia de ética. Está havendo uma retomada da ética, acredito. E eu diria que a retomada da ética — talvez eu esteja sendo otimista demais — se dá em face da crise que acompanhou o século XIX, o excesso de racionalismo que perdeu a referência completamente entre o certo e o errado. O relativismo em excesso acaba contribuindo para que não exista nenhum tipo de ética.

Responderei às últimas perguntas em conjunto, se eu puder. Elas se referem ao império do pragmatismo e à crise dos paradigmas. Concordo que um excesso de pragmatismo leva ao fim da ética. Ou seja, se o seu grupo está fazendo uma coisa que o beneficia daquilo, você simplesmente fecha os olhos e diz: "Eu topo, estou dentro, quero participar disso", porque é conveniente para você.

E aqui quero retomar as idéias de Antígona, tanto a de Annouille, quanto a de Sófocles, que coloca os seus princípios acima dos da cidade. O sogro dela havia proibido que os militares mortos fossem enterrados em certa região, e seu irmão havia sido morto e estava do outro lado do campo de batalha. Proibida de enterrá-lo, ela disse: "Não vou seguir essa, lei porque não posso seguir uma lei injusta". Ela era casada com o filho do rei, considerado o melhor partido, jovem, belo, rico etc. As pessoas perguntavam-lhe: "Você vai abrir mão do seu casamento para defender o enterro do seu irmão?" E ela respondia: "Vou, porque não posso viver numa sociedade em que os princípios pessoais têm de ser encobertos por uma vontade que não é a minha". Ou seja, não há respeito ao indivíduo, não há princípios, não há ética, não há moral, pois, de acordo com a lei do sogro dela, quem enterrasse alguém morto na batalha seria, necessariamente, executado. Então, ela prefere a execução a viver em uma sociedade sem ética.

Aliás, essa é a mesma posição de Sócrates. Foi oferecido a ele inúmeras oportunidades para escapar da execução, porém ele dizia: "Não, prefiro ser executado, mas manter meus princípios, a viver em uma sociedade em que não acredito. Se a sociedade permitida pelos deuses é tão boa, não vejo a hora de vir a pertencer a essa nova sociedade. Se ela existe, vou aprender com ela, talvez eu possa evoluir; se ela não existe, pelo menos dei a minha contribuição nessa sociedade que vivemos."

Acredito que a crise do paradigma — e os senhores têm a liberdade de discordar — não é por causa da influência cristã. Da minha parte, eu seria até hipócrita se dissesse que a ética tem de ser atrelada à religião x, y ou z. Devemos estar acima disso. Devemos buscar o que cada princípio ou cada filosofia pode trazer de bom.

Existem princípios que são absolutos e princípios que são relativos. Ou seja, existem alguns valores que mudam de uma sociedade para outra, mas existem também alguns valores que são comuns, como não matar. Se citar, por exemplo, não roubar, vou entrar em crise com a sociedade cigana. Os ciganos não têm conceito de propriedade; logo, eles não possuem conceito de roubo. Não é que eles defendam o roubo, não. Mas para defender se essa xícara é minha ou da Câmara ou se esse copo é da Câmara ou meu, tenho de aceitar o conceito de propriedade. Se não aceito o conceito de propriedade, posso levar esse copo ou essa xícara e não incorrer na prática de crime. Vejam, então, que em algumas sociedades não há esse conceito.

De qualquer forma, há alguns valores que podem ser aceitos pela maior parte da sociedade, talvez excetuando os ciganos, e que seriam as bases dessa nova ética, que é o que os ecologistas, hoje, estão buscando quando falam em desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento sustentável é justamente a manutenção de um patrimônio que não é nosso — as florestas, os rios, os lagos — mas que recebemos e que temos a obrigação de preservá-lo para as próximas gerações. Qual o direito que temos de aniquilar espécies inteiras? De levá-las ao extermínio simplesmente pelo prazer? O homem é o único animal que mata pelo prazer, nenhum outro faz isso.

Há alguns pontos básicos dessa nova ética que não devemos discriminar, tenha origem cristã ou islâmica. As coisas boas de cada sociedade podem ser a base de uma nova ética que poderia ser uma referência — citei os ecologistas como um exemplo disso.

Penso ter respondido a todas as perguntas de maneira completa ou incompleta. Mais uma vez só me resta agradecer aos que vieram prestigiar a nossa apresentação e ao Deputado Chico Alencar, que está representando o Deputado Orlando Fantazzini.

O SR. PRESIDENTE (Deputado Chico Alencar) - Muito obrigado, Prof. Ricardo Caldas.

Encerro aqui a minha tarefa de coordenador desta Mesa.

Um bom critério para avaliarmos como usamos o tempo é verificar se, ao fazer qualquer coisa — de tomar um café a participar de um debate —, saímos melhores do que entramos. Creio que esse sentimento é generalizado.

Também saio um pouco mais angustiado, mas positivamente, para avançar no caminho de pelo menos não matar — não matar inclusive a esperança da população, que é teimosa em desejar dias melhores.

Passo o comando dos trabalhos ao chefe desse seminário. Novamente parabenizo o Deputado Orlando Fantazzini e sua dedicada equipe, que proporcionaram um momento de luz no Parlamento, o que não é muito comum. (Palmas.)

O SR. PRESIDENTE (Deputado Orlando Fantazzini) - Agradecemos ao Prof. Ricardo Caldas, já o fiz pessoalmente ao Prof. Roberto Romano, e a todos a presença.

Temos a convicção de que este primeiro encontro representou enorme contribuição no sentido de que mantenhamos em nossa agenda, quotidianamente, o tema ética e decoro parlamentar.

Temos também a convicção de que este é o primeiro de vários outros encontros, seminários e debates que serão realizados em Assembléias Legislativas, Câmaras Municipais, até para que possamos, aprimorando esses conceitos, manter uma presença mais constante na sociedade e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar o modelo democrático que queremos.

Agradeço aos membros do Conselho de Ética, em especial ao Deputado Chico Alencar, que compartilhou comigo a coordenação dos trabalhos — hoje estive de manhã, e ele, à tarde —, e aos Deputado Patrus Ananias e Luciano Zica, que fizeram exposições, e a presença do Deputado José Thomaz Nonô, ex-Presidente do Conselho de Ética.

Precisamos aprofundar-nos nesse tema, o que esperamos ocorra num futuro próximo, fazendo com que a sociedade tenha do Parlamento não mais a visão de um dos piores Poderes da República, mas que se sinta verdadeiramente representada por aqueles que decidiu escolher para a defesa dos seus interesses.

Muito obrigado a todos. Um agradecimento especial aos funcionários do Conselho de Ética que se desdobraram para que este encontro pudesse realizar-se na data de hoje.

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