domingo, 11 de maio de 2008

Aula Escola da Magistratura, São Paulo

Roberto Romano

A exposição será dividida em duas partes. Na primeira, apresento alguns elementos da filosofia platônica, relevante para o estudo dos fundamentos lógicos das várias doutrinas que dominam a cena política ainda em nossos dias. Na segunda, analisarei o caminho da responsabilização dos governantes até o Termidor, quando se inicia a era dos ditadores modernos, os que erguem seu mando com o enfraquecimento da soberania popular e da ordem parlamentar.

É banal a idéia de que Platão prescreve o governo dos especialistas, os quais devem manter nas suas mãos o controle do Estado, contra a massa dos cidadãos comuns. Esta noção surge de uma leitura um tanto quanto vesga da República e do silêncio jogado sobre livros posteriores do filósofo, como é o caso das Leis. Em semelhante leitura seletiva são afastados inclusive textos autobiográficos estratégicos, como é o caso da Carta Sétima. Nela, Platão afirma que seu alvo em Siracusa, terra dominada por Dionísio, era substituir o absolutismo do tirano pelo governo das leis. ( ) Um importante estudioso do pensamento platônico como Glenn R. Morrow ( ) cita as Leis, onde Platão afirma que não existe nenhum mortal que possa manter um mando supremo e irresponsável sem perder sabedoria e integridade. ( ) Se as leis perdem soberania, o Estado segue para a ruína. A mais elevada qualidade governamental e civica é a plena obediência às leis. Todos os juizes e funcionários devem ser responsáveis. Os dirigentes são chamados por Platão de Nomophylakes, ou seja, guardiões da lei, ministros de uma soberania que não é deles. O nome não é inventado pelo filósofo, ele existia em cidades gregas de seu tempo.
A tese da soberania da lei define o núcleo do pensamento politico platônico. Vejamos, no entanto, as modificações que ele propõe, em relação às formas existentes na vida jurídica ateniense, no quarto e quinto séculos. O principal era a supremacia das cortes populares, os dicastérios (palavra com origem em Diké, a lei). Tais cortes reuniam grande número de pessoas (de 500 a 2.500), selecionados por sorteio antes do julgamento. Tais cortes eram as geradas pela democracia e substituiam os pequenos tribunais anteriores, compostos de magistrados e dirigentes. Algumas destas pequenas cortes continuaram a existir ao lado das populares, sobretudo o Areópago, único a permanecer imune diante das cortes populares, pois ele julgava os crimes mais graves como homicídios e demais crimes que exigiam pena capital. Aquela corte usufruia de respeito amplo, enquanto as populares eram criticadas. Aristófanes, Tucídides, oradores vários dirigiram invectivas contra elas. Os democratas, no entanto, as defendiam fortemente.

Na Apologia de Sócrates, Platão endereça uma crítica velada contra aqueles tribunais populares.




No início do Estado moderno a legitimidade do governante ainda reside no ser divino. ( ) Mas a razão de Estado afasta os conceitos teológico-politicos e assume a linguagem do interesse estatal. Neste processo, juristas e teólogos como Botero, em resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes tendo como alvo manter e expandir os bens públicos. ( ) A nova razão política incorpora o segredo para garantir o gabinete real, lugar onde não são admitidos os homens comuns. Aceito com reservas pela Igreja, o segredo é a marca dominante do Estado laico. Se o secretário (a origem do termo é marcada pela própria palavra do segredo) e o governante devem ocultar tudo o que for possível aos que não têm acesso aos gabinetes eles, no entanto, devem descobrir tudo o que estiver para além das fronteiras de seu Estado e na mente e no coração dos dirigidos.

Do gabinete onde se oculta, o governante acumula segredos e deseja os súditos expostos sob luz perene. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na aurora dos tempos modernos “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( )

No mesmo período surgem as guerras de religião ocasionadas pela Reforma. As revoltas alemãs e francêsas atingem a Inglaterra. Para espanto do clero e da aristocracia, as massas populares aprendem a desobedecer as ordens dos príncipes. A antiga imagem do povo, negativa desde a Grécia e Roma, se exaspera. É conhecido o texto de Etienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária. ( ) Pouco se analisou o escrito do mesmo autor intitulado Mémoires de nos troubles sur l´Édit de janvier 1562. ( ) Devido às lutas religiosas na Guiana, a corte envia o magistrado aos locais para analisar e depois escrever um texto com sugestões jurídicas. É clara a cautela de La Boétie frente ao povo. Seria preciso impedir que o populacho tivesse ilusões de poder. Nas guerras religiosas que espalham “um ódio e maldade quase universais entre os súditos do rei” o pior é que “o povo se acostuma a uma irreverência para com o magistrado e com o tempo aprende a desobedecer voluntáriamente deixando-se conduzir pelas iscas da liberdade, ou melhor, licença, que é o mais doce e agradável veneno do mundo. Isto ocorre porque o elemento popular, tendo sabido que não é obrigado a obedecer ao príncipe natural no relativo à religião, faz péssimo uso dessa regra, a qual, por si mesma, não é má, e dela tira uma falsa consequência, a de que só é preciso obedecer os superiores nas coisas boas por si mesmas, e se atribue o juízo sobre o que é bom ou ruim. Ele chega afinal à idéia de que não existe outra lei senão a sua consciência, ou seja, na maior parte, a persuasão de seu espirito e suas fantasias (…) nada é mais justo nem mais conforme às leis do que a consciência de um homem religioso temente a Deus, probo e prudente, nada é mais louco, mais tolo e mais monstruoso do que a consciência e a superstição da massa indiscreta”. ( ) E arremata: “O povo não tem meios de julgar, porque é desprovido do que fornece ou confirma um bom julgamento, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita em outrem. Ora, é comum que a multidão creia mais nas pessoas do que nas coisas, e que ela seja mais persuadida pela autoridade de quem fala do que pelas razões que se enuncia”.

Gabriel Naudé fala do segredo e da desconfiança universal que obrigam o governante a se preservar “dos engodos, ruindades, surprêsas desagradáveis” quando a massa está inquieta. Na crise de legitimidade é preciso cautela contra o animal de muitas cabeças, “vagabundo, errante, louco, embriagado, sem conduta, sem espírito nem julgamento….a turba e laia popular joguete dos agitadores: oradores, pregadores, falsos profetas, impostores, políticos astutos, sediciosos, rebeldes, despeitados, supersticiosos”. ( )

Os teóricos da soberania popular não conseguem audiência nas cortes e parlamentos aristocráticos. As noções de universitas, communitas ou corpus, o povo reunido com majestade, toda essa constelação conceitual sofre críticas desde os seus momentos iniciais. De outro lado, os que defendem uma personalidade jurídica para o povo tomam cuidado para que a soberania popular não seja absorvida pelos representantes. ( ) “Já no final do século 13 a doutrina filosófica do Estado definiu o axioma de que o fundamento jurídico de todo governo reside na submissão voluntária e contratual das comunidades governadas. E foi declarado que por um principio de direito natural ao povo e apenas a ele, cabia colocar-se como chefe (…) do poder estatal. Althusius afirma ser impossivel diminuir a soberania popular com base no contrato”. ( ). O povo seria o summus magistratus.

Contra a massa popular os autores favoráveis à monarquia de direito divino se colocam na Inglaterra do século 17. As convulsões sociais e políticas que reunem todos os prismas da vida capitalista triunfante erguem a força popular traduzida em facções, dos Levellers aos Diggers, ocorre a mescla de religião e imperativos democráticos. Quando a cabeça de Carlos I é cortada, rompe-se o laço entre o corpo do Rei e a divindade, toma novo sentido o princípio da accountability, exigência que segue a fé pública. John Milton expressa o princípio: “Se o rei ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto de sua palavra”. Estas frases postas em The Tenure of Kings and Magistrates ( ) definem a nova legitimidade. O soberano povo exige responsabilidade dos que agem em seu nome.

Milton retoma os democratas inglêses. Não por acaso tais enunciados são recolhidos pelo inimigo da democracia no período, Thomas Edwards, num catálogo de “heresias” políticas que têm a pena de morte como castigo. O erro dos democratas, diz Edward, reside em afirmar que “ o poder supremo só pertence à Casa dos Comuns, porque só ela é escolhida pelo povo. O estado universal, o corpo do povo comum é o soberano terrestre, o senhor, rei e criador do rei, dos parlamentos, e todos os ministros da justiça. Majestade indeclinável e realidade residem de modo inerente no estado universal; e o rei, parlamentos, etc., são as suas meras criaturas que devem prestar contas a eles, os quais deles dispõem a seu arbitrio; o povo pode pedir de volta e reassumir seu poder, questioná-los, e colocar outros em seu lugar” (eu sublinho, RR) ( ) Thomas Edwards é um acadêmico de primeira plana e seus enunciados baseiam-se em fontes (sobretudo delações) e documentos. Se consultarmos historiadores da política inglêsa no período, confirma-se a veracidade dos enunciados atribuidos por Edwards aos democratas. ( )

As teses democráticas inglêsas repercutem na Europa inteira a partir do período. As Luzes francêsas apenas traduzem para o continente o pensamento produzido na Inglaterra desde o século 16 ( ). “Não existe verdadeiro soberano a não ser a nação; não pode existir verdadeiro legislador, a não ser o povo; é raro que o povo se submeta sinceramente a leis impostas; ele as amará, as respeitará, obedecerá, as defenderá como sua obra própria se é delas o autor (…). Desgraça ao soberano que despreza a lei, desgraça ao povo que suporta o desprezo em relação à lei”. ( )

Robert Derathé registra que essa tese, com fortes conseqüências na feitura das leis, não existe nos países que hoje se julgam democráticos. Neles, "é raro que uma lei possa ser votada sem o assentimento do governo". Como educar a cidadania para que ela exerça o poder soberano, sem cair nas mãos dos demagogos? Apenas depois de 1791, por exemplo, Robespierre assumiu a soberania popular. No discurso Sobre a Constituição (10/05/1793) ele toca a aporia ainda hoje irresolvida: "Dar ao governo a força necessária para que os cidadãos respeitem sempre os direitos dos cidadãos; e fazer isto de tal modo que o governo nunca possa violar os mesmos direitos". O governo, continua, "é instituído para fazer a vontade geral respeitada. Mas os governantes possuem uma vontade particular: e toda vontade particular tenta dominar a outra". Qualquer constituição deve "defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo". A solidez de uma Constituição se baseia "na bondade dos costumes, no conhecimento e no sentido profundo dos sagrados direitos do homem". Tangido pelas massas os jacobinos comparam o governo comum ao revolucionário. O segundo extrai legitimidade da "mais santa dentre as leis, a salvação do povo", a necessidade. Governo revolucionário não significa "anarquia nem desordem. O seu fim é, pelo contrário, reprimir as duas coisas, para conduzir ao domínio das leis (...) quanto maior o seu poder, quanto mais sua ação é livre e rápida, tanto mais é necessária a boa fé para dirigí-lo". A mudança de "soberania popular" para "ditadura" é clara. A última salva o povo. ( )

E se os ditadores usufruírem o poder para si apenas? A resposta de Robespierre desalenta: o ditador deve ser virtuoso. Na Convenção jacobina o governo, para "instituir" a República torna-se "superior" à população. Mas os sans culotte, nas Assembléias Populares, insistem na idéia e na prática da soberania do povo e na demissão sumária dos deputados ("mandatários"), juízes e demais servidores públicos. Em 1º de setembro de 1792, a seção "Poissonière" declara: "considerando que o povo soberano tem o direito de prescrever aos seus mandatários a via a ser seguida para agir conforme a sua vontade", os nomes dos deputados deveriam ser discutidos, aprovados ou reprovados pelas Assembléias primárias. A Assembléia Geral do "Marché-des-Innocents" decide em 25 de agosto de 1792" que os deputados serão demissíveis por vontade de seu Departamento, bem como "todos os funcionários públicos".

Os enciclopedistas e seus discípulos, como Condorcet, se preocupam com a formação intelectual das massas populares, conditio sine qua non da ordem democrática moderna. Democracia exige eleições. Mas estas podem deseducar o povo. Escrutínios trazem respostas incertas ou enganosas, perigo pressentido por Condorcet. Mesmo no Estado democrático “o poder se imiscui na operação eleitoral e a influencia: ele deseja demais uma ´representação´ favorável. E três “imagens” são misturadas nas eleições : a real, se a palavra tem sentido, a normativa ou potencial, porque se trata se conseguir uma direção no futuro, e a desejada e querida, porque os manipuladores tendem a se perenisar nos cargos e tentam desregulamentar os indicadores(…) os modos de escrutínio contam mais do que o resultado final, pois ele depende deles”. ( )

O rei, na instauração do Estado, foi conduzido ao segredo. O soberano popular segue o mesmo rumo quando sua prerrogativa se manifesta na hora do voto. Alí, supostamente, reina o segredo. Todos conhecem a passagem de Montesquieu no Espírito das Leis, mas a cito: “A lei que fixa a maneira de conceder os bilhetes dos sufrágios é ainda uma lei fundamental na democracia. É uma grande questão se os votos devem ser públicos ou secretos. Cicero escreve que as leis que os tornaram secretos nos últimos tempos da república foram uma das grandes causas de sua queda (…) Sem dúvida, quando o povo vota, o voto deve ser público e deve ser visto como lei fundamental da democracia. É preciso que o povinho (´petit peuple´) seja esclarecido pelos principais e contido pela gravidade de certos personagens”. ( ) Rousseau comenta o segredo deseducador do voto. Nas antigas repúblicas virtuosas “cada um tinha vergonha de dar publicamente seu sufrágio a uma opinião injusta ou assunto indigno, mas quando o povo se corrompeu e seu voto foi comprado, foi conveniente que o segredo fosse instituido para conter os compradores pela desconfiança e fornecer aos salafrários (´fripons´) o meio de não serem traidores”. ( ) Condorcet foi contrário ao voto secreto. Mas seus motivos diferem dos enunciados por Montesquieu e Rousseau. Ele é o autor de projetos de educação popular e conhece os problemas matemáticos suscitados nas eleições. Dos votos tudo pode sair, inclusive servidão. Ele mostra como o voto simples (sim e não) traz o arbitrário quando se trata de decidir entre diferentes programas ou pelo menos três candidatos. Este é o sentido do “paradoxo de Condorcet”, atualização do “paradoxo de Bordas”. Com este escrutinio tem-se a maior probabilidade de transformar a maioria em minoria, e vice versa. “É possível, se houver apenas três candidatos, que um entre eles tenha mais votos do que os dois outros e que, entretanto, um desses últimos, o que teve menor número de votos, seja olhado pela pluralidade como superior a cada um dos seus concorrentes”. Após demorada análise matemática, ele enuncia que numa eleição assim, o mais contestado pode ser eleito, enquanto o melhor, na hipótese de um escrutínio plunominal, eliminado. ( ) O paradoxo de Condorcet é estudado ainda em nossos dias. ( )

As multidões não são ensinadas ao voto segundo o cálculo das probabilidades. No Termidor, a massa popular perde a soberania, é substituida pelos proprietários, seguindo a receita de Boissy d´Anglas em discurso de 5 Messidor, ano 3: "Devemos ser governados pelos melhores (...) ora, com poucas exceções, só podemos encontrar semelhantes homens entre os que, possuindo uma propriedade, são apegados ao país que a contém, às leis que a protegem, à tranqüilidade que a conserva". Para o termidoriano, a lei não é máxima derivada do nexo entre princípios e situação. Somem as exigências do povo, a accountability e a destituição do governante. Com Napoleão e sua ditadura, imenso maquinismo operado pelo segredo, foram dadas as condições para o fim da doutrina sobre a soberania popular direta.


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