domingo, 11 de maio de 2008

A QUESTÃO DA GÊNESE E DA INSTABILIDADE DOS REGIMES POLÍTICOS EM SPINOZA.


A doutrina política de Spinoza liga-se à teoria das paixões. Ela pode ser lida, nos mínimos detalhes, na Ética. A paixão compreendida permite entender também as causas e fundamentos da sociedade política e das instituições. ( ) É a partir das paixões que Spinoza entende as disfunções institucionais encontradas na origem da auto-destruição das sociedades políticas. As paixões geram o Estado e podem destruí-lo. Com esta plataforma, analisemos as propostas indicadas por Spinoza para remediar a marcha da dissolução da sociedade política. Sendo o filósofo um defensor da democracia, os remédios por ele sugeridos integram a auto-regulagem das disfunções institucionais. Como toda a sua filosofia, da natureza ao conhecimento e deste à administração das paixões, é imanente (as mudanças não vêm de fora, de uma divindade ou de valores eternos), e monista, qualquer solução externa, em vez de remediar um status quo em declínio serve, na verdade, para piorá-lo. É por esse motivo que as teses teológico-políticas desgastam ainda mais o Estado, conduzindo-o à guerra das religiões, tão comuns no século 17 europeu.

Tomemos o artigo 7 do Capitulo I do Tratado Político: “Visto que todos os homens, bárbaros ou cultivados, formam em toda parte costumes que se dão um estatuto civil, não é dos ensinos da razão, mas da natureza comum dos homens, isto é, da sua condição, que é preciso as causas e os fundamentos naturais dos Estados…”. ( ) Quando Spinoza fala em “condição comum dos homens”, refere-se a eles como seres apaixonados. Mas submetidos a quais paixões? Todo o Tratado Político pressupõe que os homens desejam necessáriamente bens materiais. Trata-se da avaritia, paixão universal e constante. (TP, X/6). Eles também são necessariamente supersticiosos. “Concluo, portanto, dizendo que os vícios inerentes ao estado de paz (…) não devem ser combatidos diretamente, mas de modo indireto, colocando-se princípios fundamentais de modo que o maior número se esforce não de viver sábiamente (isto é impossível) mas se deixe dirigir pelas afecções das quais o Estado arranca mais benefícios. É preciso tender sobretudo a fazer com os ricos sejam senão ecônomos, pelo menos que eles desejem aumentar suas riquezas. Pois não há dúvida que se esta avidez (avaritia) que é uma paixão universal, e constante, seja alimentada pelo desejo de glória, a maioria se aplicará com maior zelo a aumentar a sua riqueza sem os meios desonrosos , o ter que eles podem pretender serem bem considerados evitando a vergonha (ignomínia)”. O desejo de possuir bens materiais, na sua origem, é exposto na primeira metade do livro III da Ética.

“Toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”. (Etica, III/4-9) ( ) Quando esse esforço (conatus) é favorecido por causas externas, ele se transforma em alegria (E, III, 11) ( ) Se o nosso corpo aumenta ou diminui sua potência de agir, a idéia desta coisa aumenta e diminui, aumenta ou reduz a potência da nossa mente. ( ) Quando a alegria é seguida da causa exterior que lhe atribuimos, ela torna-se amor por esta causa externa (E, III, 12-13) Amor é a alegria seguida da idéia de uma causa externa, ódio a tristeza seguida da idéia da causa externa. Quem ama se esforça necessariamente por ter presente e conservar a coisa que ama, quem odeia se esforça por destruir a coisa que odeia. Se amamos algo, nos apegamos incondicionalmente e queremos nos apropriar e conservá-lo, portanto. Nós nos alienamos inteiramente nele. Esta alienação pode passar da coisa que nos alegra para outras, a ela ligadas em nossa mente. Assim ocorre com os meios para conseguí-la no futuro, como é o caso do dinheiro ou da terra.

Para conseguir o necessário para todos os indivíduos, as forças de cada um deles não bastariam se os homens não se prestassem serviços mútuos. O dinheiro tornou-se instrumento com o qual nos proporcionamos todas as coisas, sendo ele o resumo de todas as riquezas, tanto que sua imagem ocupa ordináriamente mais do que todas as outras coisas nas almas vulgares. Elas não podem imaginar nenhum tipo de alegria, senão acompanhando como causa a idéia da moeda. Este, no entanto, é um vício nos que estão à busca de dinheiro, não por necessidade nem para prover as necessidades vitais, mas porque aprenderam a arte variada de enriquecer e se honram de possuir. Eles dão ao corpo o seu pasto, segundo o costume, mas tentando poupar, porque acreditam perdida toda parte de seus bens dispendida para a conservação do corpo. Para os que conhecem o verdadeiro uso da moeda, e regulam sua riqueza segundo as necessidades apenas, eles vivem contentes com pouco. ( )


No Apêndice do livro I da Ética, mostra-se como semelhante teoria do amor permite explicar a origem de nossa crença em divindades antropomórficas. Deus existe necessariamente. Ele é único. Ele age apenas pela necessidade de sua natureza. Ele é a causa livre de todas as coisas. Tudo é em Deus e depende dele, nada pode ser concebido nem ser sem Ele. Tudo foi prederminado por Deus, não por livre vontade, por um beneplácito absoluto, mas pela sua natureza absoluta, ou seja, por sua potência infinita. Os homens imaginam que todas as coisas da natureza agem, como eles, tendo em vista um fim. E imaginam que Deus dirige tudo para uma finalidade. Deus fez o homem para quel ele lhe prestasse culto. Isto é um preconceito. Todos nascem sem o conhecimento das causas das coisas e todos têm apetite de buscar o que lhes é útil. O que está em sua consciência. Daí,

1) os homens imaginam ser livres, porque têm consciência de sua volições e de seu apetite e não pensam, mesmo em sonho, nas causas que os dispõem a apetecer e a querer, não possuindo delas nenhum conhecimento.
2) Eles agem sempre tendo em vista um fim, o útil que lhes apetece. Eles se esforçam sempre e unicamente para conhecer as causas finais das coisas completadas e se colocam em repouso quando delas são informados, não tendo mais razões de se inquietar.
3) Se não podem conseguir tais razões finais dos outros, refletem sobre os fins pelos quais são determinados em ações semelhantes, e assim julgam os outros por eles. Como encontram em si mesmos e fora de si meios que ajudam para atingir o que é útil (olhos para ver, dentes para mastigar, ervas e animais como alimento, Sol para iluminar, mar para produzir peixes) eles chegam a considerar tudo o que está no interior da natureza enquanto meio para seu uso. Como tais meios não são produzidos por eles, persuadem-se da existência de um ou vários diretores da natureza (Naturae rectores) dotados da liberdade humana, que provêm as suas necessidades e tudo colocam ao seu uso.
4) Como ignoram a compleição daqueles seres, julgam-na segundo a sua própria e admitem que os deuses dirigem tudo para uso dos homens, afim de que eles se apeguem às divindades e para serem honrados pelos humanos. E todos, projetando a sua própria compleição, inventaram no seu engenho diversos meios de cultuar Deus, com o fim de serem amados por Ele acima de todos os demais. E assim, obter que Ele dirigisse a natureza inteira em proveito de seu desejo cego e de sua insaciável avidez (avaritia).
5) Tal preconceito se transforma em superstição e lança raizes profundas na mente humana. Tentanto dizer que a natureza nada faz em vão (segundo a sua economia, na qual eles são o fim), nada mais provam que os deuses e a natureza deliram como eles. Como a natureza comporta furacões, tempestades, terremotos, etc. coisa naturais, tanto quanto as que servem utilmente aos homens, este tentam inverter toda a fábrica natural, inventando uma outra. E admitem que os juizos divinos transcendem os humanos e, portanto, a verdade nunca seria acessível a eles. Isto seria assim, se as matemáticas ocupadas não com os fins mas apenas com as essências e propriedades das figuras, não apresentassem uma outra norma da verdade, permitindo perceber os preconceitos comuns e chegar ao conhecimento verdadeiro das coisas.


Além da Ética, o Prefácio do Tratado Teológico Político analisa o mecanismo pelo qual quando somos presas do medo (E, III/18 e Escólio 2) tal crença se transforma em superstição (E, III, 50 e Escólio). Tanto o Estado quanto as superstições, como a avaritia, a fome de bens, são explicados pela teoria das paixões. Donde a alienação explicada por Spinoza é dupla: ela é econômica e ideológica. No artigo 5 do capítulo I do Tratado Político Spinoza resume as teoria das relações humanas apaixonadas, tal como a expôs na segunda metade do livro III da Ética. As paixões analisadas são a piedade, a ambição da glória, a ambição de mando e a inveja. Todas têm uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução é dada na Ética III/27. “Se imaginamos que uma coisa semelhante (simile) a nós e diante da qual não experimentamos nenhum afecção de nenhum modo, experimenta alguma afecção, experimentamos por isto mesmo uma afecção semelhante. As imagens das coisas são afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se estivessem presentes em nós, ou seja, cuja idéia envolve a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo a natureza presente de um corpo externo. Se a natureza do corpo externo é simile à do nosso corpo, a idéia do corpo externo que imaginamos, envolve uma afecção do nosso corpo similar à do corpo externo. Por conseguinte, se imaginamos algum semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolve um afecção similar do nosso corpo. É por isso que imaginamos que se uma coisa similar a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção similar à sua. Se, pelo contrário, tivessemos ódio uma coisa similar a nós, experimentariamos, na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua”. ( ) Quando vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor (é a piedade, E. III/27) e queremos socorrê-lo (é a benevolência, E III/27, corolário 3). Se conseguimos socorrê-lo e ele se alegra e, pois, nos alegramos com a idéia de nós mesmos como causa (é a glória, E III/30 e escólio) e como se trata de um sentimento muito agradável, desejamos, para reproduzi-lo, continuar na ajuda aos outros (é a ambição da glória, E III/29 e escólio).

Mas se desejamos fazer alguém feliz, não queremos no entanto lhe sacrificar nossos desejos próprios. Nos esforçamos, pois, para resolver esta contradição, e tentamos converter o outro aos nossos próprios valores, obrigando-o a amar o que amamos e a odiar o que odiamos (E, III/31 e corolário): a ambição de glória se transforma em ambição de mando (E, III/31 escólio) e esta ambição de mando pode gerar a pior das intolerâncias (Id), em especial a ideológica, a intolerância supersticiosa. Se conseguimos fazer alguém gostar do que queremos que ele goste, se ele se apossa de alguma dessas coisas e com ela se alegra, e se esta coisa só pode ser possuida por um indivíduo, desejamos delas gozar sozinhos e, por conseguinte, dele arrancá-la, esta é a inveja (E, III/3 e escólio) que se manifesta sobretudo em matéria econômica. Mas quando conseguimos privar o outro daquilo que o alegrava, ele fica triste, temos piedade dele e o ciclo recomeça.

No artigo I do capitulo VI do Tratado Político Spinoza afirma que os homens vivem em sociedade política não devido à razão, mas pelas paixões, como a do medo. Ele cita o artigo 9 do Capitulo III, onde mostrou que os homens se unem quando o medo que sentiam em comum se transforma em indignação. Esta é uma forma de imitação afetiva (Ética III/27, corolário 1): ela é o ódio experimentado por quem faz mal a um ser similar a nós, e sentimos isso por imitação dos sentimentos da vítima. Imagine-se o estado de natureza, com um indivíduo que não consegue comida. Por piedade ou desejo de glória, alguns o socorrem. Se a ajuda é eficaz, sua piedade ou ambição de glória se transforma em ambição de mando e de inveja, e começa a agressão contra o “socorrido” que não aceita ser mandado ou não aceita falar sempre do socorro, para glória do seu “salvador”. Alguns que, até então, apenas assistiam aquelas cenas, se indignam com o mal que lhe é feito e o ajudam. E isto se complica e se repete muitas vezes. O agredido se torna agressor e vice-versa, levando consigo grupos e coletivos de agressores e de agredidos. E aumenta a indignação geral. E cada um se beneficiará e também será prejudicado pelas agressões. Cada um tem medo de todos e espera obter ajuda de todos. Uma só coisa suscita em todos o medo e a esperança: o poder coletivo. (TP, III/3). Mas todos julgam esta situação intolerável e se dispõe a ajudar cada um que julga ser vítima de agressão. Cada vez que um entra em conflito, cada um deles pede socorro aos outros, e os que se julgam mais semelhantes ao agredido, agredirão os seus agressores. Até que o consenso imponha normas comuns para reprimir massiçamente os que as violam e proteger quem as respeita. Há então uma potência coletiva da multidão que assegura os obedientes e ameaça os não conformistas. Temos o embrião da soberania política, porque, segundo Spinoza, a soberania é “o direito que se define pela potência da multidão” (TP, II/17).


“Este direito que define a potência da multidão, costumeiramente chama-se poder público (imperium), e ele possui absolutamente este poder, o qual, por consenso comum cuida da coisa pública e estabelece, interpreta, e abole as leis, defende as cidades, decida a guerra e a paz. Se tal cuidado pertence a uma assembléia (concilium) composta de toda a multidão, então trata-se da democracia. Se a assembléia se compõe de algumas pessoas de escol, aristocracia. E se o cuidado da coisa pública e por consequência o poder pertence a um só, monarquia”. ( ) Não basta que a massa popular se una e se torne mais forte do que os indivíduos que a compõem. É preciso que tal poder seja reposto, de modo a poder agir com eficácia no presente e no futuro. Esta é a tarefa da institucionalização do poder. Quais são os problemas mais urgentes da institucionalização ?

1) O comando. O coletivo é uno. Mas quem o dirige? Existem muitos candidatos (TP, VII/5) “É certo…que ninguem gosta de ser governado, mas de governar. Ninguém cede voluntariamente o mando para outrem (…) É evidente que a massa do povo jamais transferiria seu direito a um pequeno número de homens, ou a um só, se ela pudesse concordar consigo mesma e se as discussões que se levantam com frequência nas grandes assembléias não gerassem sedições. A massa do povo não transferirá jamais livremente a um rei o que lhe é impossível guardar em seu poder, o direito de acabar às discussões e tomar uma rápida decisão. Se ocorre com frequência que se escolha um rei devido à guerra, porque os reis são mais eximios na guerra, está aí uma tolice porque, para guerrear com maior eficácia, consente-se à servidão na paz , supondo-se que a paz reine num Estado onde o soberano poder foi confiado a um só devido apenas pela guerra e porque o chefe mostra principalmente na guerra seu valor (alí ele é proveitoso para todos). Num Estado democrático, no entanto, tem-se o fato notável de que o seu valor é bem maior na paz do que na guerra. Mas qualquer que seja a razão pela qual se escolhe um rei, ele não pode, sozinho saber o que é útil ao Estado (…) ele precisa de conselheiros em grande número dentre os cidadãos….”. ( ) Assim que se forma o poder político cada um, por ambição de mando, deseja participar dele o mais possível. Seguem-se os conflitos que decidem a sorte do coletivo.

2) A ideologia. Não basta saber quem comanda, é preciso saber o que será comandado. O que o bem e o mal? (TP, II/18). Como os homens se batem porque não têm os mesmos valores, pois cada um tende a seguir seu próprio engenho (ingenio) e cada um quer impor as suas noções aos outros, o coletivo só pode sobreviver se a autoridade politica conseguir fazer aceitar, de modo estável, um sistema comum de valores. Como os valores dependem das superstições pessais, é institucionalizada a superstição. Um atributo do Estado é decidir quais religiões são autorizadas e quais proibidas. (TP, III/10).
3) A Propriedade. Trata-se da segunda fonte de conflitos, a inveja econômica. Como disputam as mesmas coisas, quando elas só podem ser possuídas por um apenas (é particularmente o caso da terra), o grupo sobrevive apenas se o soberano definir com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um (TP, II/23). Para isto, ele precisa fazer com que sejam obedecidos o regime da propriedade. Tais problemas são péssimamente resolvidos, o que gera toda espécie de disfunção institucional, que, em prazo longo, acabam destruindo o Estado.



Disfunções da política:

Primeiro principio geral:

Não se pode obrigar os homens a fazer qualquer coisa, é impossível fazê-los algo sem esperança de recompensa ou ameaça de castigo. Eles não podem ser obrigados a voar. Também a pura repressão não adianta para fazê-los crer em coisas absurdas, a não desejar o que amam, amar o que odeiam. Os soberanos necessariamente devem obedecer tais limites. É impossível alterar a natureza humana e fazer com que homens deixem de ser homens.

Aqui, é preciso recordar o monismo de Spinoza. Existe apenas uma Substância (Deus ou Natureza), da qual somos modificações. A nossa força vem da substância divina, infinita. Assim, quanto mais próximos de Deus (mais pensamos e agimos segundo as leis natuais/divinas) mais livres somos. Querer nos fazer agir ou pensar contra a nossa natureza é colocar uma força finita (a de homens, poderosos mas homens) contra uma força infinita na qual nos movemos. Um poderoso pode tentar fazer com que um indivíduo isolado atue contra sua natureza. Ele não consegue e pode apenas dobrar a lingua do seu objeto de ódio, mas jamais a sua mente. Se o indivíduo une-se a outros, com rapidez de tempo e chega à simultaneidade na união, a força coletiva é maior do que a do tirano. Assim, quando os indivíduos estão separados porque não seguem a lei e a força divinas (naturais) eles podem ser dominados pela tirania. Mas ao se unirem, aproximam-se do poder natural divino, aproximam-se do infinito. E podem vencer o tirano.



Segundo princípio geral:

Quando os dirigentes ignoram e desrespeitam a força natural divina que está neles e nos dirigidos, ultrapassando imagináriamente os limites do direito natural, catástrofes surgem para eles e para o Estado. Quanto mais reprimem, mais temor inspiram. O medo é uma tristeza (Etica, III/18-Escólio 2), que implica em ódio contra os que tememos. Se os dirigentes não sabem se manter em limites, mesmo na repressão, erguem a indignação geral, a máquina das paixões que instaurou a sociedade política, e que pode causar a sua dissolução (TP,III/9 e IV/4). Quando todos percebem que podem contar com a ajuda dos outros, porque todos estão indignados contra o mal feito contra alguns ou muitos, unem-se contra o dirigente que, no limite, é derrubado.

Medo=Tristeza: “A Esperança é uma alegria inconstante, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada cuja saída é considerada duvidosa. O Medo, pelo contrário, é uma Tristeza inconstante nascido da imagem de uma coisa duvidosa. Se dessas afecções extraimos a dúvida, a Esperança torna-se Segurança, e o Medo desespero. Entendo uma Alegria ou uma Tristeza nascida da imagem de uma coisa passada, cuja saída foi tida por nós como duvidosa. O remorso é a Tristeza oposta ao gáudio.”


“Quando se trata de medida que provoque indignação geral, obedecendo a natureza, os homens unir-se-ão contra ela, seja devido a um medo comum seja por desejo de vingança de algum malefício comum e, visto que o direito da Cidade é definido pela potência comum da multidão, é certo que a potência e direito da Cidade diminuem, pois foram fornecidas razões para que se forme uma liga conspirativa. A Cidade certamente enfrenta perigos e deve temê-los; como no Estado de natureza um homem depende mais de si mesmo quanto mais razões tem de temer, também a Cidade, pertence pertence menos a si mesma quanto mais tem a temer.” ( ) Quando ocorrem as situações de medo? Em qual hora os governantes e governados sentem aquela paixão de modo decisivo? Matheron cita alguns casos ilustrativos.

1/ Uma hipótese: os homens sairam neste instante do estado natural e acabam de instituir a sociedade política, sem nunca ter a experiência anterior de um Estado. Esta hipótese é falsa, visto que não é possível, na filosofia de Spinoza, chegar ao “primeiro” instrumento técnico (o martelo) ou ao “primeiro” instrumento técnico da política ou do saber científico. É o que já se pode ler no Tratado da Reforma do Intelecto: “[…] precisamos indicar a Via ou Método por onde chegaremos a conhecer tão verdadeiramente as coisas que precisamos conhecer. Para isto é reciso observar de inicio que não haverá aqui busca ao infinito: para encontrar o melhor método pelo qual procuraríamos a verdade, não precisamos de um método para buscar este método e para buscar este segundo método não precisaremos de um terceiro e assim ao infinito. Pois daquele modo nunca chegaríamos ao conhecimento da verdade e a nenhum conhecimento. É o mesmo que ocorre com os instrumentos materiais, que daria lugar ao mesmo raciocínio. Para forjar o ferro, com efeito, é preciso um martelo e para ter um martelo é preciso fazê-lo. Para isto, um novo martelo, e outros instrumentos são necessários e, para ter aqueles instrumentos, outros ainda ao infinito. E assim poder-se-ia provar que os homens não têm nenhum poder de forjar o ferro. Na realidade puderam, com instrumentos naturais, chegar aquele invento, embora penosamente e de maneira imperfeita, vencendo tarefas com procedimentos fáceis. Uma vez tendo-as acabado, executaram outras mais difíceis com menor esforço e mais perfeitamente e assim indo por gráus dos trabalhos mais simples aos instrumentos, destes instrumentos a outros trabalhos e instrumentos, num progresso constante, e chegaram a executar tantos trabalhos difíceis, com pouco esforço. Assim também o intelecto com sua força natural produz para si mesmo instrumentos mentais que aumentam a sua força para executar outros trabalhos intelectuais, desses últimos ele extrai outros instrumentos, ou seja, o poder de empurrar para mais longe sua pesquisa, e continua assim a progredir até chegar ápice da sabedoria”. ( )

Assim como não existe a regressão ao “primeiro martelo” ou ao “primeiro método”, também não existe regressão à “primeira coletividade política”. Com isto, Spinoza dá um tiro mortal nos programas conservadores que indicam uma “comunidade” perfeita no início da Humanidade. Este coletivo jamais existiu. Com prudência política, pode-se apenas recolher e aperfeiçoar no presente e no futuro o que os homens fizaram no passado. E com o monismo, não existe fora da natureza nenhum modelo ou paradigma da “boa” sociedade política. Nota-se que o neo-platonismo ou mesmo o platonismo são descartados por Spinoza neste passo. Se temos um coletivo que nunca possuiu Estado ou política, qual soberania ele dará a si mesmo? Depende do regime a que estavam habituados “antes” de retornar ao estado de natureza. Os judeus habituados à escravidão no Egito, não podiam viver em democracia. (TTP, V).

O Capítulo V, do Tratado Teológico Político apresenta razões gerais do poder político e logo a seguir deduz as consequências para os Hebreus recem saídos do Egito. “A sociedade é útil e necessária no mais alto ponto, não apenas porque protege contra os inimigos, mas também porque ela permite reunir um grande número de comodidas. Se os homens não desejassem se ajudar mútuamente, a habilidade técnica e o tempo lhes fariam igualmente falta para manter sua vida e conservá-la tanto quanto possível. [Recordemos a Ética : “o esforço para se conservar é o primeiro e único fundamento da virtude”] . Ninguém teria o tempo e as forças necessárias se fosse preciso arar, semear, colher, moer, cozer, tecer, costurar e efetuar muitos outros trabalhos úteis à manutenção da vida. Isto, para nada fazer das artes e ciências, que são supremamente necessárias para a perfeição da natureza humana e para sua felicidade. Vemos, com efeito, que os que vivem como barbaros, sem civilização, conduzir uma vida miserável e quase animal, e no entanto o pouco que eles possuem, miseravel e grosseiro, eles só o conseguem prestando-se mútuo socorro. Se homens fossem dispostos pela natureza de modo que só desejassem o que ensina a verdadeira Razão, a sociedade não precisaria de lei nenhuma, bastaria esclarecer absolutamente os mesmos homens com ensinos morais para que eles mesmos fizessem e com alma liberal o que é verdadeiramente útil. Mas é bem diferente a disposição da natureza humana; todos observam seu interesse, mas não seguindo o ensino da reta razão ; o mais frequente que os homens sejam arrastados por seu apetite apenas de prazer e as paixões (que não se preocupam com o futuro e só dão conta de si mesmas) que eles desejam algum objeto e o julgam útil. Daí que nenhuma sociedade pode subsistir sem um poder de comando e uma força, e por conseguinte sem as leis que moderam e constrangem o apetite do prazer e as paixões sem freio. Contudo a natureza humana não suporta ser constrangida absolutamente, e como diz Seneca o Trágico : “ninguém exerceu muito tempo um poder violento, um poder moderado perdura”. Enquanto, com efeito, os homens agem apenas por medo, fazem o que é mais contrário à sua vontade, e não consideram de nenhum modo a utilidade e a necessidade da ação, mas só se preocupam em salvar sua cabeça e não se expor aos suplícios. Bem mais, é-lhes impossível não sentir prazer com o mal e com o prejuízo do governante que tem poder sobre ele, mesmo em seu detrimento, de não lhe desejar malefícios e fazer-lhe tanto mal quanto possam. Nada existe mais difícil enfim, do que arrancar dos homens uma liberdade , após tê-la concedido.

Segue-se que toda reunião humana deve, se é possível, instituir um poder que pertença à coletividade de modo que todos sejam levados a obedecer a si mesmos e não aos seus similes. Se o poder pertence apenas a alguns, ou a um só, este último deve ter algo superior à natureza humana, ou pelo menos deve se esforçar para fazer com que o vulga creia nisso. Em segundo, leis deverão ser estabelecidas em todo Estado de modo que os homens sejam contidos menos pelo medo do que pela esperança de algum bem particularmente desejado. Assim, cada um cumprirá seu mister com ardor.Finalmente, dado que a obediência consiste no fato de se executa ordens por submissão apenas à autoridade do chefe que comanda, vê-se que ela não tem lugar nenhum numa sociedade onde o poder pertence a todos e onde as leis são estabelecidas por consentimento comum. Seja numa sociedade assim, pu em outra sociedade, as leis aumentem em número ou diminuam, o povo permanece sempre livre igualmente, pois não age por submissão a autoridade alheia, mas pelo seu próprio consentimento. Ocorre algo muito diferente quanto um só detem o poder absoluto. Então, todos, sem nenhuma exceção, executam as ordens do poder por submissão à autoridade de um só. A menos que os homens sejam amestrados a desde o princípio a ficarem presos à palavra do chefe que comanda, será muito difícil para ele, em caso de necessidade, instituir leis novas e arrancar do povo uma liberdade concedida certa vez.

Depois dessas considerações gerais, voltemos à organização política dos Hebreus. Quando sairam do Egito, eles não eram obrigados pelo direito de nenhuma nação, e podiam estabelecer leis novas segundo melhor lhes aprouvesse, ou seja, constituir um direito novo, fundar seu Estado onde escolhessem e ocupar as terras que desejassem. Eles não estavam preparados para estabelecer regras de direito e exercitar o poder coletivamente pois todos possuiam um engenho grosseiro e deprimido pela servidao sofrida. O poder precisou ficar, pois, nas mãos de um só, capaz de comandar os outros, de constrangê-los pela força, de prescrever enfim leis e interpretá-las. Este poder, Moisés pôde fácilmente continuar a detê-lo porque estava acima dos outros por uma virtude divina como ele persuadiu o povo e mostrou por numerosos testemunhos (Exodo, capitulo 14, último versículo, [“E Jeová salvou Israel naquele dia das mãos do egípcios; e Israel viu os egipcios mortos no mar. E Israel viu a grande obra que Deus fez contra os egipcios, e o povo temeu Jeová: e eles acreditaram em Jeová e no seu servo Moisés”] e capítulo XIX, versiculo 9). Ele estabeleceu portanto, e impôs regras de direito pela virtude divina que o distinguia. Mas tomou o maior cuidado de fazer o povo cumprir o seu ofício, menos por medo do que expontâneamente. Duas razões principais o constrangeram : de início, a insubmissão natural do povo (que não suportava ser dominado apenas pela força) e a ameaça de guerra que exigia, para ser feliz, que os soldados fossem conduzidos mais pela persuasão do que pelos castigos e ameaças. Desse modo, com efeito, cada um se esforçou de se distinguir pela coragem e grandeza de alma do que escapar apenas do suplício”.

Como no estado de natureza “absoluto” hipotético, ninguém era superior a outros, a primeira suposta forma de regime soberano é a democracia. No estado de natureza ninguém comanda duravelmente ninguém, ninguém se impõe pela sua força ou prestígio. A ambição de mandar e a inveja está em todos, sem nenhum constrangimento, impede que a autoridade seja dada apenas a um só ou a alguns. Logo, apenas a assembléia inteira do povo. A democracia é a solução mais simples, mais lógica, “mais natural” (TTP, XVI)

Mesmo os hebreus, na situação posterior ao Egito, experimentam as bases da ordem democrática. “Dado que os Hebreus não transferiram para ninguém o seu direito, mas todos eles, como numa democracia, renunciaram ao seu direito, e clamaram numa só voz que fariam tudo aquilo que Deus dissesse (sem nenhum mediador expresso), segue-se por conseguinte em virtude desse pacto, que todos ficaram completamente iguais, no direito de interpelar Deus, de receber e de interpretar leis e de participar em todas as tarefas da administração do Estado”. (TTP, Capítulo 17). ( ) No Estado proposto pelo filósofo, as formas democráticas exigem a igualdade plena dos cidadãos. ( ) Para perceber o radicalismo da idéia, precisamos tecer alguns considerandos sobre o direito natural e discutir as suas teses sobre os vínculos dos homens com Deus e entre si.

A doutrina de Spinoza é contrária à teoria de Hobbes. O próprio pensador enunciou as principais oposições entre ambos: “a diferença consiste em que eu mantenho sempre o direito natural e que só concedo numa cidade qualquer direito ao soberano sobre os dirigidos na medida em que, pela potência, ele é mais forte do que eles; é a continuação do estado de natureza”. ( ) Ao contrário de Hobbes, no instante em que se institui a soberania nenhum indivíduo abdica do direito natural em prol de um arbitro posto acima da reunião societária. A igualdade entre dirigidos e dirigentes é garantida, modificando-se apenas o âmbito e a força das pessoas e funções. No Estado democrático “ninguém transfere o seu direito natural para um outro, a ponto deste nunca mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria da sociedade , de que ele próprio faz parte. Portanto, nessa medida, todos se mantêm iguais, tal como acontecia antes, no estado de natureza

Spinoza, longe de exigir o combate às paixões, ou de recusar a sensibilidade humana, afirma a preponderância das mesmas na vida e na política. A paixão do medo não será atenuada por uma ascese ou exercício racional. Ela apenas será afastada com o aumento da potência de uma outra paixão, a trazida pela alegria. Para o pensador judeu se quisermos pensar a política precisamos reunir no intelecto os extremos da tristeza e da alegria. Quando temos a imagem de algo o consideramos presente, mesmo que ele não exista. E o imaginamos como passado ou futuro, apenas enquanto a sua imagem está unida à imagem do tempo pretérito ou que virá. Considerada em si mesma, a imagem de algo é a mesma, seja unida ao passado, seja ao futuro, ou ao presente. Em qualquer daquelas situações, a alegria ou tristeza será a mesma. Coisa passada ou futura: enquanto somos ou seremos afetados por ela, se algo que comemos nos fez mal, ou nos fará, etc. Nosso corpo não experimenta nenhuma afecção que exclua a existência da coisa, porque ele é afetado pela imagem da coisa, como se ela estivesse presente. Como temos várias experiências, quando consideramos uma coisa passada ou presente flutuamos e não conseguimos nos manter firmes, vendo como duvidosa a resolução do dilema que nos ameaça. As afeccões nascidas das imagens que flutuam em nós, também flutuam segundo as imagens de coisas diversas, até que tenhamos adquirido alguma certeza para a solução do nosso relacionamento com a coisa. Assim, podemos conhecer a esperança, o medo (Metus), a segurança (Securitas), o desespero, o contentamento (Gaudium) e o remorso. “Esperança é alegria inconstante nascida da imagem de algo futuro ou passado cuja saída consideramos duvidosa. O medo, pelo contrário, é uma tristeza inconstante nascida igualmente da imagem de algo duvidoso. Se destas afecções extrairmos a dúvida, a esperança se transforma em segurança, e o medo se transforma em desespero. Falo de uma alegria ou tristeza nascidas da imagem de algo que nos afetou de medo e de esperança. O gaudio é uma alegria nascida da imagem de algo passado cuja saida foi considerada por nós como duvidosa. O remorso é a tristeza oposta ao gáudio”.

A partir desse conceito de flutuação da alma, vejamos o que enuncia o Tratado Teológico-Político: “Se os homens fossem capazes de governar toda a conduta de sua vida por um objetivo regrado, se a fortuna lhes fosse sempre favorável, sua alma estaria livre de toda superstição. Mas como eles estão sempre postos num estado incômodo que não lhes pemite tomar nenhuma resolução razoável, como eles flutuam quase sempre miseravelmente entre a esperança e o medo, por bens incertos que não sabem desejar com medida, seu pensamento abre-se sempre à mais extrema credulidade. Ele oscila na incerteza. O menor impulso o joga em mil direções diversas, e as agitações da esperança e do medo aumentam mais a sua inconstancia. De resto, observemos os homens em outros encontros, nós os veremos confiantes no futuro e cheios de jactancia e orgulho”. E novamente no Tratado Teológico-Politico : “Ninguém viu os homens sem notar que, ao estarem na prosperidade, todos se gabam, tão ignorantes quanto possam ser, de uma sabedoria tal que julgariam uma injúria receber um conselho. No dia da adversidade, surpreendidos, não sabem qual partido escolher: vemos que eles mendigam ao primeiro que aparece, e por mais inepto, absurdo e frívolo que se imagine um conselho assim, eles o seguem cegamente. Mas logo, a partir da menor aparência, recomeçam a esperar um futuro melhor ou temer as piores infelicidades.

Que lhes ocorra, com efeito, quando estão presas do medo, algo que lhes recorde um bem ou mal passados, eles dizem logo que o futuro será propicio ou funesto. E cem vezes enganados pelo evento, eles não deixam de acreditar nos bons e maus presságios. Se testemunham um fenomeno extraordinário e que os fere de admiração, aos seus olhos trata-se de um prodígio que anuncia a colera dos deuses, do Ser Supremo. E não dobrar sua colera através de preces e sacrificios, é uma impiedade para estes homens conduzidos pela superstição e que desconhecem a religião. Eles querem que toda a natureza seja cumplice de seus delírios e ficções ridículas, eles a interpretam de mil modos maravilhosos”. O medo é desejo de evitar o mal maior que tememos por outro menor. (Ética, 3, 39). Assim, definem-se todos os passos seguintes na Ética, como a audácia, desejo que excita alguem a fazer alguma ação correndo o perigo que os seus semelhantes temem enfrentar. A pusilaminidade é o desejo reduzido pelo medo do perigo que as pessoas semelhantes ousam enfrentar. A pusilaminidade é só o medo de um mal que a maioria não costuma temer. Por isto, Spinoza, não a coloca entre as afecções do desejo. A explica apenas, porque ela se opõe realmente à audácia, tendo em vista o desejo que ela reduz. “A consternação diz-se daquele cujo desejo de evitar um mal é reduzido pelo espanto do mal de que ele tem medo. Consternação seria um modo de pusilaminidade. Mas ela nasce de um duplo medo e pode ser definida mais comodamente como o medo que contem de tal jeito um homem ferido de estupor ou flutuante, que ele não pode afastar o mal de si. Digo ferido de estupor, enquanto concebemos seu desejo de afastar o mal como reduzido pelo espanto. Digo flutuante, enquanto concebemos este desejo como reduzido pelo medo. Medo de um outro mal que também o atormenta. Donde vem que ele não saiba qual dos dois contornar”.

É útil aos homens atar relações entre si, forjar liames que os tornam mais aptos a constituir, juntos, um só todo e fazer sem restrições o que contribui para afirmar as amizades. (Ética, livro 4, capitulo 12). A concórdia, nasce da justiça, equidade, honestidade. Os homens suportam dificilmente além do que é iniquo e injusto, o que se considera vergonhoso. Eles suportam mal testemunharem o desprezo dos costumes recebidos no Estado. Na mesma Ética, livro 4, capítulo 16 lemos : “a concórdia, ordinariamente tem por origem o medo, mas sem boa fé (sed sine fide)”. Acrescentemos que o medo nasce da impotência da alma e não pertence ao uso da razão, não mais do que piedade, embora esta última tenha a aparência da moral. Retenhamos a expressão, “sem boa fé”. Ela é estratégica para entender a tese de Spinoza, eivada de maquiavelismo, na questão do pacto social e do direito natural. O pacto, para ser válido, e durável, deve seguir algumas condições. “É uma lei universal da natureza que ninguém renuncia ao que considera ser um bem, salvo na esperança de um bem maior, ou no medo que resulte indiretamente num prejuizo. Ninguém aceita um mal, a não ser para evitar um pior, ou na esperança de um bem. Trata-se daquilo que ele considera melhor ou pior, sem necessariamente o seja de fato. Esta lei está escrita em caracteres tão fundos na natureza humana, que é preciso considerá-la entre as verdades eternas, das quais ninguem pode fugir”. Consequência: ninguém pode prometer, sem engôdo, alienar-se do direito do qual goza em todos os domínios, ( ) nem se decidir a manter esta promessa, a menos que tenha medo de um mal maior ou esperança num bem. “Um ladrão me constrange a lhe prometer a lhe entregar tudo o que é meu. Meu direito natural é determinado apenas pela minha força. Se posso escapar do ladrão por uma promessa enganosa, estou autorizado pelo direito natural. No meu interior, posso perfeitamente não ter a intenção de manter a promessa. Ou se prometo a alguém que passarei vinte dias sem comer. Se percebo a estupidez desta promessa, estou na obrigação de escolher entre dois males, o menor”. Dentre as fontes de Spinoza, neste passo, uma é certa: Maquiavel, na Primeira Década de Tito Livio, livro 3, capítulo 42: “não existe vergonha em violar as promessas arrancadas pela força. Serão rompidas sem desonra as convenções pelas quais se empenhou a nação todas as vezes que a força que a obrigou a contratá-la não existe mais”.

No Artigo 5 do capitulo 1 do Tratado Politico, pode-se ler que as relações entre os homens ou a unidade em forma social trazem o selo de origem das paixões. A piedade, ambição de glória, ambição de dominação, inveja. “Só pelo fato de sua constituição, eles lamentam os seus semelhantes infelizes, e os invejam quando felizes, inclinando-se à vingança e pouco à misericórdia, cada um querendo fazer com que os demais adotem a sua regra pessoal de vida, aprovar o que aprova, recusar o que rejeita. Tais homens querem, assim, ser os primeiros, entram em rivalidade, e tentam, na medida de seu poder, esmagar uns aos outros. O vencedor, após a luta, se gloria mais de ter causado prejuízo ao outro, do que ter ganho algo para si. Sem dúvida, assim agindo, todos permanecem convictos de que a religião lhes ensina algo diferente. Ela ensina a amar seu próximo como a si mesmo, isto é, se fazer tão ardente campeão do direito do outro quanto do seu. Mas esta convicção, como vimos, não tem efeito sobre os sentimentos. No máximo, ela influi na hora da morte, quando a doença triunfou sobre os sentimentos e o ser humano jaz inerme, ou nas igrejas, onde os homens não têm relações entre si. Mas ela não prevalece no tribunal nem nas casas dos poderosos, enquanto a sua necessidade seria certamente sentida. É verdade que a razão é capaz de combater sentimentos e moderá-los consideravelmente. Entretanto, a via indicada pela razão nos pareceu muito árdua. Não iremos, pois, acariciar a ilusão de que seria possível conduzir a multidão, nem os homens públicos, a viver segundo a disciplina exclusiva da razão. Neste caso, estaríamos sonhando com uma poética da idade do ouro, uma história fabulosa”. As paixões que definem a política têm origem comum naquilo que Alexandre Matheron chama, seguindo o próprio Spinoza, “imitação afetiva”, deduzida na Ética, 3, 27. O item imediatamente anterior à proposição 27, refere-se ao orgulho, alegria que nasce do fato de que um indivíduo se estime de modo mais do que o justo, ele se considera melhor do que é. Aliás, o orgulho é definido como delírio, porque nele o homem sonha com os olhos abertos. Nele o indivíduo julga poder tudo o que abarca a sua imaginação. A partir daí, Spinoza diz que “da imaginação que uma coisa semelhante a nós (e que antes nos era indiferente) prova por nós algum afeto, também nós experimentamos, por isto mesmo, um afeto semelhante.” Para demonstrar essa tese, Spinoza indica que as imagens são afeccões do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos externos como se fossem presentes a nós. Estas ideias envolvem a natureza de nosso corpo e ao mesmo tempo (simul) a natureza presente de um corpo exterior. Se a natureza de um corpo exterior é semelhante à de nosso corpo, a idéia do corpo exterior que imaginamos envolverá uma afecção de nosso corpo semelhante à do corpo exterior. Por conseguinte, se imaginamos alguém semelhante a nós afetado de alguma afecção, esta imaginação envolverá uma afecção semelhante de nosso corpo. Pelo próprio fato de imaginarmos que alguma coisa semelhante a nós experimenta alguma afecção, experimentamos uma afecção semelhante à sua. Se, ao contrário, odiássemos uma coisa semelhante a nós, experimentaríamos na medida de nosso ódio uma afecção contrária e não semelhante à sua. E no escólio: “Esta imitação das afecções, quando ela ocorre diante da tristeza, chama-se comiseração, mas se é à respeito de um desejo, ela torna-se emulação, que nada mais é que o desejo de uma coisa engendrado em nós pelo motivo de que imaginamos que outros seres semelhantes a nós também a desejam”.

Indica um comentador italiano de Spinoza (Tiziano Salari “Spinoza e il mimetismo del desiderio”) ( ) a grande superioridade da intuição spinozana sobre as Paixões da alma cartesianas, a de sujeitar as paixões, que eram discutidas como separadas uma da outra, a um principio unificador: o desejo (cupiditas), como “a própria essência do homem, enquanto ela é concebida como determinada a fazer algo por um afeto qualquer, dado nela”. Desejo é o apetite com consciência de si mesmo, é o fazer coisas que sirvam para a conservação de si. (Cf. Ética, 3, Definição das Afecções). O mimetismo do desejo funda a comunidade política e nesta fundação o medo adquire relevo. Segundo Lucia Nocentini (“I fondamenti naturali della civitas. La concezione spinoziana dello Stato, individuo di individui”), a união estatal forma uma individualidade, só distinta das individualidades que a compõem em quantidade e força. O indivíduo Estado (imperium) e o complexo da individualidade político social (Civitas) se cortam, segundo um duplo relacionamento. Ao mesmo tempo que as subjetividades concretas determinam a existência do Estado e o setor governante e institucional, segundo uma linha ascendente, de modo paralelo os institutos descem até às subjetividades concretas segundo uma comunicação biunivoca de cujo equilíbrio dependem a sobrevivência e a estabilidade de todo o corpo social. ( ) Há uma relação de reciprocidade : “Para conservar a si mesmos os individuos precisam uns dos outros; devem pois ser conduzidos, através da busca de seus próprios interesses, a desejar a conservação do Estado” (Tratado Político, VII, 4, 22; VIII, 24, 31; X, 6). Sua constituição natural, diz Spinoza, conduz os homens a procurar apaixonadamente o interesse próprio e a julgar a justiça das leis com parcialidade, segundo elas contribuam ou não para preservar o crescimento de seus bens. Sabe-se também que eles só tornam-se campeões da causa alheia na medida em que acreditam, por este meio, defender seus próprios negócios. E “reciprocamente o Estado, para se conservar, deve tender a conservar os individuos, garantindo-lhes a segurança que é a condição fundamental da obediência civica: em um Estado dominado pela anarquia, ou sujeito à potência dos seus inimigos, desaparece a lealdade. (Tratado Político., X, 9-10; e todo o cap. VI)” . Em verdade, se um corpo político pode assegurar sua eterna conservação, diz Spinoza, quando analisa a aristocracia, será necessariamente aquele cuja legislação, uma vez estabelecida sob forma conveniente, permanece protegida contra todo atentado. Pois a legislação é a alma do Estado. Se ela dura, o Estado de seu lado preserva-se. Ora, qual deve ser a legislação para resistir a todas as mudanças? Ela deve se apoiar ao mesmo tempo sobre a razão e sobre a disposição apaixonada própria aos humanos. Se ela só tivesse o sustento da razão, seria fraca e sucumbiria facilmente. Jogo das paixões. Um sentimento é vencido por outro. “Não se vê, com frequência, o medo da morte ser vencido pela violência de um desejo aos bens externos? Ou então alegar-se-ia, os que fogem com medo do inimigo não seriam mais detidos por nenhum outro medo? Eles se precipitam nos rios ou penetram num braseiro, para evitar o ferro do inimigo. Uma nação pode ser bem organizada e suas leis excelentes, tanto quanto se quiser. Entretanto, assim como demonstra a história, os habitantes são por vezes tomados (em situações críticas para o Estado de um terror pânico (terrore quodam panico) que nada mais enxerga senão o medo (metus) que se experimenta no presente. Sem nenhuma consideração pelo futuro, nem pela simples legalidade, todos os olhos se dirigem para um homem de guerra famoso. Ele é desligado da obediência comum às leis, decisão desastrosa lhe prolonga o seu comando ao exército e a salvação coletiva é totalmente posta em suas mãos. A resposta a toda esta objeção do pânico, é fácil. Numa coletividade pública bem organizada, um terror daquele gênero não teria nascido sem motivo verdadeiro. De modo que o terror e a confusão, se estalam numa tal república, só decorreriam de uma causa, imprevisível mesmo para a maior sabedoria”.

O corpo político, como os demais corpos vivos é sujeito a coisas externas e à instabilidade interna. ( ) Estas ações podem aumentar o seu conatus ou dominuí-lo. Este é o tema do capítulo 10 do Tratado Político. “Desde que os homens…se fazem dirigir pelas paixões mais do que pela razão, uma multidão de pessoas é conduzida, por natureza, a unir-se com numa só mente, não dirigida pela razão, mas por algum afeto comum, ou seja (como dissemos no artigo 9 do capitulo 3), por uma esperança comum, ou medo ou desejo, de vingar um dano. Porque de fato o medo da solidão é ínsita em todos os homens, do momento em que nenhum deles, por si só, tem força para defender-se e dar-se o necessário para viver, assim, os homens tendem, por natureza, ao estado civil, e não ocorre nunca que eles o destruam totalmente” (Tratado Político., VI, 1).

Quais paixões entram em jogo no espaço político quando este último se instaura? A piedade, a ambição da glória, a ambição do domínio e a inveja. Todas possuem uma origem comum : a imitação afetiva, cuja dedução encontra-se no livro 3 da Ética. ( ). Quando imaginamos —a imaginação, como vimos, possui estatuto privilegiado na política de Spinoza ( )— que um ser igual a nós experimenta certo sentimento, também o experimentamos. Se vemos alguem sofrer, partilhamos a sua dor e queremos aliviá-lo. Se o fazemos com sucesso, ele se alegra e nos alegramos com ele, ou melhor, nos alegramos com a imagem que está em nossa mente de que somos a causa de sua alegria. Tal sentimento é agradável e desejamos repetí-lo, o que nos joga na tentativa de sempre ajudar os outros. Aqui temos a base da busca incessante da glória, uma ambição primitiva. Mas se queremos ajudar, também queremos atingir nossa própria felicidade. E isto pode ser algo contraditório. Entre os desejos dos demais e os nossos, imaginamos que os últimos são eminentes. Assim, de pessoas que fazem o bem aos outros desejamos, como segundo passo, convertê-los aos nossos desejos e tentamos obrigá-los a gostar do que gostamos e odiar o que odiamos. A ambição de glória se transmuta em ambição de mando, com a sua corrente de males como a intolerância, o pior deles na vida em comum. Se não conseguimos dobrar o desejo alheio em proveito do nosso, passamos a odiar quem assim resiste a nós. Se conseguimos vencê-lo, caso ele se aproprie de uma coisa que prezamos e se alegre com isso, desejamos a sua posse para nós mesmos e dele retirar o gozo. Estamos jogados em plena inveja, a qual se manifesta sobretudo nas matérias econômicas. Quando conseguimos privar o indivíduo dos bens que invejamos ele se entristece, temos dele piedade e o círculo das paixões recomeça, definindo cada vez mais ódio, inveja, desejos em relações complexas que se tornam como que elementos a priori de uma vida comum.

A quantidade de paixões em jogo na política obscurece alguns fatos essenciais para a manutenção da república, e nela a racionalidade ocupa lugar mínimo. Se a corrente apaixonada conduz ao inferno da intolerância, inveja, mandonismo, o único passo eficaz para atenuar o círculo enunciado acima e que permite entender a instauração pública também encontra-se na paixão. Os indivíduos concordam em viver na comunidade porque todos têm medo. Este ponto é comum em Hobbes e Spinoza. ( ) O medo impulsiona, no plano da imitação afetiva, as pessoas a se indignarem ao perceber que alguém prejudica um ser que é seu igual. Sentimos indignação por mimesis dos sentimentos da vítima, como vimos acima. Se, no estado de natureza um homem sente fome, um ou vários, por piedade ou ambição de glória o ajudam. Se o auxilio é eficaz, a piedade ou ambição de glória se transformam em dominação e inveja. Define-se melhor a agressividade. E os que enxergam esta agressividade se indignam e começa o ciclo das indignações que movem os indivíduos. Nele, ou alguém é visto como vítima da agressão ou agressor que merece indignação. Neste circuito violento cada um teme o outro e quer obter ajuda de todos os demais. O limite do circulo encontra-se na esperança de todos no auxilio do coletivo inteiro contra seu direto agressor ou suposto inimigo. Assim, todos imaginam que instaurar uma potência coletiva possibilita o seu melhor socorro. Note-se que a igualdade é um pressuposto da instauração republicana, segundo Spinoza. Como afirma Matheron, no texto que sigo ao pé da letra, “a cada vez que dois indivíduos entrarão em conflito, cada um deles clamará pela ajuda de todos os demais, e cada um dos outros, respondendo ao chamado e imitando os sentimentos de alguns dos adversários que será o mais semelhante a ele (Matheron sublinha), se indignará e lutará contra o que lhe parecerá menos: contra aquele cujos valores serão mais divergentes dos seus ou que possuirá mais coisas dos ques possuidas por ele. O adversário que mais se afastar da norma majoritária (o que menos se parecer aos outros) será pois esmagado e dissuadido de recomeçar”. ( ) Esse é o primeiro passo para a instauração da república. A igualdade define a base do Estado. Mas tal realidade apresenta problemas, todos vinculados às paixões, de árdua resolução. A primeira aporia reside no mando. O coletivo é força única, superior aos indivíduos. Quem dirige aquela força? Muitos desejam comandar e poucos obedecer. Com a força coletiva, a ambição do mando se expande e com ela a inveja do poder usufruido pelos demais. Neste passo, não se trata apenas de impor aos outros os desejos e opiniões próprios ou de invejar seus bens materiais. Agora a paixão se complexifica, pois além dos desejos primordiais, ela é carregada de aspectos políticos. Como resolver as paixões contraditórias que se tornaram assim saturadas de sempre novos elementos ? A solução torna-se ainda mais difícil porque não se trata apenas, na comunidade, de saber quem manda, mas o que ele manda. Torna-se preciso saber o que é o bem e o mal para a república. Assim, aparecem as lutas sobre as opiniões e para impôr de modo estável, ao todo idéias éticas, um sistema comum de valores. Como neste momento primitivo da república todos são dominados pela imaginação e não desenvolveram a racionalidade conceitual, todos pensam segundo os padrões imaginativos, todos são supersticiosos. Trata-se de escolher dentre as superstições particulares ou grupais a mais forte, a que será institucionalizada pelo coletivo em forma de culto e noções religiosas autorizadas. Mas não ficamos apenas no plano da imaginação religiosa. O mais árduo é encaminhar a questão da propriedade, pois uma das fontes dos conflitos reside na inveja econômica. Os homens disputam as mesmas coisas quando elas não podem ser possuidas por um deles apenas (a questão da terra é a mais grave). A república só permanece se o soberano define com precisão quem tem direito a que, ou o que pertence a cada um e se ele impõe um regime da propriedade.

Todos os problemas mencionados acima, pensa Spinoza, são resolvidos sempre de modo precário. O filósofo, que não pensa exibir um modelo ideal do Estado, indica alguns princípios de prudência política para garantir a estabilidade republicana. O primeiro princípio prudencial, do qual já falamos, diz que os governantes devem ter consciência de que os homens, quando entram no plano político, não renunciam aos seus direitos naturais (como vimos na carta de Spinoza a Jarig Jelles) e que existem limites para o seu mando. Como só entram no campo da política movidos pelas paixões e não por um cálculo racional (ao contrário do que expõe Hobbes) os indivíduos só obedecem ou desobedecem se forem incentivados pelo medo de castigos ou esperança de recompensas. Mas tanto o medo quanto a esperança devem ser relativos a algo que esteja ao seu alcance. Não é possível obrigar os dirigidos a voar (na época isto era uma ordem impossivel de ser cumprida) ou a acreditar naquilos que lhes parece absurdo ou a não querer o que amam ou amar quem lhes faz mal e odiar os quem lhes causa o bem. Resumo de Matheron: “é impossível ir contra a natureza humana e fazer com que os homens deixem de serem homens”. Se os governantes esquecem essa regra prudencial e exigem o impossível dos dirigidos, eles causam medo neles. Mas o medo traz a tristeza e esta produz ódio pela pessoa que tememos. Se os dirigentes não assumem a prudência máxima na repressão (sobretudo neste caso, em que ela é desprovida de razões) o medo se transforma em ódio e indignação contra eles. Ou seja: o mecanismo que serviu para edificar a república serve também para dissolvê-la. Quando os dirigidos não percebem nenhuma segurança na política e constatam as injustiças mútuas impunes e as injustiças dos dirigentes também impunes, sendo os dirigentes arrogantes e orgulhosos, eles não aceitam mais obedecer e sua indignação está pronta para se transformar em revolta que pode destituir não só os dirigentes mais dissolver o Estado.

Spinoza analisa as formas de regime que poderiam impedir o retorno ao estado de natureza como resultado da arrogância ou imprudência dos governantes. No Tratado Político, o filósofo discute a monarquia, a aristocracia, a democracia mostrando as suas forças e fraquezas. Para que o regime político seja eficaz e se mantenha (o ensino vem de Maquiavel), é preciso que ele consiga se auto-regular, remediando os erros dos governantes e do povo. São desse tipo as medidas prudenciais que podem servir para a diminuição dos conflitos. No setor econômico Spinoza propõe a nacionalização do solo. “Nacionalização não significa coletivização. O que Spinoza diz é que a terra pertencerá ao Estado e que este a alugará aos particulares, os quais a explorarão individualmente e venderão os produtos no mercado. Eles serão locatários, não proprietários. A diferença é enorme. Assim será evitada a imobilização dos capitais na compra de terras” (Matheron). Deste modo, “o acesso ao solo será facilitado ao máximo. Mas será facilitado sob uma tal forma que a terra, deixando de ser objeto de um investimento financeiro, deixará ao mesmo tempo de ser objeto de um investimento afetivo” (idem). Note-se que a marcha do pensamento político de Spinoza vai da igualdade natural à igualdade jurídica com medidas de prudência que permitam sempre repor a igualdade. As medidas sobre a apropriação do solo marcam este ponto. A igualdade não é atribuida ao Estado e ao soberano de modo absoluto e total. “A oposição do ´direito de natureza´ (jus naturale) e da ´lei da natureza´ (lex naturalis), que constitui um dos núcleos da filosofia política hobbesiana (Leviathan, Cap. 14) é anulada por Spinoza. Neste, vida e razão, longe de se oporem, mutuamente se enriquecem”. ( )

Como vimos, o perigo de dissolução do Estado é mais interno do que externo, devendo-se sobretudo à imprudente arrogância dos dirigentes que rompem a igualdade civil e política em seu proveito. Como, para Spinoza, o princípio e fundamento da virtude e da vida é a força possuida por todos os indivíduos de conservar a si mesmos e se expandir, o regime que mais garante esta segurança e expansão é a democracia. “O Estado democrático é a resposta racional às necessidades naturais. Na sua constituição são determinantes quer a razão quer a natureza. Mas só com a razão se constrói uma verdadeira solidariedade, só ela estabiliza. Por ela percebemos que os diferentes poderes nada mais são do que manifestações parcelares de uma potência comum”. ( ) Conditio sine qua non dessa forma de Estado é a idéia spinozana do divino e da natureza. Deus, ou natureza, é a substância única, com infinitos atributos, dentre os quais nós conhecemos a extensão e o pensamento (que nos constituem). Os atributos combinam-se de infinitos modos, o que é a nossa efetividade, pois somos indivíduos que existem naqueles atributos. Deus é imanente em toda a natureza e em nós. Não existe entre nós e Deus nenhuma transcendência e todos estamos —se fosse possível usar esta imagem— situados numa igual distância em relação à natureza comum e à divindade. A democracia é o regime mais natural porque não existe, nos vínculos entre a natureza e nós nenhuma hierarquia metafísica, ao modo grego, cristão ou judaico. Essa idéia da igualdade causou um abalo que persiste até hoje nas teorias políticas do Ocidente. Não por acaso o pensamento spinozano jaz sob as teses democraticas das Luzes. ( )

Ao contrário do pensamento que afirma a igualdade radical dos entes humanos, na perspectiva spinozana, as doutrinas cristãs ergueram um sistema hierárquico que postula a desigualdade como fundamento e alvo do político.Um dos maiores pilares do pensamento católico é Tomás de Aquino. Nele, a noção do universo como imensa hierarquia verticalizada que desce do Senhor, atravessa os arcanjos e anjos, chega aos sacerdotes e passa aos leigos poderosos para atingir os ínfimos da natura, define a doutrina cósmica e cívica, espinha dorsal do catolicismo religioso e político. Essa doutrina tem origem neo-platônica, em Dionisio o pseudo-areopagita. Deus encontra- se além de todos os nossos sentidos e apenas pelos intermediários entre Ele e nós recebemos as suas bençãos. A hierarquia encontra-se na mais funda determinação do ser. É o que diz o teólogo e filósofo Paul Tillich, ao citar em Dionísio o “sistema sagrado onde os graus referem-se ao saber e à eficácia”. E arremata o pensador : “Isto caracteriza todo o pensamento católico em grande extensão; ele não é apenas ontológico, mas também epistemológico; existem graus não apenas no ser, mas também no conhecimento”. ( ) Há, neste sentido, uma via para cima e uma via para baixo da escala e cada ente encontra-se num lugar certo e determinado desde sempre. Deus está além de todos os nomes que a teologia lhe atribui, além do espírito, além do Bem, numa “indizível obscuridade”. Dada esta transcendência absoluta, a hierarquia celeste é a emanação de sua luz. Quanto mais próxima d´Ele, mais a entidade se ilumina, quanto mais distante, mais escura. Os homens não podem perceber a luz divina, porque ela é tão intensa que os cega. Assim, os intermediários angélicos são o caminho para o fulgor Eterno. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e de pensamento social este imaginário metafísico.( ) É impossível quebrar a escala hierárquica dos anjos aos homens. Trata-se de responder à pergunta central de todo pensamento político sobre a teodicéia: “Porque, se Deus fez todas as coisas, ele não as fez todas iguais?”. Agostinho apresentou a sua fórmula: non essent omnia, si essent aequalia (se todas as coisas fossem iguais, nada seriam). Cada coisa ocupa um lugar na escada dos seres, da mais humilde à excelsa. ( ) A queda do arcanjo luminoso apenas destrói na aparência, jamais na essência, a ordem universal. Lúcifer engana-se e procura enganar os homens sobre o poder divino. Há um heliotropismo essencial no pensamento católico onde a hierarquia insere-se com perfeição. Embora cada ser tenha o seu lugar natural, os homens possuem o livre arbítrio (algo que trouxe lutas penosas para a Igreja, desde Agostinho até Jansenius e Pascal). Assim, retoma-se na Igreja a tese de Platão de que “o divino não é culpado” pelos nossos males. O mal não pode ser atribuído ao Absoluto. “Deus”, afirma Tomás de Aquino, “não quer que se faça o mal, nem quer que não se faça; o que Ele quer é permitir que se faça, e isto é bom” (Summa Theologia, 1 q. 19 a 9). O espelho terrestre foi embaçado pelo hálito pestilento do mal, mas pode ser limpo e resplandecer novamente. A criaturas atingem a perfeição no campo iluminado pelo brilho divino. No capítulo sobre a luz e a visão dos homens, Aquino refuta o simile entre os últimos e o morcego “que não pode ver o mais visível, o Sol, por causa precisamente do excesso de luz”.Os homens não nasceram para a lamentável escuridão e seu alvo é a perfeita alegria da vista: “como a suprema felicidade do homem consiste na mais elevada de suas operações, a do intelecto, se este nunca pudesse ver a essência divina, segue-se que o homem nunca alcançaria a felicidade, ou que esta é algo distinto de Deus, o que se opõe à fé (…) uma coisa é tanto mais perfeita, quanto mais se une ao princípio”. Assim, “os bem aventurados vêem a essência divina” (Summa 1 q. 12 a 1). Mas como pode o homem unir-se ao divino? Os anjos e a sua hierarquia, espelhada na hierarquia eclesiástica, dão a primeira resposta. A segunda (a que trouxe maiores violências no debate cristão, sobretudo entre os jansenistas e calvinistas) é explicitada por Tomás de Aquino: “é indispensável que, em virtude da Graça, seja-lhe concedido o poder intelectual e este acréscimo de poder é o que chamamos iluminação do intelecto, bem como chamamos luz ao objeto inteligível. Esta é a luz de que fala o Apocalipse referindo-se à sociedade dos bem aventurados que vêem a Deus, que a claridade de Deus a ilumina e graças a esta luz se fazem deiformes, isto é, semelhantes a Deus (idest Deo similes)” (Summa, 1 q. 12 a 5). Os entes humanos, pela Graça, tornam-se iguais a Deus na contemplação beatífica, na transcendência eterna.( ) A igualdade entre eles não é possível, visto que em cada um dos indivíduos humanos há uma relação especial com Deus mediata pela cooperação de cada um deles com a Graça divina, o que indica uma proximidade maior ou menor entre a consciência e Deus.

Para que possa existir visão divina, a luz deve ser percebida segundo graus, não de imediato. A doutrina sobre o poder político exige a tese dos graus de visibilidade contemplativa, o que prepara o óbice maior que se instala entre o pensamento católico e as modernas idéias democráticas sobre a igualdade, onde o divino transcendente é posto fora do trato político ou, como dizia Laplace a Napoleão Bonaparte quando este ao folhear o texto sobre a Mecânica Celeste, perguntou ao cientista sobre Deus: “Je n'ai pas eu besoin de cette hypothèse”. O tema da secularização cultural e política produziu oceanos de livros e não pode ser discutido aqui. Mas certamente é preciso analisar, quando falamos da igualdade, a quebra com os pressupostos religiosos aristocráticos e a nova ordem democrática que se instaura. Um dos comentários mais belos sobre o assunto foi realizado por Erich Auerbach sobre a Divina Comédia. A unidade daquele poema que sintetiza o pensamento ético cristão, “descansa sobre o tema geral, sobre o status animarum post mortem; este deve ser, como sentença divina final, uma unidade perfeitamente ordenada, tanto como sistema teórico, quanto como realidade prática e, portanto, também como criação estética; deve representar a unidade da ordem divina de uma forma ainda mais pura e atual do que o mundo terreno, ou algo que nele acontece, pois que o Além, ainda que inacabado até o Juízo Final, não apresenta, na medida em que o faz o mundo terreno, desenvolvimento, potencialidade e provisoriedade, mas é o ato completo do plano divino. A ordem unitária do Além, assim como Dant no-la apresenta, é tangível da maneira mais imediata como sistema moral, na repartição das almas nos três reinos e suas subdivisões: o sistema segue em tudo a ética aristotélico-tomista”.( )

Spinoza e a Razão de Estado

Visto que o mundo europeu se expande no século 17, e que as fronteiras nacionais são melhor definidas pelos Estados, o problema da igualdade entre os cidadãos torna-se agudo. A hierarquia, a que define precedências no feudalismo e nos primeiros inícios do Estado, tomba a cada avanço do poder real. O poder assume uma nova ordem de referências e novos privilégios, todos referidos ao comando do Rei. Dos impostos à justiça, desta às normas legais, incluindo-se o poder militar e de polícia concentram-se no ministério que responde diretamente ao soberano. Embora renitentes, as formas aristocráticas cedem lugar à ascensão burguesa e inicia-se uma espécie de condominio do Estado pelos vários segmentos sócio-econômicos e políticos. Se o poder do rei é sinônimo de universalidade que abarca todos os particulares, coloca-se o problema da relativa distância de cada indivíduo ou setor em relação ao núcleo do poder. Desloca-se a hierarquia que se fundamenta no sagrado, o qual por sua vez sancionou, autorizou e exigiu as três ordens feudais (clero, nobreza, os comuns). Os nexos entre dirigidos e governantes se ordenam cada vez mais horizontalmente : quanto mais próximo da corte, mais influência, quanto mais distante, menor capacidade de influir. A hierarquia cede, lenta e seguramente, à distinção entre capital e provincia. Na primeira, instala-se a cabeça do Estado e o aparato diplomático, administrativo, militar, policial e intelectual (a máquina de propaganda do monarca). ( ) Na segunda, fica a resistência à máquina do poder.

Tomemos um campeão do conservadorismo, Alexis de Tocqueville. Ele analisa o crivo da igualização crescente na França e na Europa como uma das marcas essenciais das Revoluções Francêsa e Americana. No Ancien Régime o Estado existe em parâmetros diferentes dos encontráveis na Idade Média. A realeza possui “outras prerrogativas, tem um outro lugar (…) é a administração do Estado que se amplia para todas as partes sobre os restos dos poderes locais; a hierarquia dos funcionários substitui sempre mais o governo dos nobres. Todos estes novos poderes agem segundo procedimentos e máximas que os homens da idade média não conheceram ou reprovaram, e que se relacionam a um estado de sociedade do qual não tinham sequer a idéia”. ( ) Surge “a igualdade diante da lei, a igualdade dos cargos, a liberdade de imprensa, a publicidade dos debates, princípios novos ignorados pela sociedade medieval.” Trata-se de uma “nova ordem social e política, mais uniforme e simples, que tinha por base a igualdade de condições”. ( )

O poder real, para estabelecer seu poderio, enfrenta o poder dos municípios. Em quase toda a Europa, mas particularmente na França, a liberdade municipal, diz Toquecville, sobreviveu ao feudalismo. Em nações como a alemã e italiana, com caraceterísticas diversas, resistiram ao poder central várias cidades que eram pequenos Estados e cuja potência era maior ou menor conforme o jogo da guerra, da diplomacia, etc. Florença, cidade de Maquiavel, era uma cidade-Estado. O poder das urbes foi atenuado no feudalismo, sendo que alguns centros quase foram dissolvidos. Uma característica do Estado renascente é que ele encontra nas capitais e nas cidades maiores e mais ricas, seu ponto de apoio na reconquista de prerrogativas antes destinadas ao clero e aos nobres.

Tocqueville mostra o quanto foi importante para o centro do Estado sufocar a potência das cidades para impor a sua burocracia e a igualdade de todos diante do Rei. Mesmo no feudalismo, muitas cidades estratégicas mantiveram a prerrogativa de governar a si mesmas. Nelas, os magistrados eram eleitos, sendo responsáveis diante da população. A vida urbana é pública e ativa, as cidades se orgulham de seus direitos e são muito ciosas em relação a eles. ( ) As eleições foram abolidas por volta de 1692. As funções municipais se transformaram nos offices, cargos vendidos pelo rei, em algumas cidades, a alguns habitantes para que governassem perpétuamente. Com o fim da liberdade, veio o sacrifício material. Afirma o autor que a transformação dos cargos, de eleitos para vendidos pelo rei, a primeira instituição a ser prejudicada, em detrimento dos cidadãos, foi a justiça. “A boa justiça”, diz Tocqueville, tem como condição “a completa independência do juiz”. Quando ela foi independente, foi possível encontrar responsabildiade, subordinação e zelo pela coisa pública. Os governos do monarca sabiam o quanto lhes seria prejudicial aplicar à sua administração a receita que impunham às cidades: seus cargos de intendentes e subdelegados nunca foram postos como ofícios venais.

Assim, “Luis XI restringiu as liberdades municipais porque seu caráter democrático lhe dava medo; Luis XIV as destruiu sem as temer. (…) Na realidade, eles queriam menos abolir tais liberdades, do que traficá-las e as aboliram foi, por assim dizer, sem pensar, por puro expediente financeiro”. O direito de eleger seus magistrados é vendido e arrancado das cidades pelos reis. Quando elas se acostumam às liberdades, o rei as retira, para revendê-las. E o rei confessa o fundamento fiscal desse comércio sem nenhum rubor. Diz o Edito de 1722 : “as necessidades de nossas finanças nos obrigam a buscar os meios mais seguros de aliviá-las”. ( ) Tcoqueville cita um Intendente que envia carta ao Controlador Geral em 1764: “Estou espantado com a enormidade das finanças pagas em todos os tempos para resgatar os ofícios municipais. O montante desta finança, empregada em obras úteis, seria proveitoso para a cidade que, pelo contrário, sentiu apenas o peso da autoridade e dos privilégios desses ofícios”. E finaliza Tocqueville: “Esta espécie de mercadoria se avilta cada vez mais, à medida que a autoridade municipal se subordina mais ao poder central”.

Enquanto ainda no século XV a Assembléia geral do municipio era composta por todo o povo, no fim do século XVII esta prática era rarefeita. No século XVIII o governo e as decisões estavam nas mãos dos notáveis, o povo se desinteressa pelos negócios municipais e “vive como estrangeiro no interior de seus próprios muros”. No século XVIII o governo municipal degenera em pequena oligarquia, “algumas familias conduziam neles os negócios, tendo em vista fins particulares, longe do olhar público e sem serem responsáveis diante dele: trata-se de uma doença espraiada por toda a França”. As cidades perdem a possibilidade de “impor concessões, decidir contributos, hipotecar,vender, disputar judicialmente, controlar seus bens, os administrar, empregar o excedentes de sua receita, sem ordens do conselho sob relatório do intendente. Todos os trabalhos são executados sob supervisão do conselho e aprovados por sua ordem”. Deste modo, os oficiais dos municipios, com os cargos comprados “sentem convenientemente o seu nada” diante do poder do Rei. “O último dos agentes reais, o sub-delegado os fazia obedecer aos mínimos caprichos. Com frequência, ele os multava; os aprisionava; pois as garantias que, em outros lugares, defendiam ainda os cidadãos contra o arbítrio, não mais existiam alí”.

Paro por aqui e assinalo que os capítulos seguintes do livro são importantes sobretudo para nós, os brasileiros, pois ele trata da independência do poder judiciário. Mas fiquemos no problema da igualdade. As urbes medievais eram assinaladas pela sua desigual força, poder, prerrogativas. O poder Estatal tentou igualizá-las, tornando-as centros desprovidos de força, venais, em favor do mando concentrado na capital. Os cidadãos que tinha direitos, desiguais mais direitos, passam a serem nutridos pelo castigo e pelas multas, além das taxas contra as quais não era possível recorrer. A burocracia real sufoca a independência dos municípios.

Passemos agora ao problema do mal no mundo humano. Os comentadores do século 20, entre eles Leo Strauss, Ernst Cassirer e outros, criticam Maquiavel por ter este tratado a ética e a política, com o mal no seu interior, “para usar as palavras de Spinoza, como se fossem linhas , planos, ou sólidos. Ele não ataca os principios da moralidade; mas ele não pode encontrar uso para eles na vida política”. ( ) No caso de Spinoza, o problema do mal pode ser notado na Ética e, quando se trata do mal político, na Quarta Parte. ( ) Interessa sublinhar que neste ponto da exposição, Spinoza trata ao mesmo tempo do antigo problema trazido pela noção de paradigma moral e político, ligados ambos à noção do que é perfeito e imperfeito, ruim e bom, certo e incorreto.


O que é a sociedade senão o vínculo de indivíduos humanos ? E o que são estes últimos senão um feixe complexo de paixões as mais diversas e conflitantes? Ao encarar tal jogo inextricável dos apetites humanos, filósofos como Platão empreendem estabelecer um governo das afecções pelo pensamento racional. Sigo agora as sugestões já antigas de Pierre Louis, num estudo precioso sobre as metáforas de Platão. ( ) Segundo as Leis, a alma é anterior ao corpo (Leis, 892a, 896 b e c), deste modo ela naturalmente ela tem uma autoridade frente a ele, autoridade similar à do senhor diante do escravo. “Deus fez mais antiga a alma do que o corpo tanto pela idade quanto pela virtude de comandar como senhora, e o corpo para obedecer” (Timeu, 34 c). Interessa notar que o mando indicado no Timeu é de ordem despótica. O corpo é submetido à servidão (já o próprio título de Spinoza na Quarta Parte da Ética remete a este plano) e à obediência (Fedon, 80 a). Os prazeres do corpo são próprios ao que é servil (Fedro, 258 e). Isto estabelece uma hierarquia entre corpo e alma. E tal hierarquia não sendo respeitada, ocorre uma guerra permanente das afecções contra a alma despótica. A maior parte dos indivíduos são escravos do corpo (ou seja, são escravos de um escravo) (Fédon, 66 c d). Nesta passagem, afirma-se explícitamente que “as guerras, as dissenções, as batalhas, são trazidas pelo corpo e pelos seus desejos; pois é devido à posse das riquezas que se produzem todas as guerras, e, se nós somos obrigados a possuir riquezas, isto é por causa do corpo, somos como escravos prestes a serví-lo”. ( ) O corpo é um peso que torna lenta a alma (Fedon, 81 c; Fedro 248 c, 256 b), como se fossem chumbo nela preso (República, 519 b).

Na dialética do senhor e do escravo, a alma está sujeita ao corpo por vínculos que a prendem /(Fedon, 64 e, entre vários lugares). No Fedon, trata-se de cadeias de um prisioneiro enquanto no Timeu (73 d) são amarras de um navio. No Fédon, também, são pregos que fixam-na ou ainda no Fedro (250 c) são liames que ligam o corpo e a alma como a ostra é presa à sua crosta. Em especial, e isto possue relevância para que se pense a diferença entre platonismo e spinozismo, o corpo pode ser para a alma um túmulo (Górgias 493 a). Outras imagens menos sombrias são usadas por Platão, como a do corpo enquanto terreno no qual a alma semeia e se enraíza. O corpo pode ser comparado a um templo onde habita a alma, um ser divino (Leis, 869 b).

A psicologia que reside nessas imagens indica o sentido das metáforas platônicas sobre os embates ocorridos no ser humano, quando se trata das paixões. Platão distingue na parte irracional (alogiston) da alma dois instintos, a colera ou instinto de defesa (timoeidés) e o desejo (epitimétikon). Ela é um monstro triplo (República 588 c), sendo que o elemento irascível é comparado a um leão. Ainda na República (411 b) o timós representa os “tendões” da alma. Certas práticas imoderadas da música, podem afrouxá-los ou endurecê-los. Na mesma passagem, o timós é um metal que a música pode fundir. Finalmente, o timós é um fogo que pode ser extinto. Uma alma corajosa entregue sem medida à música torna-se rápida para encolerecer e lenta para diminuir seu ardor. (República, 411 c).

Junto ao leão, o timós, que não raro torna-se aliado da razão (República 440 b) a parte apetitiva da alma é uma besta fera e selvagem (tériodés te kai agrion), um bicho que é preciso nutrir, mas deixar bem preso. Neste campo, o desejo é comparado por Platão à fome ou sede. A democracia, lugar dos desejos irrefreados, é similar na sua sede de liberdade aos homens atendidos por péssimos servidores de vinho, os seus dirigentes. Nela, os cidadãos se embriagam de liberdade. Finalmente o desejo é comparado à uma corrente que carrega os homens. “Quando os desejos seguem violentamente rumo a um único objeto, sabemos, suponho, que eles têm menor força para tudo o mai, como uma corrente desviada numa só direção” (República, 485 d).

Quando se trata da questão do Mal, Platão também personifica os defeitos humanos. Na República, os defeitos são hóspedes que se instalam na alma do tirano como num albergue (580 a), enquanto a injustiça é um hóspede indesejável (367 a). A injustiça, o desprezo das leis, a desmesura são personalizadas na República (424 d, 610 e). O próprio Mal é um ser vivo correndo atrás dos humanos, mais rápido do que a morte (Apologia de Sócrates, 39 b). O malvado é uma fera selvagem, o filósofo no meio da multidão ignorante do bem é similar a um homem acuado por bichos ferozes (República, 496 d). Trasímaco é apresentado assim, antes de se jogar na discussão sobre a justiça e o direito do mais forte (República, 336 b-e). Na mesma República (588 b-e) a imagem é aplicada ao malvado, no sentido do monstro triplo. Conservar a calma é permanecer sóbrio (Fedro, 230 e). Quem perde o controle está bêbado de amor (Fedro, 240 e), de prazer (Critias, 121 a), de medo (Leis, 639 a-b). A alma serena é como um mar calmo (Fedon, 84 a). Mas tal calma é adquirida numa guerra contra os vícios. A virtude é um combate contra as paixões e os prazeres (Laches, 191 d).

Tendo-se em vista essas imagens do mal, pode-se passar ao problema do Estado ( ). Este é apresentado como um organismo. Nas Leis, o Ateniense nota que um regime político, como um corpo, tem muitas ocasiões para se desagregar (945 c). O mundo político onde os cidadãos desrespeitam a justiça e a moral, é doente, e o malvado é uma peste (Protágoras, 322 d, República 552 c). A sociedade adoece quando mal governada, ou quando a discórdia a estraçalha. A grandeza de Atenas sob Péricles é descrita como um inchaço doentio (Górgias, 518 e 519 a, República, 372 a). Tal doença torna a sociedade fraca. Um máu governo é um corpo fraco, que o menor abalo externo basta para adoecer (República, 556 e). O legislador deve cuidar da saúde do corpo político, como um médico, para lhe dar ou conservar a saúde. Ou então, ele é o dirigente de um navio, um piloto, no meio das ondas causadas pelos outros Estados. Quando faltam os pilotos, os passageiros do Estado sentem a flutuação do mar e têm medo, insegurança. (Leis, 758 a).

Paremos essa resenha, baseada na exploração minuciosa de Pierre Louis, e retornemos ao texto spinozano. Embora Spinoza leve em conta os problemas apresentados por Platão (e pela ordem moral imperante no Ocidente), ele apresenta uma reversão perceptível de imediato no diagnóstico do Estado, do regime político, do mal e das afecções humanas. Sigamos a parte Quarta da Ética desde o começo.

Se Platão indica que a alma deve governar despóticamente sobre os desejos, sendo estes últimos servos dela. Quando indivíduos ou povos não dominam assim as suas paixões, eles se tornam escravos de escravos. Spinoza parece seguir o mesmo pensamento quando afirma ser a servidão humana a impotência para governar, ou moderar as afecções. Quando submetido às afecções, o homem não é sui iuris, não segue a sua própria lei (não é autônomo, diria um kantiano) mas obedece a Fortuna, cujo poder sobre ele é tal que o constrange a, mesmo vendo o melhor, seguir o pior.

Spinoza propõe-se, logo, explicar a causa desse estado em que o indivíduo, atônito, não consegue unir o que é melhor com a sua ação, mas obedece o pior mesmo ao ver o melhor. O “melhor” seria o que o tornaria sui iuris, o “pior” o que o joga na incerteza externa da Fortuna. Os leitores de Maquiavel percebem que os termos usados por Spinoza são extraídos da análise executada pelo Florentino sobre o poder, o problema da sua manutenção ou perda. Como analisar o mando político e o controle das paixões, sem discutir as teses tradicionais sobre a perfeição e a imperfeição do Estado e dos indivíduos, do bem e do mal que os ameaçam ou salvam ? Para entendermos todo esse movimento noético, recordemos o vínculo entre o mal e o poder, em Platão, como os apresentamos acima. É nuclear, para entendermos a política platônica a ser recusada por Spinoza, discutirmos a noção de paradigma.

"Paradigma" surge num campo da língua grega que se liga deiknumi, cujo sentido é "mostrar", "demonstrar", "indicar". Quando acrescido da partícula "para", significa "mostrar, fornecer um modelo". Termo importante na técnica dos oradores. ( ) A raiz deik-, por sua vez, refere-se ao ato de "mostrar mediante a palavra", mostrar "o que deve ser", donde a conseqüência de união com dike a lei, a regra. ( ) Uma interpretação do pensamento platônico, pelo menos em determinadas passagens, coloca o paradigma como ilustração de uma evidência sensível que remete para uma necessidade inteligível. ( )

A noção de paradigma cobre, na Antiguidade, os campos hoje distantes da ciência, da técnica, das artes. A filosofia deu-lhe vários estatutos, todos eles capitais para as atitudes éticas herdadas por nós. Na expressão grega, paradeigma tem a ressonância de modelo, exemplo, plano de arquiteto. Em Heródoto (5, 62), o termo é usado para indicar o esforço dos atenienses na construção do templo, em Delfos: "sendo muito ricos e, como seus pais, homens de reputação, eles trabalharam no templo para que ele tivesse uma forma mais bela do que a posta no paradigma". ( ) O contexto dessa passagem de Heródoto é de luta política contra o despotismo. Nela, o elemento político une-se à ética e à estética.

Em Platão, o termo refere-se, entre vários reflexos semânticos, ao modelo do pintor. Na República (500e), Sócrates discute com Adimantos sobre o homem ético e sábio, cujo pensamento está fixado nas coisas eternas e verdadeiras. Um tal homem não tem lazer para inspecionar as mesquinharias dos indivíduos comuns mas dirige seus olhos para o eterno, com sua ordem imutável. Quanto mais admira as coisas eternas, mais ele se produz à sua semelhança e assimila a si mesmo a elas. Após várias considerações sobre o povo, e seu modo inconstante de viver e opinar, Sócrates retoma a tese de que, à semelhança do homem reto, a cidade apenas será feliz "se as suas linhas forem traçadas por artistas em pintura, os quais usam o paradigma celeste". ( ) No mesmo diálogo, de 591c até 592b, lemos que o homem reto une à saúde física a justiça sapiente, operando de modo a estabelecer harmonia entre sua alma e seu corpo. Desse modo, ele será o músico verdadeiro, afastando a desmedida que impera na multidão, no relativo às riquezas. Ele enxerga a harmonia de sua alma, fuge do excesso ou da falta de bens. Tal homem fará, com prazer, em público ou em privado, tudo o que não dissolva o hábito (de hexis, donde "ética") de sua alma. Assim, ele não irá voluntariamente se misturar à política. Sua participação será dirigida para a cidade, não a de seu nascimento, mas a que é descrita na República, "cujo modelo (paradigma), talvez esteja no céu, para quem deseja contemplá-la e se tornar seu cidadão. Mas não faz diferença alguma se ela existe agora ou se ela está sempre se tornando. A política dessa cidade sempre será apenas dele, e de nenhum outro". E assim termina o livro 9 da mais eminente obra sobre ética e política de nossa cultura. No trecho, encontramos vinculados exemplos das artes, da música entre outras, com a busca da medida ética e cívica. Platão julga ser necessário forçar o homem reto e sábio a se comprometer com a vida política, mesmo que ele, voluntariamente, respire melhor na celeste harmonia.

No Timeu, o filósofo distingue, na teorização do universo, o que sempre é e não tem devir e o que está em devir e nunca é. O primeiro pode ser captado pelo pensamento com a ajuda da razão, pois é idêntico a si mesmo, enquanto o outro é conjecturável pela opinião com a ajuda da sensação desprovida de razão, pois é gerada e perece. Aliás, tudo o que nasce deve necessariamente nascer de uma causa, pois nada pode, sem causa, nascer. Assim, pois, quando o operário (demiurgo) que forma um objeto, com os olhos fixos no imutável, toma um modelo (paradigma) desse tipo, aquele objeto, executado desse modo, deve necessariamente ser belo; mas sempre que ele olha para o que vem à existência e usa um modelo (paradigma) produzido, o objeto assim executado não será belo (28 a-c). E Platão passa a discutir o Demiurgo ou Pai do cosmos, interrogando "qual modelo (paradigma) foi usado pelo Arquiteto para construí-lo? Foi o que é sempre idêntico a si mesmo e uniforme, ou segundo o que vem à existência? Ora, se o cosmos é belo e seu construtor é bom, é claro que ele fixou os olhos no que sempre é". Portanto, "ele construiu o cosmos segundo o modelo do perceptível pelo pensamento e pela razão, e, pois, é idêntico a si mesmo".( )

Segundo Henri Martin, a presença constante do termo "paradigma" reforça a interpretação do pensamento platônico segundo a qual, para ele, com exceção de uma só essência, a indivisível e imutável, todas as demais essências das coisas nada oferecem de estável, sendo, portanto, estranhas ao domínio da ciência. O demiurgo, o fabricante do cosmos a partir das idéias que ele contempla, e da matéria preexistente, é descrito no Timeu em várias formas de trabalho técnico e artístico. Ele é um modelador de cera, um operário que recorta a madeira, um construtor que sintetiza todos os elementos, um fabricante (poietés). ( ) Nem é preciso recordar a polissemia de poietés, no transcurso da história ocidental. Fala-se muito do ódio platônico aos artistas. Mas não se toma em suficiente conta as expressões da beleza no artifício chamado cosmos, resultado de um trabalho artístico. Conhecemos os lugares comuns da história da filosofia sobre Platão, "inimigo das artes" e defensor da ciência. Todas as modernas objeções à teoria platônica da arte estão centradas na assertiva de que o seu racionalismo o impede de reconhecer o caráter específico da criação artística. Ele é acusado de modelar a arte segundo a ciência, a qual deve copiar a natureza do modo mais verdadeiro possível. Diz-se ter ele esquecido que a arte verdadeira não copia uma realidade existente, mas cria uma nova realidade que brota da fantasia própria ao artista, e que o caráter espontâneo dessa expressão garante o valor independente das puras qualidades estéticas. Não irei ampliar este ponto, bem discutido por W.J. Verdenius. ( )

Hans-Georg Gadamer, analisa o Timeu e retoma a idéia de Platão de que o paradigma deve ser único, porque ele serve ao demiurgo para moldar o universo, o qual tudo inclui em si mesmo. Entre o paradigma e as suas cópias, estas são múltiplas, haveria uma diferença importante. Sobretudo após a moderna hegemonia romântica, que potenciou o cristianismo, para o qual o universo é criado por Deus a partir do nada, ( ) foi desvalorizado o difícil trabalho do "poeta" demiurgo, que luta com a matéria rebelde e fluente para construir um artefato. O mundo da arte, como o da religião, invoca um Deus onipotente, o qual "cria" o universo ex nihilo. Essa idéia, aplicada ao gênio romântico, afastou os termos "modelo", "imitação", e outros, essenciais no argumento platônico.

De Platão aos nossos dias, encontramos nas teorizações sobre a natureza, a sociedade, o homem, paradigmas extraídos especialmente do nosso próprio corpo, ou dos instrumentos por nós produzidos. Ou projetamos o cosmos e o social como imenso corpo, e ampliamos ao máximo o modelo do organismo, ou ideamos o universo na figura de refinada máquina, construída por um demiurgo, cujo ato devemos repetir. À linhagem mecânica, de Platão a Hobbes e aos philosophes das Luzes, contrapõe-se a seqüência orgânica, seguindo de Aristóteles aos estóicos, e deles aos românticos. Evidentemente, nenhum desses paradigmas foi utilizado, sempre, de modo unívoco ou sem "contaminações", pelo seu oposto. Nem tudo em Aristóteles é "orgânico". Georges Canguilhem mostra as dificuldades encontradas, nesse sentido, para se definir uma ou outra perspectiva. ( )

No Renascimento teve enorme impulso o paradigma instrumental, mecânico, o que repercutiu até no século XX. Entre inumeráveis exemplos, tomemos o do matemático Henri de Monantheuil, que apresentou, na trilha do Timeu, Deus como um mechanikos e mechanopoios, com o resultado de que o mundo seria "a máquina mais eficaz, sólida e bela de todas as máquinas" ("Mundus enim hic machina est, quidem machinarum maxima, efficacissima, firmissima, formosissima'').( )

Mas voltemos a Platão, e ao nexo entre paradigma e conceito. Como vimos, o paradigma abarca figuras instrumentais, ofícios, técnicas, para tentar uma aproximação da realidade. Naquela palavra, temos uma gama de ressonâncias plásticas, científicas, jurídicas, éticas. Nos próprios textos platônicos, especialmente no Timeu, toda a imagética mecânica não exclui figuras de ordem vital. ( )

Passada a inspeção do conceito de paradigma, voltemos ao texto da Quarta parte da Ética spinozana. O filósofo toma como fio condutor de sua análise das afecções e da ordem política, tendo como foco o problema do mal, o fato da produção técnica e artística segundo paradigmas. “Quem faz uma coisa e a terminou diz que ela está perfeita. E não apenas ele, mas todos os que tiverem conhecimento exato da intenção do autor de tal obra e o seu fim, ou que acredita ter semelhante conhecimento. Por exemplo: se alguém enxerga uma obra não acabada e sabe que o fim do seu autor é construir uma casa, dirá que a casa está imperfeita. Dirá no entanto que está perfeita, quando perceber que a obra chegou ao fim que o autor queria efetivar. Mas se alguém vê uma obra, nunca tendo visto coisa igual e desconhecendo o fim do do artista (opificis), não poderá saber se a obra está perfeita ou imperfeita.”. Aqui, temos a questão dos fins encontrados na mente do artesão, como elemento fundamental das reflexões sobre o trabalho humano, de Aristóteles até Karl Marx. Nesta longa cadeia, Spinoza ocupa um lugar comum a pensadores clássicos e modernos.

Tomemos, em Marx, a imagem da arquitetura, a qual se tornou um paradigma exclusivo e excludente, mesmo nas interpretações acadêmicas do texto marxista. A nota de Marx ironiza os economistas de seu tempo, para os quais as noções de natureza ou de arte só poderiam ser aplicadas de modo unívoco. Assim, "artificial" seria toda instituição perempta. "Natural" seria a sociedade burguesa. Num só golpe, Marx afirma que os conceitos de "natural" e de "artificial" constituem algo mais cheio de matizes, e identifica o nexo unívoco de conceitos e real como idiossincrasia dos maniqueus ou fanáticos religiosos. A seguir, vem uma réplica da acusação, "feita por um jornal germânico-americano", da Crítica da economia política (1859). “Diz-se ali que a minha opinião é que todo modo particular de produção, e as relações de produção que lhe correspondem em cada momento dado, resumindo, a estrutura econômica da sociedade, é a base real (die reale Basis), sobre a qual se edifica uma superestrutura (Überbau) jurídica e política, à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da
vida material determina o processo geral da vida social, política e espiritual.

Aqui temos o paradigma da arquitetura. Mas esta última supõe um arquiteto, pelo menos desde o Timeu. Se o pensamento de Marx ficasse no prédio, sem o seu planificador e construtor, teríamos uma tese "objetiva": a sociedade "é" um "edifício" que se divide em dois segmentos. Tudo o que se passa no segundo deve-se ao primeiro. Esse modo de ler conduziu às piores caricaturas na assim chamada "Diamat", ensinada aos milhões de militantes. O demiurgo só é encontrado, em O capital, se formos além desta figura estática. O "arquiteto" é analisado por Marx quando discute a produção da mais-valia absoluta. Aqui, o filósofo alude ao instrumento como paradigma, para chegar ao seu produtor, o artífice. "O instrumento é uma coisa (Ding) ou complexo de coisas que o trabalhador interpõe entre ele mesmo e o objeto (Gegenstand) do seu trabalho, e que serve como um condutor (Leiter) de sua atividade (Tätigkeit) sobre esses objetos". O instrumento é
modificação de algo natural, por isso recebe o nome de coisa física (Ding) ou de um complexo de coisas. Entre o sujeito e a natureza, os "objetos" (aqui Marx não usa o termo científico, Objekt, o qual implicaria uma universalidade abstrata), o instrumento é um "condutor".

Um "edifício", seja ele espiritual, científico, social, não é construído sem instrumentos. O homem, atividade permanente, "utiliza as propriedades mecânicas, físicas ou químicas das coisas, como instrumentos de seu poder (Machtmittel) e de acordo com seus fins''. O contexto político da frase é claro: um instrumento não apenas aumenta a força física do homem mas amplia o seu poder. Do exemplo arquitetônico, passando pelo instrumento, Marx chega ao modelo orgânico. Note-se que não há repulsa de um pelo outro, mas ambos são integrados: com o instrumento, "a natureza torna-se um dos órgãos da atividade humana, o qual o homem anexa aos seus próprios órgãos". Voltemos um pouco antes dessa descrição
fenomenológica da consciência que produz instrumentos.

Reencontramos o símile do edifício não posto na sua exterioridade, como algo fatal a ser aceito pelos homens. O edifício, agora, é pensado com o demiurgo, sem que Marx deixe de movimentar as figuras do instrumentos mecânicos e as propriedades físicas, químicas etc. O conceito fundamental, então, é o de passagem entre homem e natureza (por isso, o instrumento é definido como um "condutor"). O "edifício", nesse passo, é o próprio corpo humano, modificado em relação ao animal, pela arte e pela técnica. A forma arquitetônica adquire movimento com o ato racional. Lugar-comum do marxismo, é o símile da abelha, da aranha, dos homens. Tal paradigma vem dos pré-socráticos, e foi elaborado por Platão, sendo fundamental no Renascimento. Gregory Vlastos, num ensaio fundamental sobre Demócrito, sublinha a originalidade do pensador arcaico, especialmente na idéia de que o homem constrói a si mesmo, tanto no plano ético quanto no seu relacionamento com o cosmos.

Marx recusa o mimetismo entre homem e animais. O capital usa, para realçar a diferença entre homens e animais, justamente, a consciência. Uma aranha efetiva operações parecidas com as do tecelão, e a abelha poderia envergonhar muito arquiteto humano (Baumeister), pela construção de suas celas. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que o arquiteto constrói (gebaut) a cela na sua cabeça antes de construí-la na cera. No final de todo processo de trabalho, emerge um resultado que já tinha sido concebido na representação (Vorstellung) no início, logo já existia de modo ideal (ideell). Esse campo conceitual e imagético amplia a metáfora arquitetônica, mas sem a carga da exterioridade "objetiva", suposta numa leitura isolada do trecho sobre a "superestrutura". Nesse item, Marx retoma Hegel. Nas Lições sobre a estética, ao se discutir a arquitetura, entre outras artes, afirma-se que ela "não imita a natureza". Ao redor dos conceitos filosóficos utilizados por Marx, notemos o termo "Ideell". Este é um ponto estratégico no que tange ao exercício do pensamento. Não temos, em nossa língua, equivalente para o matiz, encontrável no alemão e no francês, entre "Ideal" (modelo, protótipo), e "Ideell" (o que está no pensamento, na representação, "Vorstellung", de quem concebe). Muitas hermenêuticas do texto marxista perderam esse elemento ativo, o qual supõe o ato subjetivo de imaginar e de refletir. Ainda um trecho supostamente "conhecido", mas necessário para definir a consistência do paradigma da arquitetura e do demiurgo arquiteto, no momento em que Marx rompe com o mestre Hegel. “Meu método dialético, nas suas fundações, é não só diverso perante o de Hegel, mas o seu oposto direto. Para Hegel, é o processo de pensamento, o qual ele transforma, sob o nome de Idéia (Idee) num sujeito independente, o demiurgo do efetivo (der Demiurg de Wirklichen), o qual seria apenas a sua aparência externa figurada. Para mim, pelo contrário, o ideal (das Ideelle) nada mais é do que o material invertido e traduzido (überzetzte) na cabeça do homem.53 Na tradução de Fowkes, "demiurgo" é posto como "criador",54 o que impõe ao pensamento de Marx a forma cristã e romântica, retirando-lhe as ressonâncias filosóficas originais.













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