HOMOSSEXUALIDADE, METAFÍSICA E MORTE. A HONRA MASCULINA E O DIREITO DE MATAR
Roberto Romano
CURSO DE CAPACITAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E DIVERSIDADE SEXUAL PARA GESTORES PÚBLICOS DO ESTADO DE SÃO PAULO (14/12/2007). Palestra proferida no Auditório da OAB/SP (Largo da Polvora).
Existem ilusões sobre a democracia grega espalhadas no pensamento acadêmico e político. Existem ilusões sobre a atitude grega diante do homossexualismo, aceitas sem análises cautelosas, inclusive entre homossexuais. Tais ilusões, penso, em vez de ajudarem a construir sistemas de justiça, alimentam mitos sobre os indivíduos e os grupos que levam ao assassinato dos que não se enquadram nos efetivos ideais gregos de vida natural. Espero que no fim da minha fala, estes pontos fiquem mais claros.
Na revista Diké, prestigiosa pela escolha dos colaboradores e relevância dos temas expostos, Robert Wallace analisa o problema da atimia no direito grego, em especial no período clássico. Aquela figura é acolhida pelos tribunais de Atenas e apoiada amplamente pela sociedade inclusiva. Trata-se de grave restrição aos direitos civis dos acusados de crimes e delitos hoje separados na ordem legal. (1) Wallace menciona, na coletânea de leis sobre a atimia, o comentário de Esquino com as cinco causas que podem gerar a perda dos direitos cidadãos. Esquino acusa Timarcos que, supostamente, “vivia coberto de vergonha [ou seja, como prostituto masculino] e a lei o proibe de falar ao povo”. A ordem legal citada por Esquino proclama que “Se algum ateniense prostituir sua pessoa, não será permitido o seu acesso ao cargo de um dos nove arcontes, nem o exercício do sacerdócio, nem a função de advogado (syndikos) para o povo, nenhuma magistratura, no país ou no estrangeiro, tanto os cargos preenchidos por sorteio ou eleição; ele não pode entrar nos debates nem se apresentar nos sacrifícios públicos; quando os cidadãos usarem guirlandas, ele não poderá fazer o mesmo; e não poderá ultrapassar os limites da Agora”. (2) Detalhe fundamental a ser anotado com muita cautela. Os processos registram, em casos semelhantes: quem perdia assim os direitos, não tinham a sua culpa declarada pelos tribunais. Bastava a desconfiança para definir a pena. Daí a expressão de juristas modernos de que aquelas pessoas seriam “atimoi não declarados culpados”. Um autor, MacDowell, (3) diz que os prostitutos masculinos deviam “evitar o exercício dos direitos cidadãos, ao serem tidos como atimoi, pois eles seriam processados se ignorassem tal determinação. “A pena era a morte”. A dokimasia, exame para ingresso e saída dos cargos públicos, define que “a atimia (perda dos direitos) pode caber como pena aos acusados de prostituição, mas só para os políticos, não para os cidadãos privados”, afirma S.C. Todd (4) Este “só” não tranquiliza ninguém, porque o grego, segundo Aristóteles, é animal político. As penas de atimia eram aplicadas, em casos diferentes da prostituição, aos magistrados que, sem deixar o cargo, não pagavam ao Estado os seus débitos aos tribunais e à Assembléia. Também os cidadãos que, chamados para integrar o exército, não compareciam, eram submetidos à plena atimia.
O que eram as timai que ordenavam o termo negativo, atimia? Eram a honra pública, elas permitiam acesso aos cargos, aos tribunais, ao povo reunido em asssembléia. Atimia era imposta aos covardes na guerra, aos que não protegiam seus familiares, sobretudo menores, aos devedores do erário oficial. Atimia pode ser ser hereditária. A maior ou menor abrangência da perda dos direitos era decidida caso a caso. Autores indicam que no cotidiano certas penas de atimia eram quase ignoradas pela população, como nos débitos de cidadãos privados para com o erário público. E temos também o caso dos promotores públicos que, se não conseguissem convencer pelo menos um quinto dos juízes e jurados, ou eram proibidos de tratar novamente de causas públicas ou eram, pelo menos, multados pesadamente.
Quando se fala em democracia grega é preciso, portanto, muita cautela. A referida forma de poder não apresenta as determinações definidas hoje na semântica e prática política ou jurídica. Como vimos no caso da atimia, a permanência no coletivo cidadão era restrita e, não raro, dependia das lutas e acusações feitas por adversários, sem garantias duradouras dos direitos. Não por acaso Aristófanes e Platão, representantes da aristocracia, notaram defeitos gravíssimos na ordem democrática, assistidos de razão plena. Também Tucídides mostra, com uma lógica férrea, que a democracia na Grécia seguiu o caminho perigoso da ambição imperial, para satisfazer a fome de mando e de riquezas dos cidadãos. As Vespas de Aristófanes mostram com minúcia o quanto a justiça se transforma, na democracia helênica, em assalto aos cofres públicos e aos cargos da justiça, em troca de salários, posição social e política. Não erra muito quem afirma da ordem democrática grega, que nas suas cidades Estado o efetivo era um clube de homens, proprietários, xenófobos e arrogantes.
O acesso ao sistema legal ateniense, bem como em outras áreas da vida política, comenta um especialista em direito e história jurídica da Grécia, eram prerrogativas dos cidadãos. Note-se que mesmo o termo “as atenienses” não existia, mas apenas “os atenienses” (oi Athenaioi). Para ser cidadão, era preciso antes de 451 AC, ter pai ateniense e mãe livre. Depois, a qualificação se tornou mais exigente, sendo necessário que pai e mãe tivessem nascido gregos. O âmbito das mulheres era a casa. Como diz Clitemnestra a Agamenon, “no mundo você domina, na casa, mando eu”. Só os homens poderiam ter cargos públicos, participar da Assembléia, servir como juízes ou promotores, advogados ou testemunhas. Em casos de inquérito sobre homicídios, as mulheres poderiam comparecer, mas pouca documentação sobre isto pode ser citada. Para toda ação legal, a mulher era representada por um adulto homem, o seu Kyrios (guardião, mas com tradução melhor como Senhor) que poderia ser seu pai, antes do casamento, ou seu marido. Se acusada judicialmente, o processo seguia contra ela e seu Kyrios. Evidências eram dadas, no tribunal, pelo marido. Pode-se aquilatar, portanto, o que significa a atimia entre os gregos. Trata-se de perder a condição de homem, de Kyrios. O atimos é o que não tem honra, sendo a honra uma das propriedades essenciais dos homens. A atimia apenava sobretudo os covardes na guerra. Os atimoi não tinham proteção segura para a sua vida e bens. (5)
No caso da homossexualidade, a proibição que, infringida leva à atimia é a venda do próprio corpo para uso sexual de outro homem. A atitude passiva conduz o indivíduo ao estatuto feminino, o que lhe retira, ipso facto, a prerrogativa cidadã. Para bem compreender semelhante ponto, não basta compulsar as leis atenienses e os costumes. A Grécia legou ao Ocidente uma visão masculinizante da sociedade, algo que ainda hoje permite aos entes do gênero masculino dominar amplos setores institucionais e religiosos, como é o caso da Igreja Católica. Não se trata apenas de hábitos, mas de concepções racionalizadas até mesmo em termos metafísicos. Em Aristóteles, o mestre de boa parte da teologia cristã via Tomás de Aquino, o útero é o orgão essencial da mulher. Mas ele não produz semente fértil pois a mulher gere e não gera o embrião. Procriar um garoto é sinal de perfeito acabamento. Já o contrário é signo de fraqueza. (6) Segundo Aristóteles, os termos “macho” e “fêmea” mostram que a “natureza da terra é algo feminino e por isto ela é chamada ‘mãe’, mas “o céu e o Sol são geradores e pais”. (Geração dos Animais, 716a). O princípio (arché) encontra-se no macho e produz movimento, geração. É bom lembrar que o termo arché conota, de modo relevante, o poder político. O poderoso mobiliza os fundamentos da natureza e da polis. Os Archontes eram os magistrados que garantiam a ordem e a estabilidade estatal. A fêmea teria em si a hylé (o princípio da matéria). O macho geraria em outro e a fêmea em si mesma. Assim, macho e fêmea diferem pela sua própria estrutura ontológica. Na fêmea, o útero seria a peça essencial, no macho os testículos e o pênis. “A relação macho/fêmea”, diz Aristóteles, “é naturalmente do superior ao inferior, o macho governa, a fêmea obedece” (Política, 1254b). A semente masculina supre o principio ativo da geração e, pois, da alma racional e sensitiva. A mulher seria “um macho infértil (...) ou deformado, a descarga menstrual é semente, mas em condição impura (...) falta-lhe o princípio da alma” (Geração dos Animais, 737 a). (7)
Podemos agora analisar a semântica da palavra atimia, que joga indivíduos masculinos para fora da lei e do gênero que a natureza lhes deu. Timós, nas suas significações mais arcaicas conota ao mesmo tempo os pensamentos e as emoções, ambos regulado pelo diafragma, entendido como “freio” do corpo e das ações.(8) Assim, o timós equivale ao logos, a razão que tudo controla e freia. Assim, o homem que possui um timós intacto, não corrompido, apresenta não apenas coragem, mas também o controle racional da coragem, o que é próprio do logos. O preceito da parresia, da fala livre do cidadão na Assembléia, exige que o indivíduo não seja impedido de falar pela vergonha, pelas paixões, pela chantagem, pela falta de vergonha. Quando vende seu corpo, vende também a coragem, a razão, a vergonha, a honra. E não pode ser partícipe de nenhum direito, porque o direito é palavra utilizada publicamente e em particular, sem impedimentos. Temos a chave para entender em parte a pena de atimia. Negociar o corpo e assumir o papel passivo é para o adulto ateniense passar para o lado feminino, sem ter útero. Se a mulher é “macho infértil” para Aristóteles, o macho que assume o papel da mulher, numa compra e venda de seu corpo, não consegue substituir o corpo feminino na geração de filhos. Se a mulher é ser humano imperfeito, o homem prostituido nega em si mesmo a sua própria natureza.
Se levarmos em conta os enunciados de Michel Foucaul e de Keneth Dover, (9) seria de se pensar que os gregos consideram a homossexualidade ativa como perfeitamente “natural”. Mas não se pode eludir o fato de que adotar uma atitude submissa e passiva desabilita o indivíduo masculino para a cidadania livre e coberta pelos direitos. (10) Foucault avança a tese de que na Grécia o homoerotismo é visto como natural, não existindo a bivalência homossexual/heterosexual e que não existiria, portanto, prática ética ou legal de normatização neste campo. O tema é mais complicado. É certo que os gregos tinham consciência das ambiguidades e conflitos entre leis e costumes, e que as primeiras variavam de uma cidade Estado a outra. Umas proibiam a pederastia, outras a autorizavam. Platão, no Simpósio, põe na fala de Pausanias a sentença de que em Atenas as leis e costumes ligados à pederastia são poikilos (multicoloridos, intrincados, com muitas saídas), pois naquela cidade ao mesmo tempo eram censurados e aprovados os fatos daquele campo ético e jurídico. Poikilia é noção usada na República platônica para descrédito do regime democrático. Nesta forma política, diz o filósofo, a mais bela de todas, as opiniões políticas são multicoloridas, não fazem unidade alguma. Tal regime é comparado por Platão às vestimentas dos atores que, ao entrar na cidade, atraem as crianças e as mulheres com seus mantos de retalhos bordados em matizes berrantes. (11) O regime proposto na República e nas Leis afasta-se deste carnaval opinativo, foge do gosto estético e político do povo, das mulheres e crianças. A poikilia agrada aos olhos, mas afasta o pensamento da justiça e da verdade. Do regime democrático, com esta festa sensual, o resultado só poderia ser a violência tirânica. Assim, quando o Pausanias de Platão diz que as leis atenienses sobre a pederastia e homossexualidade pertencem ao campo da poikilia, ele afirma que os cidadãos e governantes de Atenas não conseguiram estabelecer leis e costumes racionais, escrevem leis não unitárias em termos de condenação ou consentimento da homossexualidade. Note-se que Platão é bem menos excludente da mulher no âmbito político do que Aristóteles.
As leis atenienses reguladoras do homoerotismo podem ser agrupadas em três categorias (12) : leis sobre a prostituição, leis sobre a educação e as provisões sobre atentados sexuais. As primeiras: o cidadão era posto na atimia se tivesse vendido seu corpo para o prazer sexual de um homem, o vendedor poderia estar na idade adulta ou na infância. Se o garoto era alugado pelo genitor, irmão, parentes ou qualquer responsável legal por ele, tais pessoas respondiam a processo penal. Na educação: leis detalhadas protegiam os estudantes do assédio adulto. As escolas, por exemplo, não poderiam abrir suas portas antes da luz solar ou depois do entardecer. A terceira lei liga-se à Hybris (insulto, ultraje, abuso). Costuma-se traduzir hybris por desmesura. Esta é uma das suas significações, na arrogância do rico e do poderoso contra o pobre e fraco. Mas hybris pode ser aplicada a todo comportamento masculino que abusa do mais fraco (mulher, criança, estrangeiro, escravo) para seu prazer e auto-indulgência. É o caso do abuso do macho adulto contra um menino.Importa recordar, dizem os comentadores, que os nomes ligados à hybris e ao verbo hubrysein possuem forte conotação sexual. Voltemos a Aristóteles. Para ele, a hubrys é todo comportamento que desonra e envergonha a vítima para o prazer ou gratificação do ofensor (Retórica 1378 b). É com base neste ponto que Esquino afirma, ao comentar a lei, que no caso da ofensa por hubrys a desonra cai sobre a vítima, mesmo que ela não tenha consentido. Temos casos semelhantes em nossos dias, no Brasil e em países árabes. Aqui, uma menina a quem se acusou de prostituição foi posta em cela com machos adultos. Segundo a maior parte das autoridades públicas por ela responsáveis, a culpa seria dela. Em país árabe, uma jovem foi violentada por vários machos adultos e condenada a receber a chibata, por “atentado ao decoro”. Como se nota, a Grécia ensinou muita coisa aos nossos tempos. É bom lembrar que só temos conhecimento da filosofia e das leis gregas porque os árabes guardaram seus manuscritos e os transmitiram ao Ocidente. Eles conhecem as bases do que fazem.
A lógica da atimia, portanto, é evitar a desonra dos jovens e futuros cidadãos atenienses, todos másculos geradores de familias, o que seria frustrado caso um indivíduo que se vendeu ou foi vendido por seus responsáveis penetrasse o círculo fechado da política. Entende-se também o peso da acusação contra Sócrates, condenado a beber cicuta por impiedade (asebeia) e por corromper os jovens de Atenas. A pena de morte era destinada a quem se aproveitasse, por hubrys, dos jovens escolares. A honra masculina, como indica um comentador, seja na pessoa própria, seja na mulher ou filhos é “jogo de soma zero: o aumento da honra de um homem dá-se às expensas de outros”. A proibição da venda, para fins eróticos, do corpo masculino tem implicações éticas relevantes, se notarmos que a honra na cultura grega é o correlato da noção de vergonha, pudor, Aidós. Assim como o guerreiro covarde não sente vergonha da fuga, abandona o seu dever de proteção aos seus familiares e aos demais membros da cidadania, também o homem (ou menino) que se entrega a um adulto masculino em troca de presentes e dinheiro perderia a vergonha como experiência ética fundamental. Assim sendo, a corrupção do prostituido, além de colocá-lo no falso papel de mulher, o que seria um ato duplamente contrário à natureza, faria desaparecer os laços de respeito entre pessoas e de respeito próprio. (13)
Essa noção de honra e de valor, que abomina a traição dos elementos masculinos quando passam ao lado da mulher, sobretudo da prostituta, justifica os movimentos antigos e modernos voltados à aniquilação dos homossexuais. Religiosos de quase todas as confissões e seitas, os fascismos e o nazismo, acentuaram o par verginha/honra para estigmatizar o “crime contra a natureza”, punível com a morte ou o exílio da cidadania. Hoje os nazistas que se escondem sob os nomes do “neo-nazismo”, ou dos seus herdeiros carecas ou não, aplicam a lei supostamente mais antiga e mais digna da ética masculinizante. E sua sentença é de morte, como as estatísticas fazem notar no mundo e no Brasil. Passo à análise de um detalhe de nossa formação social, para evidenciar o quanto é árduo modificar o costume do morticínio praticado contra os diferentes em termos de opção sexual.
É preciso notar a duplicidade evidenciada na violência da honra, tal como herdada por nós do pensamento antigo. A violência é espiritual e física. As duas são distintas, mas unem-se quando se trata de impor um modo coletivo de administrar vidas e mortes. Cito Maria Sylvia Carvalho Franco em Homens livres na Ordem Escravocrata,(14) que recolhe a violência aparentemente gratuita (estudada em processos crime do século 19 ) de nossa formação social. Até hoje, por motivos fúteis na superfície, milhares de mortes são cometidas em defesa da honra. A simples recusa de uma bebida no bar pode tolher uma existência. A autora segue do aparentemente irracional para a estrutura da sociedade. Ela mostra que a violência em nossa terra surge de um modo particular na geração do lucro em larga escala, explorando-se mão-de obra como os mecanismos pessoais (que mobilizam a “honra”), nas relações de compadrio e favor. Tais mecanismos de controle perpassam também as forças institucionais (o “público”). Sendo a mão de obra escassa, as relações de compadrio e favor, onde supostamente há igualdade entre proprietários e não proprietários (o patrão/padrinho e o dependente) atenuam os abusos dos patrões sobre os seus “compadres”, pois ambos são unidos por um pacto tácito de “proteção mútua”. O fazendeiro paternalista mata o seu concorrente e rival fazendeiro, e manda destruir os que ameaçam sua fazenda, os sem propriedade territorial. Para isto, ele conta com os “compadres” pobres. Dificilmente ele manda matar os seus protegidos. Se isto ocorresse com freqüência, seria perdida a mão de obra e as almas sobre as quais domina.
Comentando Carvalho Franco, Alba Zaluar diz que o estudo do coronelismo aponta “os laços morais fortes entre o coronel e seus seguidores, especialmente os consagrados pelo compadrio. Os jagunços que formavam a sua guarda não o protegiam dos seguidores, mas dos seus rivais fazendeiros. É claro que isto não eliminava totalmente as relações de força e a violência, usadas sempre que um conflito interpessoal (frise-se aqui o pessoal) dividisse patrões e clientes, ou colocasse em campos opostos os homens livres da sociedade escravocrata (Carvalho Franco), mas a sua articulação com esses vínculos morais conformavam uma situação bem diferente da atual, onde a violência articula-se com os princípios do individualismo egoísta do mercado” (15)
Desde o início, temos as dominações físicas e anímicas “privadas”, postas acima da lei estatal, o “público”. As relações de compadrio e favor são universais da vida brasileira, ampliadas ao plano político, definindo o Estado, sobretudo nos Parlamentos e nos Executivos. No século 19, a parca mão de obra obstaculiza o abuso absoluto da dominação. O fazendeiro, por força da concorrência econômica e política, mata outros fazendeiros. Mas para a “sua” gente ele é “pai”. Em nossos dias, afirma Zaluar, “na versão atualizada, o clientelismo brasileiro aproxima-se do empregado pelas máquinas políticas -o bossismo americano- que se valem do poder de compra do dinheiro (e não mais de laços éticos, como o compadrio) e cujo efeito corruptor é conhecido. “Por isso o 'chefe', 'o cabeça' o que 'está na frente' (termos todos usados pelos populares, para designar os chefes do tráfico de drogas) é tido como um patrão fársico, sem as qualidades morais atribuídas ao patrão no registro tradicional. Não tem autoridade nem induz ao respeito, mas consegue obediência através do medo pelo seu poder (ou o de perseguir seus desafetos uma vez eleito, no caso dos políticos, ou pelo poder de fogo de sua quadrilha, no caso dos empresários do crime). O seu caráter despótico é revelado pelos nomes usados para designá-lo: 'homem', porque os que a ele se submetem adquirem características do feminino; 'cabeça', porque, estando acima dos outros, é o único que pensa, age, e é portanto livre, os outros são seus meros escravos”. Nas relações políticas e sociais brasileiras, continua Zaluar, “por ter que se submeter a poderes não legitimados que usam e abusam da força, os homens tornam-se suscetíveis a qualquer provocação, interpretada como ameaça à sua honra e integridade masculina”.
A mesma futilidade de motivos indicada por Carvalho Franco nos homens livres no Brasil escravocrata, nota-se agora nos jovens pobres e de cor. “Pelos dados do Ministério da Saúde, no Município do Rio de Janeiro, em 1988, o número de mortes por causas externas (6008) ficava em terceiro lugar, só perdendo para as mortes por doenças do aparelho circulatório (19.482) e neoplasmas (6.323). (...) Na média geral brasileira, morrem quatro homens para cada mulher e, em alguns municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, essa taxa diferenciada atinge o valor de 15 homens para cada mulher. A partir de 1987, os homicídios (intencionais ou dolosos) passaram à frente das mortes por acidente de trânsito (culposos) e hoje os supera em cerca de 30%, afetando principalmente os jovens pobres e de cor que estão deixando a escola”. É preciso ter presente que as mortes são de jovens, na sua maioria, adolescentes ou na verdade crianças, promessas calcinadas de vida. Termina Alba Zaluar: “Nos países em que a lei, em vez de impor limites ao dinheiro, deixa-se seduzir por ele, o acúmulo de riquezas e dos instrumentos de violência são fundamentais para capacitar as pessoas na resolução de conflitos. Pois, se a Justiça não funciona, as armas de fogo são extremamente eficazes para destruir desafetos e rivais, para dominar as vítimas, para amedrontar possíveis testemunhas e criar respeito entre comparsas e policiais, garantindo a impunidade”.
Em data recente, um governador da Paraíba deu o exemplo cabal do fato evocado pela antropóloga, evidenciando o comportamento “público” e a violência dos políticos machistas. Para vingar sua honra, ele entrou num restaurante e sem nenhuma hesitação se dirigiu à mesa de um adversário. Sem cuidados com a lei ou a segurança dos presentes, deu um tiro na boca do antagonista. O princípio da honra também surge como traço definidor da masculinidade, nas lutas ocorridas entre os empregados das quadrilhas. Valor universal e abstrato que pode ser atribuído aos atos mais loucos, a honra faz com que indivíduos não hesitem em matar o semelhante. Os motivos destas mortes definem o lugar da pessoa na produção do lucro. A honra, temeridade na aceitação de riscos letais, determina a hierarquia do sujeito no bando. Unida à capacidade de liderança e à inteligência, honra garante a liderança e parte do botim. A questão da honra foi muito estudada em termos históricos, sociológicos e antropológicos. Ela ajuda a explicar sistemas aparentemente “irracionais” de vida social, como a violenta nobreza européia, particularmente a germânica, com o uso do duelo . Norberto Elias, sobretudo no livro Os Alemães, expõe esta mazela que ajudou muito a criar a ética da qual brotou o nazismo germânico.
Zaluar indica a contribuição do Estado brasileiro para a violência. Com a república, “o novo governo queria marcar uma revolução moral no país por meio da separação rígida entre trabalho regular e penoso, pai de todas as virtudes, e o ócio, mãe de todos os vícios. Os republicanos jacobinos, que desejavam dar uma feição moralista e repressiva ao trabalho, foram os principais mentores desta política que resultou na repressão às formas de expressão cultural dos brasileiros negros e mulatos, assim como na detenção dos classificados como vadios e desordeiros. Nos cálculos de Boris Fausto, os números de detidos desta forma correspondiam a 86% de todas as prisões entre 1912 e 1916. Os que haviam cometido crimes, assim definidos no Código Penal, eram cerca de 14% deste todo. E o que é mais importante, enquanto os brasileiros (em geral negros e mulatos) eram tachados logo de vadios, os estrangeiros continuavam sendo considerados bons trabalhadores e iam presos por desordem”.
O Estado produz “bandidos”, os “vadios”, na maioria negros ou mulatos. Todos desonrados e declarados incapazes para a cidadania. Produzindo os atimoi ao proclamar normas contra a vadiagem, sem investir em educação e em políticas sociais conseqüentes, o poder canaliza para os chefes da droga mão de obra abundante e barata, a qual não tem a proteção legal. De modo oposto ao dos fazendeiros do século 19 os empresários da droga possuem incontáveis braços sem qualificações educacionais ou técnicas. As massas são exploradas num instante e moídas por matadores profissionais. A indução sistemática, por parte da mídia, produz o resto.
Se a honra do ser humano masculino é tomada como absoluto na sociedade, se ela permite a ética do assassinato de mulheres indefesas, ela também assegura o controle de bandidos sobre bandidos, constitue um código que se afasta de qualquer lei civilizada. E ademais, os assassinatos de homossexuais, inquietantes no Brasil, seguem a lógica de Aristóteles. É correto anular seres masculinos que traem o seu gênero e o ameaçam no papel feminino. O homossexual masculino, sobretudo o que se prostitui, como na Grécia, tomba na atimia, na pena de morte executada pelos supostos seres perfeitos. O que apavora os másculos auto-imaginados como normais, é que os traidores, os homoeróticos, guardam aspectos da masculinidade, não raro a coragem, a razão, a força física. Isto inquieta porque, desde Aristóteles, as mulheres verdadeiras devem ser governadas porque são fracas e alheias ao logos. Não apenas Aristóteles, mas Hegel, o grande inspirador das modernas ideologias totalitárias, o estalinismo e o fascismo, assume tal atitude que nega o direito aos não homens. Basta abrir as Lições sobre a Filosofia do Direito hegelianas: “As mulheres”, diz o autor, “podem ser cultivadas mas não foram feitas para as ciências mais nobres, nem para a filosofia, nem para certas formas artísticas, que exigem o universal. As mulheres podem ter penamentos, gosto, elegância, mas o Ideal não lhes é acessível. A diferença entre o homem e a mulher é semelhante à do animal face à planta. O animal corresponde mais ao temperamento masculino, a planta mais ao feminino. A mulher se desenvolve mais quietamente, pois se mantêm sobre o fundamento da unidade sensível indeterminada. Se as mulheres estão no ápice do governo, o Estado corre perigo, pois elas não agem segundo as exigências do universal, mas segundo inclinações e opiniões contingentes”. (Filosofia do Direito, § 166 e nota).
Para terminar e mostrando o quanto a atimia e a metafisica dos sexos enunciada por Aristóteles não correspondem ao real histórico, cito um dos maiores especialistas da prática militar na Grécia, Victor Davis Hanson. Ao comentar a coesão das forças militares ocidentais, nas quais o compromisso dos soldados entre sí é mais relevante para a sobrevivência dos exércitos do que as ordens burocráticas do quartel general e dos governos, Hanson escreve as seguintes palavras: “As ligações extraordinariamente fortes entre os hoplitas constituiam simplesmente as relações normais de quase todos os combatentes nas falanges da maioria das cidades gregas, Elas não pressupõem treinamento especializado excepcional ou esforço concentrado para formar um corpo de elite. (...) Em toda a Grécia é provado que as amizades homosexuais eram fator que contribuia para o moral de uma unidade. em Esparta, por exemplo, a separação dos sexos na jovem idade bem como as atitudes próprias dos outros gregos sobre o papel das mulheres resultavam em relações homossexuais circunscritas à vida dos acampamentos. Sem nenhuma dúvida, ligações tão fortes persistiam nos campos de batalhas e devem explicar o heroismo espartano, particularmente nas gloriosas derrotas que vão das Termópilas (480) a Leutres (371) onde homens preferem a morte à vergonha da fuga. Não temos exemplo mais extremo entre os Dórios, mas em Tebas: o batalhão sagrado composto de 150 duplas de homosexuais, coisa desconhecida mesmo em Esparta, combateu heroicamente durante 50 anos em batalhas terríveis da cidade. O batalhão foi exterminado até o último homem em Queronéia (338). Filipe da Macedônia ficou espantado com o espetáculo dos montes de cadáveres empilhados dois a dois”. (16)
Encerrando e à vista da atimia aplicada em acusados de prostituição (não raro sem provas, apenas para afastar concorrentes aos cargos públicos) vale citar Cohen, que segui em boa parte desta palestra, mas agora em outro trabalho. “Como vimos, de um lado os processos por ofensas públicas em Atenas eram informados por idéias sobre o crime, a punição e o domínio da lei, todos familiares aos leitores modernos em sua adesão a noções de julgamentos imparciais dispensados em nome da lei para corrigir e prevenir prejuízos à comunidade como um todo. De outro lado, a incorporação de elementos de auto-ajuda, procedimentos sumários, execução sem inquéritom julgamentos baseados no caráter, riqueza, importância política e privilégios públicos das partes, nos desafia a entender porque a compreensão do crime e castigo na Atenas democrática difere muito da nossa. E difere não porque seu sistema legal era corrupto, primitivo, ou incompetente, mas porque o entendimento ateniense dos conceitos de justiça, democracia, e domínio da lei difere, em importantes pontos, fundamentalmente dos nossos” (17)
Mudando os nomes, a fábula narra a história do Brasil e de sua justiça.
NOTAS
1)“Unconvicted or potential atimoi in Ancient Athens”, pp. 63-78. Além do artigo escrito por Wallace, toda a revista merece acurado exame e reflexão. Cf. Eva Cantarella (ed.), Dike. Rivista di storia del diritto Greco ed ellenistico, vol. I-IV. (Milano,Edizioni Universitarie di Lettere Economia Diritto, 1998-2001).
2)O texto encontra-se, com pequenas diferenças de tradução, em Arnaoutoglou, Ilias: Leis da Grécia Antiga (São Paulo, Ed. Odysseus, 2003), p. 76.
3) Cf. Douglas M. MacDowell: The Law in Classical Athens (Ithaca, Cornell University Press, 1978).
4) The Shape of Athenian Law (Oxford, University Press, 1993) pp. 107-116.
5) Cf. Christopher Carey: Trials from Classical Athens (London/New York, Routledge, 1997), pp. 8,187 e 202, com a citação de Demóstenes, que acusa Neaira.
6) Cf. Knibiehler, Y. e Fouquet, Cath. : La femme et les médecins (Paris, Hachette, 1983), p. 33.
7) Cf. Roberto Romano: “A mulher e a desrazão ocidental” in Lux in Tenebris (Campinas, Ed. Unicamp, 1987), pp. 126-127.
8) Cf. Richard Broxton Onians : The Origins of European Thought. about the Body, the mind, the soul, the world, time and fate. New interpretations of Greek, Roman and kindred evidence also of some basic Jewish and Christian beliefs. (Cambridge, University Press, 1954).
9) Michel Foucault: L´usage des plaisirs (Paris, Gallimard, 1984), pp. 47-62; Dover, Keneth : Greek Homosexuality (London, Duckworth, 1979) pp. 60,81,109.
10) Cf. David Cohen : Law, sexuality and society, the enforcement of morals in classical Athens (Cambridge, University Press, 1994), p. 171.
11) “Esta é a mais bela das constituições; como um agasalho de muitas cores, bordado com muitas cores, assim ela, aparecerá como a mais bela, como uma confusão colorida. É seguramente provável que, a semelhança das crianças e mulheres quando olham objetos multicoloridos, este regime será considerado por muitos como o mais belo de todos” [..kallistê hautê tôn politeiôn einai: hôsper himation poikilon pasin anthesi pepoikilmenon, houtô kai hautê pasin êthesin pepoikilmenê kallistê an phainoito. kai isôs men, ên d' egô, kai tautên, hôsper hoi paides te kai hai gunaikes ta poikila theômenoi, kallistên an polloi krineian]. República, VIII, 556 e. Segundo o Dicionário de G. Liddlel & R. Scott, “poikilos” significa “many-coloured, spotted, mottled, pied, dappled”.
12) David Cohen, op. cit. pp. 175 e ss.
13) Cf. Douglas L. Cairns: Aidós The Psychology and Ethics of Honour and Shame in Ancient Greek Literature (Clarendon Press, 1993).
14) São Paulo, Unesp, 1997.
15) Alba Zaluar: “A Autoridade, o Chefe e o Bandido: Dilemas e Saídas Educacionais”, Unicamp, mimeografado. Os trabalhos da antropóloga, que pesquisa o problema do tráfico nas favelas cariocas, não raro com risco de vida, são recomendáveis quando se trata de analisar a violência no Brasil.
16) Cf. The Western Way of War, infrantry battle in classical Greece, uso a tradução francêsa : Le modele occidental de la guerre (Paris, Les Belles Lettres, 1990), pp. 167-168.
17) “Crime, punishment and the rule of law in Classical Athens” in The Cambridge Companion to Ancient Greek Law. Michel Gagarin e David Cohen (Ed. (Cambridge, University Press2005), pp. 234-235.
domingo, 11 de maio de 2008
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