sexta-feira, 30 de maio de 2008

De Maquiavel a Lenine, via Sartre, Merleau Ponty, Lefort.

Certos analistas indicam que O Príncipe não é novo na sua forma, ele nada mais seria do que o reaproveitamento dos antigos Espelhos do
Príncipe. Os conteúdos também parecem extraídos daqueles manuais, como nos conselhos sobre as novas conquistas, o modo de administrá-las, os auxiliares a serem ouvidos, a diplomacia, etc. (1) O escrito rompe, no entanto, com a tradição medieval, porque nele a metafísica e a teologia são postas em segundo plano, e são substituídas pela tentativa de expor fatos humanos, em especial sob o ângulo histórico. Segundo Max Lerner, “Maquiavel escreveu uma gramática do poder, não apenas para o século 16, mas para as épocas seguintes”. Em todas as suas páginas estão contidos imperativos do governo, todos com a marca realista do poder. O elogio de Spinoza aos “políticos” cabe à forma e ao conteúdo do Príncipe. (2)


Além do Príncipe, que mais serve como instrumento de parolagem mas é pouco lido ou examinado a fundo, Os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio definem o campo no qual é possível captar o pensamento de Maquiavel. Alí, fica bem claro o apreço do autor pela república, o respeito pela massa popular na comunidade política, a necessária unidade dos vários elementos que compõem o poder político, condição de sua permanência estável no tempo. Além disso, Maquiavel salienta a relevância dos legisladores que conduzem o coletivo e lhe garantem coesão mínima e alguma estabilidade. Depois, o uso da força militar com mobilização cidadã, para aumentar mais ainda a firmeza interna da comunidade. Last but not least, a importância da religião como elo dos indivíduos, grupos, massas no interior de um país.

Maquiavel sintetiza a experiência política contemporânea, que não difere essencialmente das ocorridas no pretérito. As realidades por ele descritas mostram que os homens “na política, negócios ou na vida privada, não agem segundo suas proclamações de virtude; os líderes buscam rudemente o poder e o agarram tenazmente; as massas que devem ser coagidas na ditadura são expostas à adulação ou trapaça na democracia; engodo e rudeza existem em todo Estado; enquanto a arte de ser dirigido sempre foi relativamente fácil, a de governar a nós mesmos é monstruosamente difícil”. Lerner resume os dilemas da “ética na política” de modo saboroso: ideais são importantes na vida pública, se forem tidos apenas como normas. Mas considerados sob o aspecto de técnicas para conseguir e conservar o poder, eles são pouco eficientes. O líder bem sucedido opera com matizes do humor coletivo, suspeitas contra as táticas dos adversários, compromissos e concessões. Os profetas da religião aproximam a moral pública dos preceitos éticos. Savonarola, Cromwell, puritanos na Inglaterra ou América, “quando chegam ao poder, aprendem o jogo político”. Tal aprendizado dos religiosos não os conduz à democracia : “os imperialismos mais destruidores do mundo elevaram suas preferências ao pináculo dos imperativos morais e trabalham com plena confiança para impor tais imperativos aos outros”. (3)

Sempre que se fala no Florentino surge a vexata quaestio dos meios e dos fins. “O pressuposto transcendental de toda ciência da cultura” disse um dia Max Weber, “é que somos seres culturais”. O mesmo pode ser afirmado em relação aos valores políticos. Nenhum ser humano vive e pensa de modo puramente objetivo, sem emitir juízos axiológicos. Todos agem e avaliam, no mesmo ato em que pensam com maior ou menor objetividade, se recorrem ou não aos esforços científicos. Um traço da prática política é a disciplina. Esta, só pode ser efetivada com base em valores partilhados. Para que vitórias sejam obtidas, no entanto, instrumentos técnicos e saberes devem ser adquiridos, o que requer procedimentos reiteráveis. Separar valores de sua objetivação impede perceber o núcleo dos atos políticos. O poder moderno exige, em vez da absolutização irracional do carisma, o trabalho disciplinado dos que obedecem como se fossem máquinas. O Príncipe é ininteligível sem a plebe, ambos se instalam em polos contrários da política moderna. Desde os condottieri italianos, o domínio do tempo e do espaço sociais cabe aos que sabem controlar a fortuna e a necessidade.

Maquiavel distingue o reino do que deve ser do que é, rejeita o o primeiro pelo segundo. “Mas existe um terceiro : o do que pode ser (...) a medida de um homem é sua habilidade para expandir a esfera da sociabilidade possível”. (4) A busca incessante nos Dircorsi, é o modo de manter o coletivo coeso, com o máximo de liberdade possível para os indivíduos e grupos. É preciso, no entanto, notar em que sentido os dois elementos podem ser mantidos ao mesmo tempo.

Um autor que marca a interpretação de Maquiavel, no trato entre os integrantes do corpo estatal e a segurança deste último, é Friedrich Meinecke. No seu entender, o politeísmo e uma visão secularizada dos valores definiam a política na antigüidade. A polis seria o elemento de valor mais elevado para todos os indivíduos e grupos. Coincidindo a ética dos átomos sociais e a do todo, não existiriam conflitos entre a política e a norma ética. Não existiria religião universal para restringir o exercício do Estado, pois a religião da cidade tenderia a favorecer o mando, com a glorificação do heroísmo. Com o declínio da polis, a competição sem peias entre individualidades a dissolve. O retrato de semelhante corrosão pode ser visto em Calicles ou no Gorgias platônicos. No caso da raison d’ État o seu exercício só poderia ser percebido em indivíduos poderosos no interior da sociedade, jamais como algo acima dela, como essencial à persona do Estado. A razão pertence ao vencedor da luta política, não é algo que planaria acima de todos, vitoriosos ou derrotados.

Segundo Meinecke, Santo Agostinho fornece a chave derradeira da antiga forma de razão estatal, quando afirma : Remota justitia quid sunt regna nisi magna latrocinia. O cristianismo edifica uma percepção da moralidade universal, a ser obedecida inclusive pelo Estado, o que dissolve os valores seculares, como o heroísmo. Na Idade Média, a jurisprudência germânica somada à ética cristã, rebaixam o Estado. Este último existe na época, mas não tem a supremacia. A política e a razão de Estado foram ignoradas na Idade Média.

No outono da Idade Média o Estado retoma forças e passa, com muitas dificuldades, à supremacia. A luta entre Igreja a papado acentua o poder de grandes governantes. Nomes como Frederico 2º e Filipe 4º abrem a lista dos poderosos contrários ao poder do Sumo Pontífice. O imperador Carlos 4º na Alemanha e o rei Luís 11º na França dão exemplos de uma arte racional e inescrupulosa de governar, cuja base era a sua pessoa. A própria Igreja, com a concentração do mando nas mãos do Papa, a suas formas administrativas e finanças, serve de modelo para o Estado nacional. Mas se aprofunda o conflito entre razão de Estado, num plano, a lei e a ética em outro. A razão estatal é vista como pecado contra a lei e como inimiga dos antigos costumes. Maquiavel rompe com essa atitude e assume o plano secular. Existem críticos, adianta Meinecke, que notam não expressar o Florentino opiniões sobre o real fim do Estado. Erradamente, eles deduzem que ele não refletiu sobre o assunto. Mas ele não fez outra coisa em toda a sua existência, que surge na confluência entre o colapso da política com o renascimento.

A Itália de sua época, segundo ele mesmo diz no Príncipe (capítulo 20) vivia uma realidade de certo modo bilanciata definida por cinco Estados, cada um deles contido em seus limites pelos demais: Nápoles, os Estados pontifícios, Florença, Milão e Veneza. Para manter o equilíbrio da balança, o princípio é o divide et impera. As invasões espanhola e francesa após 1494, o declínio de Milão e Nápoles, as mudanças no governo de Florença, permitem a visão da política assumida por Maquiavel. Secretário da república até 1512, ele aprende as técnicas usadas pelas cidades estado, e recolhe as pedras essenciais para a edificação do seu pensamento. Mas é depois de 1512, com a derrota de seu partido e a subida dos Medicis, ele precisa buscar favores com os vitoriosos e deve refletir mais acuradamente sobre a diferença entre república e monarquia, e sobre a missão nova da última. Após 1513, ele escreve os Discorsi e o Príncipe.

O primeiro elemento importante em suas reflexões é a sua atitude diante da religião (Discorsi, II, 2). O cristianismo transforma os italianos em pessoas humildes, efeminadas, fracas. Este juízo contrasta com a sua percepção da antigüidade, na qual domina o glorioso heroísmo, síntese de grandezza dell'animo e fortezza del corpo. Ele rompe com a visão dualista do cristianismo, que deprecia os sentidos e impulsos mundanos. Os valores se concentram, para Maquiavel, na palavra virtù, conceito polifacetado que reúne aspectos éticos e naturais, coragem para efetivar atos heróicos, entre eles o de manter unido um Estado, preservar a sua existência, em especial quando se trata de repúblicas. Porque na Roma republicana, ele pensa, reside o grande seminário da virtude, a qual se divide em duas: a natural e a política e ambas concorrem para manter o Estado. A virtude pode vir de baixo, do povo, nas repúblicas, ou de cima, da nobreza, na monarquia. Existe uma ligação entre as duas virtudes e, portanto, entre monarquia e república. É assim que Meinecke explica a suposta inconsistência de Maquiavel em Florença. Ele escreve o Príncipe, é verdade, mas logo a seguir redige os Discorsi, os dois lados não são antitéticos para ele.

O pensador mantêm as distinções entre bem e mal. Quando defende ações consideradas más pela moral cristã, nunca deixa de negar que elas recebem tal qualificativo na ética dominante. No capítulo 8 do Príncipe ele escreve, ao comentar o personagem Agatocles, que matar outro cidadão, trair amigos, ser desleal ou impiedoso constituem ações que não merecem o título de virtuosas, trazem domínio mas não glória. No entanto, em Agatocles, que age de tal modo, é indicado como alguém que possui grandezza dell'animo, grande virtude de um governante. Virtù é a fonte vital do Estado, do vivere politico. O maior choque sofrido pelos que analisam os escritos de Maquiavel ocorre na contradição entre virtù e moral cristã. Esta contradição, ele nunca eliminou. Virtù é ferocidade (ferocia), força natural desregrada, que deve ser conduzida ao plano de virtù ordinata, submetida à razão que favorece governantes e cidadãos. A virtù ordinata compreende a religião como instrumento que ajuda a manter o Estado (Discorsi, I, 11 e 12). (5) Religião, leis, assuntos militares são os fundamentos do Estado. Daí o ceticismo irreligioso que ele recomenda aos dirigentes, por saber que mesmo crenças baseadas em erros devem ser apoiadas para a manutenção do Estado.

Os termos complementares, Fortuna e Virtù (Príncipe, capítulo 25) devem ser captados pelos que desejam garantir a vida política. Deixar-se conduzir por uma suposta ação secreta da Fortuna (e quantas “mãos invisíveis” conhece o mundo político e social desde Maquiavel...) é falta de virtù. É possível edificar canais e barreiras contra a Fortuna, assegurar limites ao seu desenvolvimento. Só a metade de nossos atos são governados por ela, o resto depende de nós. “Onde os homens têm pouca virtude, a fortuna mostra o bastante a sua potência; e, porque ela é mutável, mudam as repúblicas e os próprios Estados; e mudam sempre, até que surja um amador da antigüidade que regule a Fortuna de tal modo que não seja preciso mostrar, a todo giro do Sol, o quanto ela é poderosa”. (6) A Fortuna deve ser vencida com muita dissimulação e cálculo, pois cada ocasião na vida exige um método para tratar com os obstáculos. Os homens integram a natureza e age segundo os ditames naturais.

O termo Fortuna ocasiona muitas análises, no mínimo estranhas, sobre o pensamento do escritor. Fortuna personifica o caprichoso e fluido, não raro funesto mas também favorável, na vida individual e coletiva. Sem regra aparente, ela concede sucesso ou fracasso. (7) Fortuna se diferencia de Fatum, pois este último exprime uma lei diante da qual a mente se dobra. A Fortuna, quase sempre, é uma derrogação do Fatum, o que desafia a razão e pode causar revolta moral. A palavra latina traduz a grega Tiché, não existente em Homero e que surge no Hino a Demeter e na Teogonia. Em Tucídides, autor conhecido por Maquiavel, Tiché personifica a sorte de uma cidade ou povo (8) . “Depois de percorrer todo o mundo, Tiché corta suas asas e fixa residência no Capitólio”, diz Plutarco no tratado sobre A Fortuna dos Romanos, o que testemunha a boa sorte daquele povo. Importa para o pensamento político o fato de que Fortuna, personificação mesma do instável, se reúne a divindades outras como a Esperança (Spes) e ela encontra apoio em Fides, a que nunca varia.

Não é com outro fim que Maquiavel, como boa parte de seus contemporâneos, aponta para a Fortuna como um eixo da ordem política, com a Virtù. A fluência dos eventos políticos deve ser controlada ao máximo, para que exista alguma estabilidade na ordem pública. Nesta última (e agora volto a Meinecke) cada inimigo aprende a usar as armas que se voltam contra eles. A Virtù deve fazer com que a Fortuna, maliciosa, opere em favor deste ou daquele dentre os contendores. Os métodos usados pelo inimigo, mesmo que eles sejam sujos, caso mostrem eficácia, não podem ser ignorados. Toda arma pode ser dirigida, com maior ou menor maestria, pelos contendores políticos.

A Fortuna se diferencia do Fatum, a necessidade. Como a virtù pode ser ordinata, também a necessidade pode ser ordinata dalle leggi (Discorsi, I, 1). Mas para isso é preciso seguir a verdade das coisas, em vez da pintura que dela as pessoas se fazem. O indivíduo que deseja fazer apenas o bem, cai uma hora ou outra sob o domínio dos perversos. É preciso conhecer, portanto, o que não é bom e o que não é o bem. Esta é a lei da necessità. A mesma força que impele os principes de refrear o bem, em determinadas circunstâncias, também os leva a usar o que é bom. A necessidade salva e arruina. A pátria deve ser salva, mesmo com ignomínia: “quando se trata de salvar a pátria, não se deve deter um só átimo para considerar se algo é legal ou ilegal, gentil ou cruel, elogiavel ou vergonhoso; mas afastando toda outra consideração, deve-se ir até o fim, se alguém resolve salvar a vida do Estado e preservar sua liberdade”.

“Maquiavelismo”. A palavra significa, grosseiramente, o realismo esperto e de má fé na ordem política, social, religiosa. Ela indica exatamente o que acabamos de ler em Maquiavel: para conseguir a salvação do povo, nada envergonha, a força decide a razão e o bem. Friedrich Meinecke (9) indica o diálogo entre os habitantes da ilha de Melos e os atenienses que os cercavam, como um dos marcos da razão de Estado e, como tal, do maquiavelismo. Pouco importa se o debate, encenado no livro quinto, capítulo 85 e seguintes na Guerra do Peloponeso existiu de fato ou se é invenção do magnífico escritor Tucídides, importa a figura espiritual da política que alí se vislumbra e pode também ser percebida com a máscara de Trasímaco, na sublime peça teatral intitulada A República, redigida por Platão. Fiquemos no episódio de Melos. O encontro entre os invasores e os líderes da ilha é feito, por receio de alarmar os habitantes de Melos, em segredo. Os governantes cercados tinham receio da brutalidade ateniense e de sua língua persuasiva. A democracia de Atenas não existiria sem retórica, demagogia, enganos, maquiavelismo diríamos. Os sitiados dizem claramente que, ao saber da superioridade bélica do seu adversário, este vinha para a conferência não como parte, mas como juiz implacável, porque detêm a força. Os atenienses replicam que os governantes de Melos deveriam, pelo conhecimento de sua fraqueza, tudo fazer para salvar a sua cidade da destruição. Recordemos o dito de Maquiavel: para salvar a pátria, nada é vergonhoso. Os governantes ameaçados, no entanto, tentam usar palavras contra a força. Os atenienses não aceitam a tese de que Melos está com a justiça e a legalidade, por ser apenas uma colônia de Esparta. E os arautos da democracia ateniense dizem que o debate sobre a justiça só existe quando a necessidade é igual para as duas partes.

O termo usado por Tucídides, ananké, significa força, constrangimento, necessidade, inclusive as determinadas pelas forças naturais como Xenofonte (10) como também no sentido de necessidade lógica, como na Metafísica de Aristóteles (1064b33). Trata-se de uma palavra que, ao lado de Fortuna, é das mais usadas por Maquiavel ao longo de seus escritos. Volto a Melos. Os atenienses aconselham os sitiados a se render, pois desse modo eles, atenienses, conseguem lucros e os submissos salvam sua terra. E os atenienses arrematam, após um aguçada troca de palavras, nas quais os vocábulos operam como armas afiadissimas, e dizem que eles vencem devido à necessidade imposta pela natureza (dia pantos hupo phuseôs anankaias), e os deuses dão a vitória sempre ao mais forte, e sempre (es aiei) será assim. (11)

Leis morais nada podem contra a necessidade que se impõe quando se trata de salvar o povo. O lema é seguido por Cícero (12) e por Tácito (13). Micheline Triomphe adianta uma hipótese de trabalho muito sugestiva, quando se trata de analisar os vínculos entre interesse privado e pública, em Hobbes, com as relativas apropriações da lei. A liberdade, diz ela ao tomar o capítulo 21 do Leviatã como ponto de partida exegético, entra numa tensão dialética entre o conceito essencial em Hobbes, o de salus populi, e o enunciado onde se afirma que necessitas legem habet. As duas fórmulas supõem que no estado de natureza multiplicam-se os direitos, mas inexiste o direito. Entre o vazio do primeiro e a plenitude do segundo, ocorre o poder soberano, legibus solutus. A salus populi é a lei maior, a suprema lex da cadeia jurídica, não em ruptura com os elos anteriores, mas como sua condição de possibilidade. Ela valida, legitima, legaliza, as condutas que sem ela seriam indesculpáveis.

Aqui a autora entra no exame de um termo muito usado em Hobbes, a “desculpa”, nela notando o seu forte odor de razão de Estado. Trata-se de transgressão, mas sem culpa, não condenável em direito. Ela opera no plano dos particulares, no seu nexo com o mundo da inimizade. E Triomphe se pergunta se ela não vale também para o mundo dos governantes. No capítulo 27 do Leviatã (“Of crimes, Excuses, and Extenuations”) é posta por duas vezes o fato de uma forte transgressão : “Se um homem, por terror da morte da morte presente, é compelido a fazer algo contra a Lei, ele é totalmente desculpado; porque nenhuma Lei pode obrigar um homem a abandonar sua própria preservação. E supondo-se que tal lei fosse obrigatória; mesmo assim um homem teria razão pois, se não faço, eu morro agora; se faço, morro depois; logo ao fazer isto, há um termo de vida ganho; a natureza compele, portanto, a fazer”. E logo após, ele reforça o argumento: “Se um homem está destituído de alimento, ou outra coisa necessária à sua vida, e não pode preservar a si mesmo de outro modo, mas apenas cometendo algo contra a lei; como numa grande fome ele na qual ele arranca o alimento pela força, ou rouba, o que não pode obter por dinheiro ou caridade; ou em defesa de sua vida, joga longe a espada de um outro homem, ele é totalmente desculpado”. Nos dois casos uma situação extrema de perigo ou necessidade, leva à desculpa, em nome de certo tipo de salus, não de populi, mas de hominis.

Em que consiste a “desculpa”? A extrema necessidade, que não é vista como algo que abole a lei. Esta permanece intocada e intacta, apenas é suspenso no tempo o seu caráter obrigatório, a desculpa opera como algo provisório. Trata-se de uma infração desprovida de falta. Isto não valeria para o soberano e para a sua razão? Se ele tivesse a necessidade imperiosa de agir para salvar o povo, não seria também desculpável? A mesma necessidade que criou a obrigação (para sair da guerra de todos contra todos) também cria o direito de suspender os direitos. O interesse dos particulares é o interesse público e vice-versa.

Essa possibilidade não é nova no pensamento filosófico que se dedica à lei. Em Aristóteles (Ética, livro V, 10), lido por Tomás de Aquino, existe o instituto da epikéia, “uma parte da justiça tomada em sentido geral, porque é um tipo de justiça, como diz o Filósofo. É evidente que epikéia é uma parte subjetiva da justiça: e a justiça é predicada da justiça legal, desde que a justiça legal é sujeita à direção da epikéia. Assim, epikéia é o caminho para uma regulação mais elevada das ações humanas. A epikéia corresponde propriamente à justiça legal, e de um modo é nela contida sob ela, em outro a excede. Porque se a justiça legal denota que ela cumpre a lei, tanto no relativo à letra da lei, ou no relativo à intenção do legislador, que deve ser mais considerada, então a epikéia é a parte mais importante da justiça legal. Mas se a justiça legal denota meramente o que cumpre a lei com respeito à letra, então a epikéia é uma parte, não da justiça legal, mas da justiça em sua acepção mais ampla, e é dividida com e justiça legal, a excedendo. (...) Cabe à epikéia moderar algo, ou seja, a observância da letra da lei. Mas a modéstia, reconhecida como parte da temperança, modera a vida exterior do homem —por exemplo, no seu porte, roupa ou algo assim. Possivelmente o termo epikéia é aplicado no grego como similitude de todos os tipos de moderação”. (14)

Não digo que Hobbes siga Aquino e, muito menos, Aristóteles. Mas o que ele pensa, entra muito bem no campo da epikéia, ato de justiça efetuado para o interesse coletivo e particular, no qual se reconhece a intenção da lei, como norma elevada do que sua letra. (15).A epikéia liga-se à salvação da coisa pública, algo que segue com rapidez para a salus populi, como lei suprema do Estado, nas teorias da raison d´ État. Salus populi suprema lex esto (Cícero, De Legibus, 3.3.8). Decidir sobre o que salva o povo é discriminar o que pode ser útil à coletividade. Tal é a tarefa da justiça, alvo constante de Platão, de Aristóteles e dos escritores do helenismo, sejam eles estóicos ou epicuristas, gregos ou romanos. Segundo Cícero, certamente conhecido pelos autores do Renascimento, a justiça não se mede pela utilidade, nem mesmo por sua “conformidade com leis escritas e costumes nacionais” [obtemperatio scriptis legibus institutisque populorum], pois ninguém que pensa que eles são proveitosos poderia negligenciar as leis. Mas nada é mais louco do que a crença de que tudo é justo no que se encontra nos costumes ou leis dos povos. Seria verdade tal crença, mesmo se elas fossem criadas e postas em prática por tiranos? [Iam vero illud stultissimum, existimare omnia iusta esse, quae sita sint in populorum institutis aut legibus, etiamne si que leges sint tyrannorum?].

Para bem decidir, na salvação do povo, é preciso que os dirigentes e o próprio povo possuam virtude. No De Legibus Cícero adianta que “virtude”, a excelência própria de qualquer um ou de qualquer coisa, “é a razão completamente desenvolvida, e isto é certamente natural; pois tudo o que é honroso também é natural” [est enim virtus perfecta ratio, quod certe in natura est; igitur omnis honestas eodem modo] (DL,1.16.44). (16) Cícero desconfia da razão dos que depositam fé nos costumes e leis dos povos. E se um tirano ditasse tais leis? 17Precisamos discutir um tanto o conceito de lei na Grécia. A significação da palavra νόμος, a lei, tem sido debatido. Ela é um outro nome para costume. Herodoto opera com o termo νόμος e νομίζειν. “o rei Dario durante seu governo perguntou aos gregos presentes em sua corte por qual soma de dinheiro eles concordariam em comer seus pais na morte. Eles replicaram que não fariam aquilo por nada. Dario, interroga os membros de um tribo indiana e lhes pergunta, na frente dos gregos, o quanto eles aceitariam para consumir seus pais no fogo. Eles gritaram horrorizados com a simples menção da coisa. As duas práticas são estabelecidas por nomos (νενόμισται) julgo que Pindaro estava certo quando no seu poema disse que o Nomos é rei de tudo”. A noção de lei era muito próxima à de costume. Em Hesíodo δίκη é o jeito pelo qual as coisas ocorrem e, portanto, o modo correto de fazê-las. Nomoi são as coisas que são e foram feitas habitualmente ( ενόμισται) e assim, feitas corretamente. Mas Heródoto escreve em tempos difíceis , de confronto com os persas, nas guerras, o que se liga ao ceticismo diante da lei escrita. Os gregos da liberação saúdam o Nomos como sua Carta de alforria, que os torna livres do governo arbitrário de um déspota . A nova geração começa a enxergar que o Nomos pode, ele próprio, ser tirano —uma série de costumes e convenções impostos aos homens que nem sempre concordam com eles. A idéia do νόμος como força liberadora se atenua quando a liberação é conquistada e o que era visto como salvaguarda de liberdade passa a ser visto como o oposto da liberdade. Surge o problema grave da política e da filosofia: como conciliar liberdade e lei? (18)

Segundo Marcello Gigante (19) antes dos textos hipocráticos a distinção entre natureza e nomos não se estabelecera. Os dois conceitos são autônomos. A physis liga-se à investigação natural (ser e devir) como em Parmênides ou Demócrito. Nomos pertence ao plano humano, definindo a ordem que deve imperar na sociedade, o costume. E Nomos, de Hesíodo a Píndaro, passando por Sólon (o legislador democrático) é uma norma divina de justiça. Há conexão entre nomos e physis. Nomos basileus é lei que preside homens e deuses. Gigante acentua uma idéia estratégica, segundo a qual o governante é a lei incorporada, nomos empsuchos. Para Ilaria Ramelli (20) Platão, ao recusar o relativismo sofístico na vida pública, funda a lei positiva na ética, que se baseia na metafísica. Como o sensível imita o inteligível, a lei positiva imitaria a natural. Ramelli se fundamenta na Carta Sétima (354e) onde pode ser lido que Deus é lei para o sábio. Como a lei é fundada na razão, o governante deve educar os dirigidos, não forçá-los. Dois problemas: como falar em “lei natural” em Platão, se antes do Demiurgo (leia-se o Timeu) não existe sequer natureza ordenada e esta recebe sua estrutura e ordem do trabalho técnico do referido demiurgo? Não forçar os governados é de fato uma tese platônica. Mas para os dirigir é preciso a mentira, o mito, etc. Questões difíceis que não podem ser descartadas a priori. Mas como, retomemos, conciliar a liberdade e a lei?

Maquiavel enfrenta o problema, sempre ao salientar o papel essencial das leis na ordem humana. Nos Discorsi, logo no início, ele afirma que “a lei civil é apenas a coleção das decisões, feitas por juristas antigos, as quais os juristas de hoje tabularam de modo ordenado para nossa instrução (Discorsi, I) (21. Em outra passagem ele afirma que “todos os escritores da vida civil [vivere civile] indicaram que ao constituir e legislar para uma república é preciso supor que todos os homens são péssimos (...) e que os homens só fazem o vem quando a necessidade os dirige para ele. Fala-se também que a fome e a pobreza torna os homens industriosos e as leis os torna bons”. (22) Ele considera a vida civil com base no governo das leis o mais elevado bem. A correta política se baseia na igualdade diante da lei (aequum ius) e acesso igual aos cargos com fundamento na virtude (aequa libertas). (23) O governante deve respeitar a lei, o melhor meio para assegurar o poder. O pressuposto, no entanto, encontra-se na existência do Estado como domínio, uma estrutura política com a prerrogativa jurisdicional sobre um povo e seu território.

Maquiavel trato de Estado em sentido próprio? As interpretações divergem. Viroli cita Fredi Chiapelli, segundo qual em O Príncipe a palavra “stato” denota a organização política de um povo sobre territórios, independente da forma de governo ou regime. Assim, Maquiavel seria um moderno em termos políticos. (24) Outros pensam que o Príncipe não tem o conceito de Estado como corpo abstrato que transcende os indivíduos que o compõem ou dirigem. (25)

Força ou lei? A disjuntiva pode ser mantida sem danos para a manutenção do Estado? “Deveis portanto saber como são os dois modos de combate: um com as leis (26) outro com a força. O primeiro é próprio do homem, o segundo das feras. Mas porque não basta, em muitas vezes, o primeiro não bastam convêm recorrer ao segundo. Logo, a um príncipe é necessário saber bem usar a fera e o homem. Esta parte é ensinada veladamente pelos escritores antigos, os quais escrevem como Aquiles, e muitos outros dentre os príncipes antigos, foram nutridos pelo centauro Quiron e sob a custódia de sua disciplina. Tal coisa nada mais quer dizer que eles tiveram como preceptor meia fera e meio homem, e que o príncipe deve saber usar uma natureza e outra; e sem uma delas seu poder não dura”. (27)

Nas linhas citadas pode-se constatar que Maquiavel recusa a antropologia política de Cicero. Este último escreve que, para garantir a autoridade política “de todos os motivos, nenhum é melhor adaptado para assegurar influência e mantê-la do que o amor; nada mais estranho ao fim referido que o medo”. E recomenda. “seja assumida tal prática, que apela para o apoio de todos os corações e não só para a segurança mas também para a influência e poder —banir o medo e inclinar ao amor. Assim conseguimos maior sucesso na vida privada e pública”. (28) Segundo Maquiavel, ao contrário do que afirma Cicero, os homens são “ingratos, volúveis, simuladores e dissimuladores, fogem do perigo, ávidos de ganho. Enquanto conseguires benefícios em seu favor , são devotos à tua pessoa, verteriam sangue em teu favor; ofereceriam suas propriedades, vidas, filhos (...) quando a necessidade os obriga. Mas quando estás em apuros, eles mudam”. Assim é mais prudente ao principe ser temido do que amado, se as duas coisas não podem existir ao mesmo tempo. “Os homens têm menor hesitação em ofender ou prejudicar um principe amável do quem um temível”.(29) Segundo Cicero “nenhuma crueldade pode ser útil, pois a crueldade é o que mais repugna a natureza humana, cujo caminho devemos seguir”. O contrário diz Maquiavel no capítulo 8 de O Príncipe. “Bem usada (a crueldade, RR) pode ser dita a que (se é lícito falar bem do mal) se comete numa só vez , porque necessária para se garantir o poder e depois nela não se insiste, mas transformada em medidas benéficas, tanto quanto possível, para os governados”.

Autores como Leo Strauss denunciam em Maquiavel algo já muito debatido, do século dezesseis ao dezoito, a passagem pelo mal. (30) Outros analistas afirmam que o pensamento de Maquiavel é uma ilusão, porque está sob o poder do mal. Como o mal, em termos metafísicos, não tem poder como causa do ser, o mal não tem poder sobre ações decisivas. “Como regra, maquiavelismo e injustiça política, se têm sucesso imediato, conduz os Estados e nações para a desgraça ou catástrofe em longo prazo (...) Se algum dia o maquiavelismo triunfar sobre a humanidade, só irá ocorrer porque todos os tipos de iniqüidade, fraqueza moral e adesão ao mal, ao operar numa civilização que degenera, a corrompeu previamente, ao preparar escravos prontos para homens sem lei”. (31) Outros analistas tomam a via oposta. Luigi Russo afirma que “a descoberta científica mais importante de Maquiavel seria a necessidade do mal. Semelhante princípio passou para todo o pensamento posterior. Satanás é necessário à história deste mundo e o altar à divindade maléfica (...) tem sua razão de ser.”

Claude Lefort foi aluno de Merleau - Ponty e, por indicação do último, escreveu para a revista Les Temps Modernes. (32) Na revista, seus textos críticos eram assumidos com hesitações pelo editor maior, Sartre, conhecido pela sua alternância entre a crítica e a defesa do comunismo. Lefort editou o livro póstumo de Merleau - Ponty, Le visible et l´ invisible e também La prose du monde. A presença do mestre é evidente nos primeiros escritos de Lefort, publicados mais tarde no livro Les formes de l' histoire (1978). Também foi importante nos trabalhos lefortianos a preocupação de Ponty pela pintura e letras, que aparecem em Sur une colonne absente (1978), cujo subtítulo é o seguinte : Écrits autour de Merleau - Ponty. Mas se existe presença, ela é transfigurada pela temática política de Lefort. Este usa a fenomenologia, mas para o seus próprios intentos. No entanto, foi Merleau - Ponty quem indicou a Lefort a leitura de Trotsky. Lefort tornou-se um militante da Quarta Internacional. Lefort criou, em companhia de Cornelius Castoriadis, uma fração na Quarta, chamada Socialisme ou Barbarie .

O núcleo do agrupamento, em termos de teoria, era a crítica à burocratização da política operária, tanto em plano mundial quanto na França. A idéia central era recusar a ortodoxia marxista com base em Marx e na idéia de autonomia do proletariado, motor da revolução. Por não aceitar que o Partido pode dizer o que é certo ou errado (o históricamente necessário) levou Lefort à crítica de Trotsky, sobretudo a defesa trotskysta da URRS, apesar de Stalin. Depois das denúncias, feitas por Krushchov em 1956, durante o 20º Congresso do Partido da URSSS, Lefort escreve o “Stalinismo sem Stalin”, onde mostrava que as mudanças propostas apenas modificavam e não transformavam em profundidade a dominação stalinista, cujas raízes se encontram em 1917. Lefort faz tal análise com o uso de metodologia marxista. mostra que a ruptura do partido seguiu o rumo de constituir uma forma original de exploração de classe. Após as greves e protestos dos trabalhadores poloneses, também em 1956, ocorreram modificações na liderança partidária alí, a Revolução húngara, no mês seguinte, confirma a hipótese de uma classe operária autônoma. Lefort ainda pode pensar sua teoria como revolucionária porque ela estaria de acordo com os interesses e ações do proletariado que inaugura aquelas ações radicais. Ele explica a burocracia como uma nova classe dominante na URSS, com uso de categorias marxistas. Mas deixava em aberto a cegueira da classe operária e dos intelectuais no ocidente ao fenômeno. Porque seguiam o Partido, se nada os obrigava a tal atitude?

A resposta levou Lefort para longe da crença de que o proletariado tinha uma vocação revolucionária. Em primeiro lugar, ele criticara virulentamente o artigo de Sartre, “Le communistes et la paix”, de 1952. Lefort mostra que Sartre não compreendeu corretamente a idéia de revolução proletária em Marx, e chama sua réplica com o seguinte título : “Da resposta à pergunta”, ainda mais demolidora. O problema não era filológico, embora Lefort se mostrasse superior a Sartre na leitura de Marx. Sartre não veria que a questão era filosófica. Lefort critica o “método dos intelectuais progressistas”. Como o Partido, que reivindica conhecer o melhor para o proletariado, os auto-denominados progressistas achavam que tal era a sua tarefa, quando os operários poloneses e húngaros afirmaram sua autonomia em 1956, para explicar a “necessária” repressão dos mesmos operários como fruto da história mundial, baseada na necessidade das quais a classe operária deveria ser consciente. É como se os intelectuais (e antes o Partido) fossem a boca da História, em vez de serem a voz crítica contra a injustiça e a opressão. O apelo à necessidade histórica faz com que os intelectuais progressistas não reconheçam as novidades surgidas no próprio campo histórico. Dez anos passam e após maio de 1968 Lefort publica no Le Monde um artigo com e reafirma a crítica contra a “ressurreição de Trotsky” (33)
Lefort partia da auto-organização proletária porque acreditava ainda na revolução. O stalinismo serve, neste momento, para ensinar ao proletários a confiar apenas em si mesmos. Mas ele vai mais adiante. No seu entender os próprios reunidos no grupo Socialisme ou Barbarie erravam ao proclamar o seu conhecimento do que seria melhor para os outros. Ele deixa o movimento em 1958, com um artigo “Organisation et Parti” (34) Mais tarde, em “O que é burocracia?” ele afirma que a crença na auto-organização era baseada na certeza ilusória de uma transparência perfeita entre motivos e ação, bem como numa racionalidade completa. Resta analisar a política na sua espessura, opacidade não passível de interpretações a priori. É o que foi empreendido em Le travail de l ´oeuvre: Machiavel (1972).

Lefort analisa em primeiro lugar o nome e as representações de Maquiavel, e depois retoma oito tipos de interpretação sobre o maquiavelismo. Todas são insuficientes porque pretendem saber o que Maquiavel realmente afirma, imagina, ou deve ter afirmado. O trabalho da obra resulta de sua indeterminação (o que não significa arbitrariedade). Os escritos de Maquiavel iluminam justo porque não são unívocos. Unívocas são as doutrinas dos que mandaram no Partido, na URSS, ou nas pequenas seitas “revolucionárias” ligadas ao “marxismo leninismo trotskysmo”. Tal maneira de pensar conduz Lefort a publicar Un homme en trop (1976) um texto sobre um texto sobre o Arquipélo Gulag de Soljenitsyne. O homem em demasia, a que se refere o título, refere-se ao zek preso nos campos de concentração, a ser exilado de uma sociedade que deseja ser transparente a si mesma, ou para os seus dirigentes, eliminando os parasitas sob o comando do Egocrata que supõe possuir a visão da necessidade histórica, ou o poder de a imprimir no real.

Ao evocar a violência totalitária Claude Lefort comenta a simbiose que ocorre em sua gênese histórica: a máquina do partido —entidade impessoal e fria— une-se ao Líder carismático —encarregado de manter os vínculos orgânicos do fabuloso corpo social— e forma um bloco político duro como a rocha. O Partido vive pelo Chefe, todo instrumento precisa receber sua alma. Artificialismo burocrático e culto da personalidade correspondem-se no ícone do Egocrata. Stalin, Kim Il Sung, Mao, Fidel, Enver Hodja…a lista dos unificadores sociais é longa. “A instituição do totalitarismo implica o fantasma de uma sociedade sem divisão, una. Ele só aparece pela incessante produção-eliminação dos homens incômodos, parasitas, dejetos, nocivos. Mas o Um, quem o enuncia? E este resto, quem o elimina? É preciso um Outro, um Grande Operador. Inútil perguntar se a sua personalidade é o produto do culto ou vice-versa; ambos se constituem simultaneamente: são fenômenos sociais” (Lefort). E mais :no totalitarismo ocorre a “dissolução efetiva (ou melhor, efetivamente procurada) de todos os modos autônomos de socialização, sob a ação do poder de Estado.”. Na vida totalitária o poder só se torna invisível “com a contradição de tornar onipresente”. No sistema totalitário os intelectuais deixam exibir “o grande saber do Partido, mostram-se cada um deles como o seu reflexo; como bem diz Soljenitsyn, este saber os atravessa como se eles fossem um ser de cristal, eles são belos pensamentos”.

Mas não é preciso viver no mundo totalitário “real” para servir como espelho do Partido e de sua ciência. Filósofos como Merleau Ponty, que viviam na França, assumiram essa tarefa abjeta. Em Humanisme et Terreur (35) ele apresentou críticas a Trotsky e recorda Maquiavel em vários trechos. Desde o início de suas considerações o filósofo opõe o ser ao aparecer na vida política. As democracia liberais parecem adeptas da paz, da lei, da justiça. Mas elas são guerreiras, colonialistas, violentas. Marx teria fornecido a receita para se desmascarar as formas liberais, quando se recusou a entender os regimes que se proclamam adeptos do liberalismo pelo que redigem suas Constituições. A conclusão marxista, aparentemente assumida por Merleau Ponty, é a seguinte : “um regime nominalmente liberal pode ser realmente opressivo. Um regime que assume sua violência poderia guardar mais humanidade verdadeira”. Fica a suspeita: o que poderia ser um regime violento (com polícia secreta, torturas e banimento de opositores, campos de concentração, assassinatos feitos por razão de Estado) humano e mais, verdadeiramente humano ? Não raro é preciso aceitar o sentimento negativo de comentadores, sobre a honorabilidade muito duvidosa de livros como o publicado por Merleau Ponty em 1947. (36)

O liberalismo significaria mistificação. Se ele é assim, como compreender o comunismo sem abandonar as lentes distorcidas das formas liberais? A técnica de leitura só pode ser encontrada na hermenêutica. Urge buscar as razões do comunismo fora das ideologias suas inimigas. O melhor é descrever a consciência dos próprios comunistas para captar a lógica de sua violência. O primeiro ensaio de Humanisme et Terreur analisa a denúncia de Arthur Koestler no livro O Zero e o Infinito (Darkness at Noon) (37) Para compreender o comunismo, tal como ele se efetivou sob Stalin, é importante seguir os que, no mesmo campo, se levantaram contra o Partido, é preciso compreender Bukarine, analisar o seu caso com o método fenomenológico. Trata-se então de estabelecer o essencial, sem a jaula dos acontecimentos históricos ou das intenções subjetivas dos agentes. Bukarine, diz Merleau Ponty, deve ser estudado como Koestler faz com o personagem militante de seu romance, Victor Salmanovitch Rubachev. Este homem imaginado por Arthur Koestler com os materiais das personalidades efetivas de Nicolau Bukarine, Karl Radek, Ivan Smirnov,é preso e convidado a confessar suposta traição com potências estrangeiras e de tentar o assassinato do número 1 do regime Durante sua prisão, ele é conduzido a pensar em si mesmo, na sua subjetividade tolhida pelo partido.

Rubachov era um comunista exemplar e, como tal, ajudara a fazer expurgos, definir obrigações dos militantes, cumpria ordens como ninguém. Mas se dispõe a lutar contra a ditadura que ele mesmo ajudou a instaurar. Pede a repressão que um amigo seu, Ivanov, dobre o seu intento. A técnica de usar um amigo para convencer prisioneiros foi conhecida por Koestler a partir de casos reais. Entre outros, o de Serguei Mratchkovsky em 1936, quando ocorreu o processo contra os trotskystas e os supostos adeptos de Zinoviev. Preso, Mratchkovsky resistiu 90 dias de interrogatório. Depois de três dias em conversa com Sloutsky que o admirava e servira sob suas ordens na guerra civil contra os brancos, ele capitula e confessa “para o bem do partido”. (38)
O caso Bukarine, escreve Merleau Ponty, joga luz plena na teoria de na prática da violência comunista, exercida por Bukarine sobre si mesmo, o que leva à sua própria condenação. É preciso, repete Ponty, de ver Bukarine não com os olhos dos outros, mas com os seus, com a sua consciência. O filósofo julga insuficiente a explicação narrada em O Zero e o Infinito. Rubachev é contra o partido porque não suporta a nova política da agremiação, a sua disciplina desumana. A revolta de Rubachev é moral. Como a sua moral foi a de sempre obedecer o partido, ele capitula sem restrições. A defesa de Bukarine nos processos de Moscou, no entanto, desce mais fundo do que propõe a alternativa entre moral e disciplina.

Do início ao fim do processo Bukarine é alguém que não defende a honra pessoal, mas a revolucionária. Ele recusa a acusação de espionagem e sabotagem contra o Estado. Se capitula, não é por disciplina mas porque reconhece uma ambigüidade em sua conduta política, o que o condena. Ser contra o partido em instantes graves é enfraquecê-lo objetivamente, debilitar a revolução, destruir ganhos reais ou imaginários de 1917. Merleau Ponty deseja “compreender” Bukarine, o sentido de suas ações. Mas tal sentido depende, como no caso de todo ser humano, de uma conjuntura não inteiramente passível de ser conhecida. Em crise, quando o chão afunda, “a liberdade de cada um ameaça mortalmente a dos outros, a violência reaparece”.

A violência comunista não pode ser compreendida segundo a optica liberal, afirma Merleau Ponty. É possível perguntar ao filósofo: “ e porque não”? Mas o escritor está mais preocupado em colher o comunista. Pelo menos é a sua desculpa, pois na verdade o que ele faz é justificar as ações dos camaradas, como o fará Sartre em data próxima. Na tarefa de circunscrever a prática comunista, Ponty apresenta duas questões. A primeira pode se enunciar do seguinte modo: a violência no comunismo de 1947 teria o mesmo sentido que lhe reconhecia Lenine, nos inícios da Revolução ? A segunda pergunta tem a forma seguinte : o comunismo é igual às suas intenções igualitárias ?

A resposta do filósofo tem na escrita de Maquiavel o seu ponto de partida. “A astúcia, a mentira, o sangue derramado, a ditadura se justificam se tornam possível o poder do proletariado e nesta medida apenas. Em sua forma, a política marxista é ditatorial e totalitária” (HT, p. XIV). E vem a pergunta obscena de Merleau Ponty. A violência é de quem, dos dirigentes partidários ou das massas ? E a justificativa da pergunta é ainda mais grave, em termos éticos : “Lenine pode insistir sobre a autoridade do partido, a qual guia o proletariado. Sem ela, o mesmo proletariado ficariam no sindicalismo e não iria à ação política. Ele atribui muito ao instinto das massas, pelo menos desde que o aparelho capitalista tenha sido quebrado. Ele chega a dizer, no início da revolução: ´não existe e não pode existir plano concreto para organizar a vida econômica. Ninguém o poderia fornecer. Só as massas são capazes disso, graças à sua experiência’”. Que Merleau Ponty tenha chegado ao recorte mentiroso acima, é algo a ser entendido em outro lugar. Mas a existência de tais recortes textuais recorda muito a técnica comunista de recortar fotos e eliminar pessoas incômodas ao regime, deixando apenas os sobreviventes na luta pelo poder.

Vejamos. Na época do trecho citado por Merleau Ponty, com pleno conhecimento de causa, Lenine tinha pronta a doutrina, que logo se efetivou na prática, da ditadura proletária. Para ele, as leis fundamentais do marxismo são do mesmo tipo das leis naturais. O marxismo seria uma ciência que apresenta leis necessárias. Não seria preciso, por exemplo, para dar o golpe que instauraria a ditadura proletária, de nenhuma legitimidade popular, institucional ou das massas. A sua preocupação, quando produziu o trecho indicado, era mostrar que a política bolchevista estava de acordo com os princípios (leis...) marxistas. Se tal era o seu fito no plano doutrinário, no prático ele seguiu à risca a teoria.

Em julho de 1918 ele manda fuzilar ou deportar centenas de prostitutas que levam os marinheiros para os bares e antigos oficiais para prevenir uma sublevação em Nijni Novgorod. (39) Em agosto, ele exige a abertura de um campo de concentração para aplicar “o terror de massa” sobre padres, guardas brancos, kulakes. (40). Em dezembro do mesmo ano ele se queixa de Maria Spiridonova, líder dos socialistas revolucionários de esquerda, o que resulta na internação psiquiátrica da mesma pessoa, talvez uma das primeiras da longa lista de internados pelo regime, até a sua falência. (41) Sobretudo, Lenine é o chefe que assimila o civismo e o policialesco : “o bom comunista é também o bom techkista”.(42) E também a elaboração do artigo 58 do Código Penal, que justifica o terror, por Lenine em 1922 (43) E as medidas de sempre em regime despótico: supressão da liberdade de imprensa, de associação, de reunião. “A ditadura é um poder que se apoia diretamente na violência e não é ligada por nenhuma lei. A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder que não é ligado por nenhuma lei”. (44) Finalmente, a ditadura tem o condão de compensar o atraso das forças produtivas russas. Assim o golpe de Estado bolchevique se justifica, não se legitima porque esperar o Congresso dos Sovietes “é uma ilusão constitucional”. (45) Comenta D. Colas : “A maioria do povo seguirá e segue os bolcheviques. Pois o partido cria a legitimidade que lhe convêm, ao transformar o espírito das massas, não pelo discurso mas pela passagem ao ato. ´A resolução inflexível ´do partido modifica o que pensam os indecisos”. (46) Nada de vãs palavras, inscritas nas falas das pessoas ou nas leis. A solução correta e científica, segundo Lenine, encontra-se na força: “seria nossa perda, seria puro formalismo esperar o voto indeciso de 21 de outubro; o povo tem o direito e o dever de decidir tais questões não por votos mas pela força; o povo tem o direito e o dever, nos momentos críticos da revolução, de guiar seus representantes, até os melhores, em lugar de os esperar”. (47)

E, como ainda analisa D. Colas, “o modo de acesso ao poder comanda o seu modo de exercício”. A repressão violenta dos “inimigos” internos se baseia na premissa de que todo e qualquer regime política tem como base a opressão dos vencidos. Em O Estado e a Revolução, a antiga máquina opressiva do Estado burguês é desmantelada pela ditadura proletária. Mas com a instalação ditatorial, o Estado não tende a ser dissolvido, pelo contrário. A culpa? O proletariado está preso nas malhas do atraso feudal, das camadas pequeno burguesas, cuja figura maior é o kulak, vampiro que esfaima as cidades e que é preciso eliminar. (48) Em 1918 ainda, ele responde as críticas dos mencheviques e comunistas de esquerda sobre o seu autoritarismo ditatorial, críticas nas quais recordam César e Napoleão 3º. No texto “As tarefas imediatas do poder dos sovietes” (49) ele mostra que não há incompatibilidade entre ditadura pessoal, mesmo em política, e a natureza do poder soviético. A ditadura pessoal, com frequência, foi na história “a expressão, o veículo, o agente da ditadura das classes revolucionárias”. A ditadura jacobina foi compatível com a democracia burguesa. E chega a negativa do que afirmara O Estado e a Revolução: como não se definem como anarquistas, os soviéticos aceitam os constrangimentos do Estado para ir do capitalismo ao socialismo. Não há, pois, contradição alguma entre a democracia soviética e a ditadura com recurso ao poder pessoal, ditatorial. (50)

A tese sobre a ditadura pessoal se baseia, por sua vez, na premissa do controle volitivo sobre todo e qualquer processo de ação coletiva. A ditadura é uma técnica e organiza o político de maneira eficaz. A ditadura continua, no Estado, o que se efetiva nas fábricas : “é preciso dizer que toda grande indústria mecânica, que constitui justamente a fonte e a base material de produção socialista exige uma unidade rigorosa de vontade, absoluta, que regula o trabalho comum de centenas, de milhares e dezenas de milhares de homens” (51) A fábrica, com sua disciplina centralizadora, é o modelo proposto por Lenine para o partido e para Estado ditatorial. Trata-se do imaginário mecânico que opera no pensamento de Lenine, a todo vapor. (52) Segundo o líder bolchevique, a organização multiplica a força. Ao se organizar e organizar o social, o militante “adquire uma vontade única do milhar, da centena de milhares ou do milhão de militantes de vanguarda, que se torna a vontade da classe”. (53 ) Ainda em O Estado e a Revolução, a ditadura teria por alvo, nos primeiros tempos, fazer da sociedade “um só escritório, uma só fábrica”.Ela deve ser exercitada pelo partido que tem o mesmo fim, o funcionamento de uma usina política. (54)

A organização é tudo. A massa e o proletariado são movidos pelo partido. É o que se diz, mais propriamente: massa de manobra. Não se pode justificar, portanto, a citação truncada de Merleau Ponty, segundo a qual os dirigentes comunistas aprenderiam algo com a massa, devido à “experiência” dessa última. Ponty não poderia deixar de conhecer as posições de Lenine e companheiros. Se as desconhecia, seu livro “Humanismo e Terror” é irresponsável. Se conhecia, ele foi cúmplice. “Sem a organização a classe operária é zero”, afirma Lenine para quem quiser ouvir, inclusive os filósofos da Rive Gauche parisiense. (55) E comenta ainda Colas : “O partido encontra-se assim na posição de um demiurgo em relação à classe”. É natural, para aquele tipo de pensamento a equação seguinte : classe proletária=Partido=poder soviético.(56) Um pequeno problema, indica Colas: que fazer com os operários empíricos, como os contrários ao golpe de outubro, e com os insurgentes de Kronstadt e tantos mais? Como a ditadura não é feita para reunir os inimigos em aliança, mas para os eliminar, a mesma receita vale para os refratários, mesmo se eles pertencem ao proletariado, em nome de quem a ditadura foi instituída. Trata-se de elevar o operário empírico ao conceito, à teoria elaborada por Lenine, o ditador. Se os tipógrafos se erguem contra o “seu” poder, eles devem ser eliminados como...insetos.

E vem o pior, o que une Lenine e os fascismos nas suas campanhas pela “depuração”. No caso do nazismo, tratava-se de depurar a raça branca dos supostos parasitas (judeus, ciganos, homossexuais e outros); no caso de Lenine, trata-se de depurar a classe em si, a empírica, de todos os que a impedem de se tornar “para si”, submetida à disciplina e à liderança dos ditadores, os camaradas dirigentes, e do ditador supremo, ele mesmo. Assim, os tipógrafos que se levantaram contra o partido são ditos, por Lenine, “insetos nocivos” a serem eliminados da Rússia. No texto “Como organizar a emulação?” ele lista todos os piolhos e assemelhados que devem desaparecer : os ricos, os vagabundos, os operários que não se submetem ao partido, os intelectuais histéricos. Todos esses setores são apenas sujeira que deve ser limpa. O meio de fazer tal limpeza encontra-se nos fuzilamentos, nas deportações, nos trabalhos degradantes. A ditadura, finaliza Colas o seu trabalho essencial, deve limpar (cistka) as instituições feudais. A ditadura leninista repousa sobre a destruição do outro, ela pretende possuir o monopólio da verdade. A “legitimação” é fornecida pela força, pelo terror institucionalizado em proveito do partido.

Podemos retornar às falas de Merleau Ponty sobre a violência comunista. O leninismo rompe com a moral universal, a burguesa, em nome da da moral universal proletária. E aqui, diz Merleau Ponty afirma, Maquiavel falha. Nesta moral diferente nem todos os meios são bons. Por exemplo, não se pode usar da astúcia sistemática com o proletariado. Novamente precisamos interromper, estupefatos, a leitura de Humanismo e Terror. Não mesmo? Não se pode usar de astúcia com o proletariado? Mas vejamos o argumento do filósofo. Esconder o jogo verdadeiro do proletariado (em outras palavras, seguir a raison d´ État...) diminuiria a consciência de classe e a vitória proletária fica comprometida. O raciocínio, como dizem os compatriotas de Ponty, é “tiré par les cheveux”. Seria genial, não fosse a má fé do escritor, a imagem que segue o juízo acima. Merleau Ponty usa o símile da música para ilustrar a “impossibilidade” do uso permanente e profundo da astúcia. Ele recorda Rameau e diz que a consciência de classe e o proletariado são a baixa fundamental da política marxista. Ela pode se afastar por modulações, segundo as circunstâncias. Mas a modulação muito ampla ou longa destruiria a tonalidade.

Recordemos: para Rousseau, o som fundamental serve como fundamento do.... acorde ou do tom. Baixa fundamental serve de fundamento para a harmonia. Das quatro partes da música acima das outras, ela é a mais baixa de todas (donde o nome, baixa). É a mais importante das partes, sobre ela se estabelece o corpo da harmonia. Lugar comum entre os artistas : quando a baixa é boa, raramente a harmonia é ruim. E Rousseau expõe então o sistema de Rameau, que julgou ter teorizado a música a partir da baixa fundamental. Em plano oposto, Rousseau, sem desprezar a harmonia, é favorável à melodia. Não apenas Rousseau, mas seus amigos/inimigos da Enciclopédia negam a Rameau a sua postulação, sobretudo quando ele pretende demonstrar o fundamento da música, como se esta fosse a base das matemáticas, das ciências, da moral... D´ Alembert critica Rameau e Diderot faz dela a cabeça de turco para destruir a idéia de razão anterior ao pensamento das Luzes. O Sobrinho de Rameau mostra que os indivíduos humanos são desiguais e iguais ao mesmo tempo. (57) O ponto mais grave é a crítica de Rousseau, em se tratando de música: se esta “só pinta pela melodia, e dela tira toda sua força, segue-se que toda música que não canta, por mais harmoniosa que ela seja, não é música imitativa e não pode emocionar nem pintar com belos acordes, logo cansa os ouvidos e deixa o coração frio...”. (58) Em tal sentido, e só nele, haveria um nexo entre a baixa fundamental e o operariado. Este último, cansado da “harmonia” imposta pelo partido, logo se cansa e ganha um coração frio diante da revolução. Mas não nos enganemos: os campos de concentração, as prisões, os fuzilamentos, a tortura, logo colocarão seus ouvidos no compasso da música que emana do Kremlin. Fica apenas o tom desafinado das justificativas produzidas por Merleau Ponty para ajustar sua consciência à ordem (ou pauta?) do dia.

Como o argumento musical não funciona (e Ponty não é um energúmeno diretamente a serviço do partido, percebe a enormidade cometida) o texto de Humanismo e Terror indica que, ao contrário da sinfonia proletária, ocorre de fato na orquestra do maestro Lenine (e dos que o sucederam) a imobilização que originou a “renúncia” à liberdade revolucionária do proletariado, nos sovietes e no partido. Com o fato, deu-se também a renúncia à “apropriação humana do Estado”. E como isso foi efetivado? De maneira muito polida : Lenine “convidou gentilmente” diz Ponty, intelectuais como Gorki ao exílio...Apenas ao exílio...na soma do filósofo falta muita coisa.
O fantasma do liberalismo persegue Merleau Ponty. Como criticar a violência comunista, sem cair nos engodos liberais? “Não temos o direito de defender os valores de liberdade e consciência se não estivermos seguros ao fazê-lo, de que servimos os interesses de um imperialismo e nos associar às suas mistificações”. Numa penada, o escritor paga o lip service ao anti- imperialismo à serviço da URSS (estamos em 1947...), ataca o pensamento liberal e o confunde com a política de uma grande potência, sem maiores cuidados hermenêuticos. Se os liberais que defendem os EUA têm seus defeitos, de outro lado os comunistas “não consentem no diálogo, a não ser que os outros sejam mudos”, diz Ponty. “Na ordem cultural eles exigem que os intelectuais não comunistas sejam ou adversários ou ´inocentes úteis´. Quando pensam defender ´a causa´, sentem-se no direito de atacar a moral dos adversários. Os intelectuais comunistas não participam de ações comuns das quais não tenham a direção”. Eles defendem a URSS e atacam quem diga que nela, ou nos satélites, as coisas vão mal. Quando atacado, o comunista no Ocidente sente-se e se proclama “caluniado”. Mas que se lembre : a “nossa moral” é diferente da moral “deles”, os burgueses. Ora, acrescenta Ponty, o homem público não pode se queixar, porque se propõe a dirigir a vida dos outros. E não pode se lamentar também se a sua imagem é inexata, segundo o seu próprio juízo. Como Diderot dizia do artista no palco, é preciso que o homem público seja frio, domine as emoções. O ator “quente” rápido se cansa e deixa de convencer o público. O ato político, por si mesmo, é impuro porque é ato de um sobre o outro e ato de muitos. Nenhum político pode dizer que é inocente. Governar é prever. O político não pode se desculpar com o imprevisto. Ora, existe o imprevisível, eis a tragédia. Uma pitada de Maquiavel, com o Fatum e a fortuna, permitem a Merleau Ponty resolver o problema do plano “científico” comunista, na verdade a ditadura, e o movimento ondulatório das massas, do proletariado “em si” que se recusa a se elevar ao “para si” do Partido.

Não existe ciência do futuro, diz nosso autor. Os que seguem o partido podem ter muita virtù mas também podem ter muito apego à URSS, muito sadismo policial, inveja, servilismo diante do poder, alegria miserável de ser forte. Sempre se diz que a política é a arte do possível. O que não suprime a iniciativa das pessoas: como não sabemos o futuro, nos resta, após tudo bem pesado, empurrar o não conhecido para a nossa parte. Merleau Ponty então discute, com as lentes de Raymond Aron, as posições de Max Weber. Entre a moral da responsabilidade que julga não segundo os intentos, mas de acordo com a consequência dos atos, e a moral da “fé” ou da consciência, que põe o bem no respeito incondicional dos valores, quaisquer que sejam as consequências, Weber recusa escolher, sacrificar a moral da fé, pois não é Maquiavel. Mas também recusa sacrificar o resultado, pois sem ele o ato perde todo sentido. Há politeísmo de valores. Weber critica o realismo político mas também critica a moral da fé. A moral só pode ser o imperativo categórico ou o Sermão da Montanha. Tratar o semelhante, no entanto, como um fim e não como um meio é comando rigorosamente inaplicável em toda política concreta. Por definição, a política combina os meios e calcula as consequências. Dar a outra face é falta de dignidade se não for o ato de um santo. E santos não têm lugar na política. Esta é por essência imoral. Ela exige “um pacto com as potências do inferno porque é luta pelo poder e o poder leva à violência da qual o Estado possui o monopólio do uso legítimo”.

Podemos perguntar a Merleau Ponty: e quando começa o monopólio “ilegítimo” da força ? O filósofo diz que “jamais disse uma só palavra em favor das repressões abusivas”. E quanto à repressão “não abusiva”, existiria alguma? Mas Merleau Ponty sabia muito bem que repressões abusivas existiam na URSS, desde a era Lenine.


A partir daí, o filósofo analisa o livro de Arthur Koestler. Em primeiro plano, a tese de fundo: a honra, a desonra, a sinceridade e a mentira, tais palavras não têm sentido para o homem da história. Existem apenas traições objetivas e méritos objetivos. Assim, as massas não carregam mais o regime, elas o obedecem. Fazer oposição àditadura do proletariado é trair o movimento revolucionário objetivamente. Por esse motivo Rubachov assina a confissão que o inculpa. A honra pessoal é noção burguesa, sem sentido no Estado socialista. A distinção entre subjetivo e objetivo, que ainda permite a oposição de Rubachov é ignorada pelas novas gerações dirigentes, policiais e outros funcionários do regime. Acabou a História. A razão, se posta livre em si mesma, é apenas “uma bússula avariada”.

Não é possível ignorar a noção de sentido ligado à razão e ao espaço. Imanuel Kant, apenas um autor burguês para os intelectuais comunistas, escreveu páginas estratégicas com o título de “Como orientar-se no pensamento?”. Kant explora as possibilidades geográficas, matemáticas e morais do problema. Muito a propósito, quando se fala na razão ensandecida do totalitarismo, as palavras grafadas por ele no final do texto. “...a liberdade de pensar torna-se também no sentido de que se opõe à pressão sobre a consciência moral; Quando, sem qualquer poder em matéria de religião, há cidadãos que se constituem tutores dos outros e, em vez de argumentos, sabem banir todo o exame da razão mediante uma impressão inicial sobre os ânimos, através de fórmulas de fé prescritas e acompanhadas pelo angustiante temor do perigo de uma inquirição pessoal.”. Que outra coisa seriam as “palavras de ordem” do Partido, que definem o campo da consciência militante, sobretudo quando pensamos nos processos de Moscou e em tantos outros processos similares, nas experiências comunistas ?

De fato, assevera Kant mais à frente, “a liberdade de pensamento significa ainda que a razão não se submete a nenhumas outras leis a não ser àquelas que ela a si mesmo dá; e o seu contrário é a máxima de um uso sem lei da razão (...) a conclusão que daí se tira é naturalmente esta: se a razão não quer submeter-se à lei, que ela a si própria dá, tem de se curvar sob o jugo das leis que um outro lhe dá, sem lei alguma, nada, nem sequer a maior absurdidade, se pode exercer durante muito tempo. Por conseguinte, a consequência inevitável da declarada inexistência de lei no pensamento (...) é esta : a liberdade de pensar acaba por se perder e, porque a culpa não é de nenhuma infelicidade mas de uma verdadeira arrogância, a liberdade, no sentido genuíno da palavra, é confiscada”. (59) O gênio que abole as leis da sua própria razão, termina sem razão, sem lei, sem liberdade. Palavras proféticas, se pensarmos o quanto os intelectuais dirigentes do Partido se colocaram acima das leis jurídicas e lógicas, justo para abolir a liberdade de pensamento dos outros.

Mas precisamos retornar ao juízo de Merleau Ponty sobre o livro de Koestler. Ele afirma que em O Zero e o Infinito há pouco marxismo. Os homens, nos personagens descritos por Koestler, são apenas espelhos do que os envolve, o grande homem reflete do mais exato as condições objetivas para agir. A história, uma ciência rigorosa, faz do estadista o engenheiro que, em vista dos resultados, emprega instrumentos úteis. A sua lógica não é a viva, usual em Marx, que se exprime pelas necessidades objetivas e pelo movimento expontâneo das massas. É difícil encontrar em Marx comprovação desses enunciados de Merleau Ponty, sobretudo o que se refere às massas. O nosso filósofo não se aprofunda nesse ponto, e nos deixa com a nossa fome de verificação. É bom notar, no entanto, que tal lógica viva (o que faz recordar o recorte feito por Benedetto Croce sobre o que seria “vivo” e “morto” na filosofia hegeliana, some do cenário, quando Ponty publica a sua resenha sobre “A contradição de Trotsky”, de Claude Lefort. Naquele texto, Ponty assegura que o marxismo é um naturalismo, nada mais.

A lógica do marxismo em O Zero e o Infinito, diz Ponty, é a do técnico que só trata com objetos inertes e os maneja como quer. Assim, o erro é atenuado ao máximo, na máquina do partido. “Eu e tu podemos errar, mas não o partido” diz no livro de Koestler um burocrata militante. A história, argumenta o filósofo francês, deixa de ser marxista e se transforma numa força externa, cujo sentido é ignorado pelo indivíduo, ela é pura potência do fato. Diz Koestler : “ a história não conhece escrúpulos ou hesitações. Inerte e infalível, ela escorre para o seu alvo. A cada curva de seu curso ela deposita a lama que carrega e cadáveres afogados. A história conhece seu caminho. Ela não conhece erros”. Antes da mecanização absoluta do partido no Estado, a oposição tinha a múnus legítimo de discutir e apelar para as massas. Mas na crise ela deve apoiar incondicionalmente o regime. Koestler cita Maquiavel, o qual ensina que as palavras servem apenas para disfarçar os fatos, desculpar o disfarce se este é descoberto. Contra Maquiavel, recorda a palavra evangélica : seja o teu sim, sim, e não, não. O resto vem do diabo”.

O militante, segundo Koestler, por sistema e inventa post festum boas razões. Poderíamos dizer, com a escola freudiana, boas racionalizações. (60) Koestler afirma que no comunismo “o indivíduo é engrenagem de um relógio, montado para a eternidade e nada pode deter ou influenciar seu mecanismo. Ele é o signo da fatalidade econômica. O partido exigia que a engrenagem se revoltasse contra o relógio e mudasse o seu movimento”. Ora, o relógio foi remontado, o indivíduo deveria se submeter ou ser arrancado do mecanismo. Tudo deveria ser objetivo. (61)

Chegamos no ponto mais estranho da longa apologia efetivada por Merleau Ponty, em defesa dos comunistas. Falo do capítulo “O racionalismo de Trotsky” em Humanismo e Terror. Segundo nosso filósofo, tanto para o promotor que agia em nome do Estado soviético, quanto para Trotsky, os processos de Moscou não apresentam problemas de forma e de fundo. Para o promotor os acusados têm inequívoca ação que define sua culpa. Para o segundo, eles são inocentes. A lista oficial é grande : Zinoviev, Kamenev, Rykov, Bukarine, Trotsky compunham com Stalin o Bureau político de Lenine. Zinoviev e Kamenev fuzilados no processo de 1936, Rykov fuzilado depois de 1937, Bukarine fuzilado em 1938...Radek, também do Comitê Central, executado em 1937. Dos que figuravam no testamento de Lenine, só resta Stalin. Para Trotsky ocorreu a passagem da revolução para a contra revolução, após o Termidor soviético. Trata-se da diferença, anota Merleau Ponty, entre o partido idealizado e o de fato. O primeiro lidera as massas, o segundo as substitui e controla. O racionalismo de Trotsky o teria enceguecido: no seu cômputo havia razão em demasia.

E vêm as considerações finais sobre os comunistas : “por método, o comunista se recusa a acreditar na palavra dos outros, a tratá-los como sujeitos racionais e livres. Como o faria, se eles são, como ele mesmo, expostos às mistificações ? Atrás do que eles dizem e pensam deliberadamente, ele quer encontrar novamente o que eles são, o papel que desempenham, talvez contra sua vontade, no choque de potências e na luta das classes. Ele precisa desmascarar as ilusões liberais. Para ele, Maquiavel conta mais do que Imanuel Kant. Engels dizia de Maquiavel que ele era o ´primeiro escritor moderno digno de ser nomeado´. Marx dizia da História de Florença que se tratava de ´uma obra de mestre´. Ele considerava Maquiavel, Spinoza, Rousseau e Hegel os descobridores das leis de funcionamento do Estado”. (62)

Depois da crítica edulcorada, as condições para o “diálogo” com os comunistas: “um grupo de homens só poderá receber determinada missão histórica —acabar a história e fazer a humanidade— se for capaz de reconhecer os outros homens como homens e por eles serem assim reconhecidos. Ora, quer se trate do principe, dos velhos, dos sábios, dos funcionários estatais, ou mesmo dos santos, o papel histórico desses homens ou grupos consiste inteiramente em dominar os outros pela força, ou pela suavidade. E se é por um sábio equilíbrio dos poderes que se define a civilização, esta civilização ainda é luta, violência, não reciprocidade”. Nada mais próximo dessas frases, do que a tese de Carl Schmitt : “o Estado é apenas uma guerra civil continuamente impedida por um grande poder” (63)

O mundo humano, segundo Merleau Ponty, é um sistema aberto ou inacabado e a mesma contingência fundamental que o ameaça de discórdia o subtrai à fatalidade da desordem e proíbe desesperar, com a condição de que se lembre : os aparelhos são homens. E que também se mantenha e se multiplique as relações entre homem e homem. O eterno humano, como bolha de sabão onda ou simples diálogo, encerra indiviso toda a desordem e toda a ordem do mundo. Nada que não tenha sido falado pelo poeta : skias onar anthro‚pos, "o homem é o sonho de uma sombra”.(64) Mas o poema diz o belo trágico, com muita verdade. Já o filósofo que louva, com a desculpa de “compreender” o desumano sistema totalitário, fica na sombra e descreve o sonho dos comunistas, pesadelo de seres humanos, aos milhões.

No texto “Ao redor do marxismo” (65) Merleau Ponty diz que o próprio de Marx é admitir que há, ao mesmo tempo, uma lógica da história e uma contingência da história, que nada é absolutamente necessário. (66) Se abandonarmos a idéia teológica de um fundo racional do universo, a lógica da história é uma possibilidade entre outras. Talvez seja isso mesmo, o marxismo seria um sistema teológico invertido e pervertido com seus dogmas, sacerdotes, inquisição, autos da fé. Mas tal símile é tão sem sentido quanto o usado por Trotsky e seus amigos para designar o Termidor soviético. A própria leitura do 18 Brumário poderia advertir para semelhantes comparações que apenas mascaram os fatos. Usar termos jacobinos para a indicação dos crimes comunistas, é disfarce, ou melhor, é rasönnieren hipócrita. Nada mais.

A máquina do partido é onisciente... deixemos Merleau Ponty por enquanto e vejamos o que se passa no Partido Comunista brasileiro. Quando se tratava de reuniões partidárias, o militante de base era obrigado à atitude mental de “assimilar a palavra de ordem” emitida pela direção, a “linha justa”. Na auto biografia Vida de um Revolucionário, Memórias (67) Agildo Barata narra o processo “educativo” : “Nas raras vezes em que se discute, o objetivo da discussão é sempre o discutir para assimilar o pensamento da direção (...) ou melhor, não se discute, pedem-se esclarecimentos. Quando alguém diverge é imediatamente admoestado : ´você é o único que discorda, ou ´quer o camarada enxergar melhor que a direção?’ e o audacioso indagador chega a conformar-se, ´se sou só eu quem discorda, quem deve estar errado sou eu´”. (10)

O “argumento” dos camaradas para submeter o semelhante recorda o ataque de Albert Burgh a Spinoza (68) : “como ousareis negar a força da persuasão que a religião cristã extrai das miríades de homens entre os quais encontram-se milhares que, pela doutrina, o saber, a sutileza verdadeira e solidez da mente, a perfeição da vida nos ultrapassam e dominam....e que unanimemente afirmam que o Cristo, filho do Deus vivo, se fez carne, etc?”. Vale a pena ler a resposta de Spinoza a Burgh. O incrível, diz o filósofo, aconteceu : Burgh convertido ao catolicismo (tratava-se de um promissor estudioso das ciências) e ainda mais se transformou em militante da Igreja. Nela, já aprendeu a insultar os adversários com insolência. “Deplorais que eu tenha sido dominado pelo Príncipe dos espíritos malignos. Não vos atormenteis, peço-vos, e tomai fôlego! Quando estivestes na posse de vossa razão, admitíeis, salvo erro, um Deus infinito pela virtude do qual todas as coisas existem e se conservam. E agora que sonhais com um Príncipe inimigo de Deus, eis que tal Príncipe, contra a vontade divina, domina e engana a maioria dos homens (os bons são raros, com efeito) que Deus, por esta razão, entrega a este mesmo mestre que lhes inspira crimes para que recebam tormentos eternos. A justiça divina suporta, pois, que o diabo engane os homens impunemente, mas ela se opõe a que permaneçam impunes os infelizes enganados pelo demônio. Mesmo tais absurdos seriam suportáveis se adorásseis um Deus infinito e eterno e não o que Chatillon, na cidade chamada Tienem em flamengo, deu impunemente a comer para seus cavalos. E me lamentais, pobre infeliz! E tratais como quimera uma filosofia que desconheceis! Jovem insensato ! Quem vos perdeu a este ponto, que acreditais engolir e ter nas entranhas o ser soberano e eterno ? Quereis raciocinar no entanto, e me perguntais como sei que minha filosofia é a melhor dentre todas as que foram, são e serão ensinadas no mundo. É a mim que caberia vos apresentar a questão. Não pretendo ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que conheço a verdadeira. Me perguntareis como o sei. Responderei : do mesmo modo que sabeis que os três ângulos de um triângulo igualam dois retos e ninguém dirá que não basta, por pouco que o cérebro seja sadio, e não sonhe com espíritos impuros que inspirem idéias falsas semelhantes às verdadeiras, pois o verdadeiro é índice de si mesmo, e do falso”. E Spinoza discute o número dos fiéis, doutores, místicos do catolicismo, mostra que outras religiões deles estão aglomeradas, etc. O critério externo (número, magister dixit, e outro semelhantes, nada prova.

Note-se que no final do trecho citado acima, há uma clara indicação do gênio malicioso (versutus et callidus) utilizado por Descartes que separa o cogito e a natureza. O cogito, assim, fica entre o demônio e o Deus enganador, ou o Deus veraz que está fora da natureza. A transcendência divina e a transcendência da direção partidária, no caso dos comunistas, tem a mesma função : fazer com que o militante, católico ou comunista, sintam medo do erro, do pecado, da tentação. No caso do católico, o medo da tentação mundana. No caso do comunista, o medo de tudo o que não for certo e seguro, de tudo o que não for dado nos dogmas do partido e de sua inumerável plêiada de doutores, confessores, mártires, místicos, etc..

Retornemos aos comunistas, por volta de 1947. Com o Informe Zdanov há uma transformação do discurso e da prática no partido. Em Varsóvia ocorre uma reunião para criar o Kominforn (Bureau de Informação dos Partidos comunistas e dos trabalhadores). Naquele ano, em setembro, o encontro ocorre em Szklarska Poreba. Os partidos deveriam decidir se compareceriam à Conferência do Plano Marshall (Paris, 1947). A sede inicial seria Belgrado, mas a Iugoslávia seria expulsa em 1948 devido a tensões entre Tito e Stalin, o clima não era favorável à sua hospedagem, portanto. O projeto do Kominforn era o de coordenar a ação dos partidos comunistas sob orientação soviética. Tal agrupamento foi dissolvido em 1956. Antes dele existe o Komintern (Kommunistische Internationale ) cuja existência vai de 1919 até 1943, produzida pela cisão com a Segunda Internacional. Stalin desconfia do Komintern . So ele só existiram dois congressos. (69) Claudin analisa a “degeneração” da doutrina marxista sob Stalin, para quem as necessidades da URSS deviam ser defendidas pelo Komintern, pois este seria um instrumento da diplomacia soviética e de seus satélites. Trata-se, como sempre, da pura raison d´ État russa com a máscara da revolução proletária. Antes de 1947 a política oficial comunista era de “aliança duradoura” com os países ocidentais e os seus governos. (70) Da grande aliança se passou à doutrina “dos dois campos opostos, o socialista e o capitalista” (Informe Zdanov, citado por Claudin).
Assim, se voltarmos ao problema de Bukarine, podemos agora olhar a carta que ele remeteu para Stalin em 10 de dezembro de 1937. Prefiro traduzir o documento segundo a versão francesa acessível na internet. (71)
“Estritamente confidencial .
10 de dezembro de 1937. Pessoal.
Peço a ninguém que leia esta carta sem a autorização de I.V. Stalin.
Para I.V. Stalin Iosif Vissarionovitch !
Eu te escrevo esta carta que, sem dúvida, é minha última carta. Peço-te permissão de escrevê-la, embora esteja preso, sem formalidades, tanto mais que esta carta a escrevo apenas para tua pessoa, e a existência ou não existência desta carta depende apenas de ti...
Hoje é aberta a última página de meu drama, e talvez de minha vida. Hesitei longamente antes de escrever e tremo de emoção, sentimentos aos milhares me submergem e me controlo com muita dificuldade. Mas é precisamente porque estou na beira do precipício que desejo te escrever esta carta de adeus, enquanto ainda é tempo, enquanto sou capaz de escrever, enquanto meus olhos ainda estão abertos, enquanto meu cérebro funciona. Para que não ocorra nenhum malentendido, desejo te dizer desde já que para o mundo exterior (a sociedade)
1- Nada retirarei publicamente- do que escrevi durante a instrução
2- Nada te pedirei quanto ao caso, e tudo o que dele resulta, não te implorarei nada que pudesse desviar o processo que segue seu curso. Mas é para a tua informação pessoal que escrevo. Não quero deixar esta vida sem ter escrito estas últimas linhas a ti dirigidas, pois estou atormentado por muitas coisas que deves saber :
1) Na beira do abismo da qual não existe retorno, eu te dou minha palavra de honra que sou inocente dos crimes que reconheci durante a instrução do processo.
2) Ao fazer meu exame de consciência, posso acrescentar, além de tudo o que já disse no Plenum (Plenum do Comitê Central em 23 de fevereiro de 1937, depois do qual Bukarine e Rykov foram presos) os seguintes elementos, a saber :
a) um dia, ouvi dizer da crítica feita por, me parece, Kouzmine (Vladimir Kouzmine, jovem economista próximo das idéias de Bukarin. Integrava um círculo de economistas que se reunia periodicamente nos inícios dos anos 30, ao redor de Bukarine. Numa dessas reuniões, em 1932 ou 1933, Kouzmine teria dito que era preciso eliminar Stalin fisicamente. Em 1933 a maioria dos “jovens economistas bukarinistas”, entre eles Kouzmine, foram presos pela Guepeou, executados em 1937-1938) mas algum crédito, por menor que seja, a tais propósitos é algo que nunca me veio à cabeça.
b) sobre esta reunião, da qual eu nada sabia (idem, no que é relativo à plataforma de Rioutine (Em março de 1932, Martemian Rioutine redigiu dois textos críticos sobre a política de Stalin desde 1929. Uma “plataforma política” intitulada “Stalin e a crise da ditadura proletária” e um apelo “A todos os membros do Partido”. Preso pela Guepeou, Rioutine foi condenado a pesada pena. Stalin queria que ele fosse condenado à morte, mas outros membros do Politburo foram contra, pois a medida não tinha sido aplicada até então a um dirigente comunista) Aikhenvald me disse algumas palavras na rua, post factum (“os jovens se reuniram, fizeram um relato”) - ou algo de tal gênero. É verdade, reconheço, que então escondi este fato, tive piedade dos “jovens”.
c) Em 1932, joguei jogo duplo com os meus “alunos”. Pensava sinceramente que ou eu os colocaria totalmente na via direta do Partido, ou os afastaria. Eis tudo. Acabo de purificar minha consciência até os menores detalhes. O resto não existiu ou se existiu eu nada sabia dele.
Disse toda a verdade no Plenum, mas ninguém acreditou. Agora, te repito esta verdade absoluta : nos meus últimos anos segui honesta e sinceramente a linha do Partido e aprendi, com meu espírito, a te respeitar e amar.
3) Se eu não tivesse outra “solução” além de confirmar as acusações e os testemunhos dos outros e desenvolve-los : de outro modo não se poderia pensar que eu “não jogava as armas”.

4- Afastadas as circunstâncias exteriores e a consideração 3 (acima), eis o resultado de minhas reflexões sobre tudo o que ocorre, eis a conclusão à qual cheguei :
Há a grande e audaciosa idéia de expurgo geral :
a) em relação à ameaça de guerra b) em relação com a passagem para a democracia. Tal expurgo inclui a) os culpados b) os potencialmente duvidosos. Ele não pode, evidentemente me deixar de lado. Uns são postos em condições de não prejudicar de um modo, outros de outro modo, os terceiros diferentemente. Desta maneira, a direção do Partido não assume risco algum, adquire uma garantia total.
Eu te peço, não penses que ao raciocinar assim comigo mesmo, te endereço alguma crítica. Amadureci, compreendo os grandes planos, as grandes idéias, os grandes interesses são mais importantes do que tudo o mais, e que seria mesquinho colocar a questão de minha miserável pessoa no mesmo plano desses interesses de importância mundial e histórica, que repousam antes de tudo sobre as tuas costas.
Eis o que mais me atormenta, o paradoxo mais insuportável:
5- Se eu estivesse absolutamente seguro de que visses as coisas como eu, então minha alma seria liberada de um peso terrível. Mas o que fazer ? Se é preciso, é preciso ! Mas acredite: meu coração sangra só com o pensamento de que tu possas acreditar na realidade de meus crimes, que possas acreditar, do fundo de tua alma, que sou verdadeiramente culpado desses horrores. Se tal fosse o caso, o que isto significaria ? Significaria que eu mesmo contribuo para a perda de uma série de pessoas (a começar comigo), que eu faço conscientemente o mal! Nesse caso, nada mais é justificado. E tudo se embrulha em minha cabeça, tenho desejos de gritar e bater minha testa nas paredes! Com efeito, nesse caso, sou eu o causador da perda dos outros. Que fazer ? Que fazer ?
6- Não tenho sequer um grama de ressentimento. Não sou cristão. Com certeza, tenho minhas idiossincrasias. Considero que devo expiar pelos anos em que realmente combati como oposição a linha do Partido. Sabes, o que mais me atormenta neste momento, é um episódio que talvez tenhas esquecido. Certo dia, provavelmente durante o verão de 1928, estava em tua casa e me dissestes : sabes porque sou teu amigo? Porque és incapaz de intrigar contra qualquer um. Concordo. E, logo depois, corro para a casa de Kamenev (“primeiro encontro”). Tu acreditarás ou não em mim, neste episódio que me atormenta, pois ele é o pecado original, é o pecado de Judas. Deus meu! Que imbecil, que menino eu era então então! E agora expio por tudo isso com o preço de minha honra e de minha vida. Por isto, perdoa-me Koba. Escrevo e choro. Nada mais me importa, e tu sabes muito bem : apenas agravo meu caso ao te escrever tudo isso. Mas não posso me calar, sem te pedir perdão uma última vez. É por isso que não estou indignado contra ninguém, nem contra a direção do Partido, nem contra os instrutores, e te peço ainda uma vez perdão, embora seja eu punido de tal modo que agora é trevas...
7) Quando eu tinha alucinações, eu te vi muitas vezes e certa feita Nadejda Serguievna ( mulher de Stalin, que suicidou em 1932). Ela se aproximou de mim e disse : “O que fizeram convosco, N.I. ? Direi a Iossif para que ele vos ajude”. Tudo era tão real que tive um sobressalto e quase te escrevi para...que me viesses ajudar ! A realidade se mesclava com a alucinação. Sei que Nadejda Serguievna jamais acreditaria que eu poderia pensar mal de ti, e não é por acaso que o inconsciente de meu “ego” infeliz a chamou em meu socorro. Quando penso nas horas que passamos em conversas...Meu Deus, porque não existe um aparelho que permita ver minha alma dilacerada, cortada pelos bicos de pássaros ! Se tivesses apenas podido ver como sou apegado interiormente a ti, não como todos esses Stetski et Tal (Alexis Stetski, redator chefe da revista Bolchevik et Boris Tal’, diretor do departamento de imprensa do Comitê central, redator chefe adjunto de Izvestia). Bem, perdoa-me por toda essa “psicologia”. Não existe mais anjo que possa desviar o gládio de Abraão! Que o destine se cumpra!
8) Permita, enfim, acabar com estes últimos pequenos pedidos :
a)Para mim seria mil vezes mais fácil morrer do que suportar o processo que me aguarda. Não sei como serei capaz de superar minha natureza, eu a conheço. Não sou inimigo do Partido ou da URSS, e faria tudo o que está em meu poder, mas, vistas as circunstâncias, minhas forças estão no nível mais baixo e sentimentos dolorosos afluem para minha alma. Deixando de lado todo sentimento de dignidade e vergonha, estou pronto a me arrastar de joelhos e te implorar que me evites esse processo. Mas sem dúvida, nada mais pode ser feito, e te peço, se ainda é possível, me permitir a morte antes do processo, e no entanto sei que, em tal ponto, és muito severo.
b) Se uma sentença de morte me espera, eu te peço, eu te suplico em nome de tudo o que é caro para tua pessoa, não me fuzilar, quero mesmo absorver veneno (dá-me a morfina, para que eu adormeça e não desperte). Este aspecto das coisas é para mim o mais importante, procuro palavras para te suplicar : politicamente, isso não prejudicará ninguém, ninguém ficará sabendo. Mas ao menos deixa-me viver meus últimos segundos como quero. Piedade! Como tu me conheces bem, compreendes o que desejo dizer. Às vezes, olho a morte com vista lúcida e sei bem que sou capaz de atos de bravura. E às vezes, este mesmo eu é fraco, tão alquebrado que de nada mais é capaz. Então, se devo morrer, quero uma dose de morfina. Eu te suplico.
c) Quero dizer adeus para minha mulher e meu filho. Quanto à minha filha, não vale a pena. Tenho piedade dela, seria muito duro. Quanto à Aniouta, ela é jovem e superará e depois tenho vontade de lhe dizer adeus. Peço poder encontrá-la antes do processo. Por que ? Quando meus próximos ouvirão o que confessei, eles são capazes de colocar um fim aos seus dias. Devo prepará-los, de certo modo. Penso que será melhor também no interesse do assunto, de sua interpretação oficial.
d) Se por acaso minha vida fosse poupada, gostaria (mas seria preciso que eu falasse com minha mulher) de ser exilado na América por X anos. Argumentos pró : eu faria campanha sobre os processos, conduziria uma luta mortal contra Trotsky, conduziria para nós largas camadas da intelligentsia, eu seria praticamente o anti Trotsky e levaria todo o negócio com formidável entusiasmo. Vós poderíeis enviar comigo um tchekista experiente, e, como garantia suplementar, poderíeis guardar na URSS a minha mulher como refém por seis meses, o tempo em que eu demonstraria, com fatos, como quebro a cara de Trotsky e Cia., etc. Se tens um átomo de dúvida sobre esta variante, exila-me mesmo por 25 anos em Petchora ou na Kolyma, num campo. Organizarei uma universidade, um museu zoológico, um jornal do campo. Numa palavra, liderarei um trabalho de pioneiro de base, até o fim dos meus dias, com minha família.
Para falar a verdade, não tenho muita esperança, pois o fato da mudança da diretiva do plenum de fevereiro é pesada de sentido (e vejo bem que o processo não ocorrerá amanhã).

Eis, portanto, meus últimos pedidos: (ainda: o trabalho filosófico, que ficou em casa, contem muitas coisas úteis) Iossif Vissarionovitch ! Perdeste comigo um dos teus generais mais capazes e mais devotados. Mas, bem, tudo passou. Recordo o que Marx escreveu sobre Barclay de Tolly, acusado por Alexandre Iº de o haver traído. Ele dizia que o imperador tinha se privado de um excelente colaborador. Com quanta amargura penso nisso ! Me preparo interiormente para deixar esta vida, e não ressinto, a seu respeito e ao Partido, a respeito de nossa Causa, nada mais que um sentimento de amor imenso, sem limites. Farei tudo o que é humanamente possível e impossível. Te escrevi sobre tudo. Sobre tudo, coloquei os pontos nos i. Eu me avancei, pois ignoro em qual situação estarei amanhã, depois de amanhã, etc.
Neurastênico como sou, talvez serei tomado por uma apatia total e absoluta, de tal modo que serei incapaz de mover o dedo mindinho. Mas agora, a cabeça pesada e com lágrimas nos olhos, ainda sou capaz de escrever. Minha consciência é pura diante de ti, Koba. Peço pela última perdão (um perdão espiritual). Eu te aperto nos meus braços em pensamento. Adeus pelos séculos dos séculos e não guardes rancor deste infeliz.
N. Bukarine
10 de dezembro de 1937.

Deixemos a miséria totalitária sob o comunismo e retornemos à raison d´ État e a Maquiavel. A carta de Bukarin endereçada a Stalin, não deixa um só instante o leitor sem a certeza de que ela se dirigia para o público mundial. Dois aspectos nelas podem ser notados, no relativo à propaganda. Bukarin exige sigilo na missiva, mas explica eventos mais do que conhecidos pelo Estado soviético e por seu ditador. Desse modo, fica evidente que o destinatário não era apenas o dono do poder estatal, mas a opinião pública do planeta. Mas o redator da carta também se oferece, no último apelo em favor de sua vida, para cumprir tarefa de propaganda e contra propaganda nos EUA, onde iria ampliar o campo favorável à URSS e eliminar o trotskysmo, seja em idéias seja em atos contra os defensores do “traidor”, mais tarde assassinado no México. Que os dois favores a Stalin não tenham se efetivado, isso de nada muda o sentido da alma militante de Bukarin, excelente exemplar do militante essencial, o que sacrifica a sua vida, honra, subjetividade em prol do Partido. A pedagogia da propaganda, que marca os militantes desde os seus primeiros passos nos movimentos a que defendem, não é algo novo na história do pensamento, da opinião pública e da razão de Estado modernos. Trata-se de uma técnica iniciada nos alvores do uso prático do invento de Guttenberg, mas potenciado ao máximo no século 17, em especial na França e na Europa que ela combatia e que a combatia por sua vez.
Etienne Thuau no clássico sobre a razão de Estado (2) mostra que na França do século 17 existiam pelo menos três formas de pensamento político ligado àquela razão. Em primeiro lugar o partido ultramontano e católico que reunia os inimigos do Estado, quando este último era posto acima e independente da Igreja. Para eles, a raison d´ État era o símile do Inferno. Criticavam a política interna de Richelieu por considerá-la muito leniente em relação aos protestantes e demais formas de pensamento. E recusavam a política externa do mesmo estadista, porque ela ia contra a Espanha, o que enfraquecia o catolicismo na Europa e no mundo. Em segundo lugar vêm os humanistas, que tentavam apresentar limites ao partido ultramontano, mas que também sentiam dúvidas sobre o Estado e buscavam também estabelecer os limites para sua ação. Boa parte desses humanistas foram determinados, em suas doutrinas, pelos trabalhos de Grotius, que escreveu seu opus magnus na França, dedicando-o ao soberano francês. O terceiro, finalmente, unia os defensores de Richelieu e do Estado. Eles eram chamados “políticos” ou “maquiavélicos”. Após ter analisado os inimigos da razão de Estado, Thuau disseca os argumentos e as técnicas políticas do seguidores de Richelieu, os chamados integrantes da Statianorum secta (a seita dos que amam o Estado).

Ainda Thuau apresenta uma noção estratégica, quando se trata de inspecionar o poder. Ao discutir a guerra dos panfletos ocorrida no governo de Richelieu, ela afirma que as propagandas, por definição, se estabelecem no campo maniqueu : se os publicistas teocráticos afirmam que a razão de Estado é infernal, os que defendem o poder laico acusam os religiosos como teólogos do diabo. Lúcifer muda de papel e de lugar, mas sempre é o patrono dos outros. Esta marca do maniqueísmo retorna em todos os períodos da história moderna e se corporifica nas mais diversas ideologias.

Mais interessante ainda, no entanto, do que o fanatismo ideológico indicado por Thuau, é sua análise das palavras que povoam os discursos de governistas e das oposições, defendam eles qualquer doutrina. “Em política”, diz o autor, “o surgimento de palavras chave e de símbolos segue normalmente a ascensão de novas forças. A palavra ´Estado´, cristalizada nos séculos 16 e 17, marca particularmente a época de Richelieu. Ela permite à autoridade secular, desejosa de conseguir um poder absoluto e soberano, criar um símbolo revestido de personalidade abstrata e que ela pode opor à Igreja”. (3) Na busca desse poder, os adeptos do Estado querem regular a conduta humana, o que ameaça a tradição cristã, ética e religiosa. O estatistas vão além de tudo o que se pensou e se disse sobre os alvos do poder, na Idade Média. Eles almejam para o Estado, em tempo e espaço integrais, a conquista da potência, de modo compatível com o enunciado de Hobbes : “a search for power after power unto death”. (4) O tema já fora enunciado por Rohan : “As nações são governadas pelos Príncipes e os Príncipes pelos interesses”. (5)

Nenhuma das correntes indicadas acima enfrenta o Estado com tranqüilidade. Os sinais do Leviatã, apesar de todo o esforço hobbesiano para esclarecer a lingua do poder, afiança Thuau, é ambigüa no século 17, a idéia de razão de Estado, no meio das insanas lutas pelo poder europeu e mundial, é uma contradição para a maioria dos partidários de uma ou outra doutrina. A idéia de razão de Estado, acrescenta nosso autor, é um escândalo.

No que se refere aos defensores do Estado, é evidente o seu caráter disperso, dadas as diferenças mantidas entre seus vários segmentos sociais e também ao caráter não sistemático dos libelos e livros por eles publicados. Na França não existiu um Descartes do estatismo, como na Inglaterra existiu um Hobbes do poder absoluto. Como em toda situação institucional ainda não decidida, nem os apologetas do Estado nem os seus opositores iam além das pessoas e de alguns princípios gerais.

Thuau apresenta relevante um problema de ordem epistemológica : o que se julga uma insuficiência do pensamento político no século 17, a sua falta de sistema, não seria um pressuposto nosso, ou mesmo um preconceito? Afinal, porque um pensamento político deve ser sistemático? É clara, sob a pergunta do analista, o problema do século 20, era em que os sistemas se transformaram em Estados, cada qual com a sua razão e interesse, o nazismo e o fascismo com a raça e o comunismo com a história. No século 17 tais sínteses políticas, com suas doutrinas políticas, não tinham sido trabalhadas pelos sistemas filosóficos do tipo hegeliano. Mesmo no século 18, quando se afirma o sistema na filosofia, é difícil encontrar doutrinas políticas sistematizadas. O assim dito jacobinismo francês possui diferenças significativas em seus vários segmentos, o mesmo ocorrendo com os girondinos e os monarquistas que restaram após 1789. Uma inspeção no verbete “sistema” da Enciclopédia dirigida por Denis Diderot já mostra a dificuldade da coisa. (6)

Diderot e Jaucourt usam Condillac como pensador que levou a fundo a noção abstrata de sistema. Segundo Condillac existem três tipos de princípios abstratos em uso: as proposições gerais, exatamente verdadeiras em todos os casos, as proposições verdadeiras em seus lados mais notórios, e que são tidas como verdadeiras em todos os sentidos. E finalmente as relações vagas que se imagina entre coisas de natureza diferente. Os primeiros não conduzem a nada. Que um geômetra medite o quanto queira sobre tais máximas, o todo é igual a todas as suas partes. “Se não é dado a nenhum homem se tornar, após algumas horas de meditação, um Condé, Turenne, Richelieu ou Colbert, embora a arte militar, a política e as finanças tenham como todas as ciências seus princípios gerais, dos quais é possível em pouco tempo descobrir todas as consequências, porque um filósofo se tornaria de repente um sábio, um homem para quem a natureza não possui segredos, e isto pelo encanto de duas ou mais proposições ? Este único paralelo basta para fazer saber o quanto se enganam esses filósofos especulativos que percebem grande fecundidade nos princípios gerais. Os dois seguintes só conduzem a erros. É o que pretende provar o autor do tratado dos sistemas, pelos diferentes sistemas que ele percorre. Bayle, Descartes, Malebranche, Leibniz, o autor da ação de Deus sobre a criatura, Spinoza também, lhe fornecem exemplos do que ele escreve. Em geral o grande defeito dos sistemas abstratos é se girar sobre noções vagas e mal determinadas, sobre palavras vazias de sentido, sobre equívocos perpétuos. M. Locke compare engenhosamente esses fazedores de sistemas a pessoas que, sem dinheiro e sem conhecimento das espécies monetárias, contariam grandes somas com fichas que eles chamariam luízes, libras, centavos. Por mais cálculos que eles façam, suas somas seriam apenas fichas, por mais raciocínios que façam os filósofos com sistemas abstratos, suas conclusões serão apenas palavras. Ora,tais sistemas, longe de dissipar o caos metafísico, servem apenas para encantar a imaginação pela audácia das consequências consequências para onde conduzem e para seduzir o espírito pelas falsas aparências de evidência, para nutrir a cabeça dura que insiste nos erros mais monstruosos, para eternizar disputas, com o péssimo humor e arrogância com os quais eles as sustentam.(…) Não existe ciência nem arte das quais não se possa fazer sistemas: mas numas se propõe dar a razão dos efeitos; nas outras, prepará-los e fazê-los nascer. O primeiro objeto é o da física; o segundo é o da política”.

A Encyclopédie, ao rejeitar o ordenamento sistemático e, nele, as exposições de Spinoza, assume no entanto o ensino spinozano na exegese de Maquiavel. De fato, os autores afirmam que “maquiavélico é o homem que segue em sua conduta os princípios de Maquiavel, os quais consistem em buscar suas vantagens particulares por qualquer via. Existem maquiavélicos em todos os estados”.(Machiaveliste). A doutrina de Maquiavel seria uma “espécie de política detestável que pode ser traduzida em sua palavras, pela arte de tiranizar, da qual Maquiavel o florentino espalhou os princípios em suas obras. (…) Quando Maquiavel escreveu seu tratado do Príncipe, é como se ele tivesse dito aos seus concidadãos : leiam bem esta obra. Se vocês aceitarem um dia certo mestre, ele será como o desenho, eis a besta fera à qual vocês se entregarão. Assim, foi erro de seus contemporâneos se eles desconheceram o alvo, pois tomaram uma sátira por elogio. Bacon o chanceler não se enganou quando disse: este homem nada ensina aos tiranos, eles sabem muito bem o que devem fazer, mas instrui os povos sobre o que eles devem temer. Est quod gratias agamus Machiavello & hujus modi scriptoribus, qui apertè & indissimulanter proferunt quod homines facere soleant, non quod debeant ".(7)

Se as prevenções contra o sistema, no século 18, eram similares às expostas na Encyclopédie, no século 17, a era da razão de Estado, elas definiam o próprio modus operandi dos políticos. Quase todos eles, a começar de Richelieu segundo Thuau, desconfiavam muito dos sistemas, preferindo a via pragmática. (8) Antes de ser uma filosofia, o pensamento que defende o Estado, no período controlado por Richelieu é “um empresa de paz e guerra”, tanto no plano interno quanto no internacional. Na referida empresa, pela primeira vez na história moderna, a propaganda do poder real, ela sim, é feita de maneira sistemática. Luís 14º aproveitou o sistema engendrado pelos seus antecessores, sempre na tarefa de identificar Estado e figura do soberano. (9) Assim, Thuau discute a propaganda estatista no própria “assessoria de imprensa” que a idealiza e pratica.

Na “empresa nacional de paz e guerra” foi preciso gerar a propaganda com ajuda de “numerosos agitadores e treinadores de homens, ocupados em criar e fortificar o impulso nacional”. Semelhante tarefa, segundo Thuau é o “governo dos espíritos”. A “literatura” dos libelos, somada aos boatos (talvez seja daquele período o nascimento do “spin” e dos “spin doctors”) teve seu apogeu sob o cardeal ministro. Como recorda Thuau, a propaganda não foi desconhecida no mundo antigo, basta recordar o imperador Augusto que mobilizou escritores para glorificar o novo regime por ele estabelecido. (10) Mas Richelieu leva à perfeição prática e estratégica a técnica de propagar a imagem excelente de seu governo, seguindo o slogan “Governar é fazer acreditar”. (11) Empresa dogmática, apesar da ausência de sistema...

Pierre Bayle, crítico dos dogmatismos filosóficos e teológicos, defende posição contrária à de Richelieu, embora também seja partidário do poder absoluto real. Seu juízo sobre Luís XI, a réplica de Richelieu no passado, ou talvez o governante que preparou o absolutismo do qual o ministro de Luís XIII será o beneficiário, é matizado. Luís 11 ao mesmo tempo foi prudente, e apesar de humilhações conseguiu bons tratados para a França, sobretudo com a Inglaterra, e cruel para com seus inimigos e para com o povo francês. Bayle não assume atitude angélica, ou ortodoxa em termos políticos. Seu modo de raciocinar o aproxima de Maquiavel. Veja-se o artigo sobre Luís VII do Dictionnaire: “a devoção e a piedade são incontestavelmente as maiores de todas as virtudes. Um principe não é menos obrigado que um cidadão comum a possuí-las: e se ele mais ama observar os deveres do que conservar seus Estados, ele é perante Deus um dos maiores homens do mundo; mas é seguro, que segundo o andar das coisas humanas, nada é mais capaz de arruinar uma nação do que a consciência escrupulosa de quem a governa. Se os vizinhos fizessem como ele, seria possível esperar de sua piedade a mais felicidade que os povos poderiam usufruir; mas se enquanto eles praticam todas as astúcias da política, ele se enrijece para não fugir jamais das regras severas da moral e do Evangelho, ele e seus dirigidos serão infalivelmente a presa das outras nações, e todo mundo dirá que ele é mais vocacionado para a vida monástica do que para carregar uma coroa, e que ele faria bem de ceder seu lugar a um principe menos escrupuloso. Exeat aula qui volet esse pius.(12Lucano, livro VIII, 493). Esta máxima diz respeito principalmente a um chefe de corte”.


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1 Cf. Max Lerner: “Machiavelli the Realist” in De Lamar Jensen (Ed.) : Machiavelli: Cynic, Patriot, or Political Scientist ? (D.C. Heath Ed., 1960), pp. 9-13.
2 At politici contra hominibus magis insidiari, quam consulere creduntur, et potius callidi, quam sapientes aestimantur. Docuit nimirum eosdem experientia, vitia fore, donec homines. Humanam igitur malitiam praevenire dum student, idque iis artibus, quas experientia longo usu docuit, et quas homines magis metu, quam ratione ducti exercere solent, religioni adversari videntur, theologis praecipue, qui credunt summas potestates debere negotia publica tractare secundum easdem pietatis regulas, quibus vir privatus tenetur. Ipsos tamen politicos multo felicius de rebus politicis scripsisse, quam philosophos, dubitari non potest. Nam quoniam experientiam magistram habuerunt, nihil docuerunt, quod ab usu remotum esset. (Tratado Político, I, §2. Uso o texto do site Hyper-Spinoza [http://hyperspinoza.caute.lautre.net/] acessado em 21/02/2008, 9:00 AM.
3 loc. Cit.
4 Lerner, op. cit.
5 “Numa (…) trovando uno popolo ferocissimo, e volendolo ridurre nelle obedienze civili con le arti della pace, si volse alla religione, come cosa al tutto necessaria a volere mantenere una civiltà, e la constituì in modo, che per più secoli non fu mai tanto timore di Dio quanto in quella republica, il che facilitò qualunque impresa che il Senato o quelli grandi uomini romani disegnassero fare.” (…) la religione introdotta da Numa fu intra le prime cagioni della felicità di quella città: perché quella causò buoni ordini; i buoni ordini fanno buona fortuna, e dalla buona fortuna nacquero i felici successi delle imprese. E come la osservanza del culto divino è cagione della grandezza delle republiche, così il dispregio di quello è cagione della rovina d'esse. Perché, dove manca il timore di Dio, conviene o che quel regno rovini, o che sia sostenuto dal timore d'uno principe che sopperisca a' difetti della religione. E perché i principi sono di corta vita, conviene che quel regno manchi presto, secondo che manca la virtù d'esso”. Discorsi, I, 11, in Niccolò Machiavelli, Opere a cura di Corrado Vivanti (Torino, Einaudi/Gallimard, 1997), Volume I, p. 229 e
6 “Perché, dove gli uomini hanno poca virtù, la fortuna mostra assai la potenza sua; e, perché la è varia, variano le republiche e gli stati spesso; e varieranno sempre, infino che non surga qualcuno che sia della antichità tanto amatore, che la regoli in modo, che la non abbia cagione di mostrare, a ogni girare di sole, quanto ella puote”.(Discorsi, II, 30), ed. cit. p. 410.

7 Verbete “Fortuna”, Dictionnaire des Antiquités Grecques et Romaines de Ch. Daremberg e Edm. Saglio, Université de Toulouse Le Mirail, in http://dagr.univ-tlse2.fr/sdx/dagr/index.xsp, consultado no dia 29/02/2008, 09:16 AM.
8 Guerra do Peloponeso, IV, 18 : “Know it, by seeing this present misfortune fallen on us, who, being of greatest dignity of alla Grecians, come to you to ask that which before we thought chieflyin our own hands to give. And yet we are not brought to this through weakness nor through insolence upon addition of strenght, but because it succeeded not with the we had as we tought it should, which may as well happen to any other as to ouerselves. So that you have no reason to conceive that for your power and purchases fortune also must be therefore always yours” Tradução de Thomas Hobbes :The Peloponesian War (Chicago,University Press, 1991), p. 239. (….) gnôte de kai es tas hêmeteras nun xumphoras apidontes, hoitines axiôma megiston tôn echHellênônontes hêkomen par' humas, proteron autoi kuriôteroi nomizontes einai dounai eph' ha nun aphigmenoi humas aitoumetha. kaitoi oute dunameôs endeiai epathomen auto oute meizonos prosgenomenês hubrisantes, apo de tôn aiei huparchontôn gnômêi sphalentes, en hôi pasi to auto homoiôs huparchei. hôste ouk eikos humas dia tên parousan nun rhômên poleôs te kai tôn prosgegenêmenôn kai to tês tuchê oiesthai aiei meth' humôn esesthai. ” Site Perseus.
9 Meinecke, Friedrich: Machiavellism: The Doctrine of Raison D'État and Its Place in Modern History (Yale University Press, 1957).

10 tisin anankais hekasta gignetai tôn ouraniôn (Mem. 1.1.11). O trecho refere-se a Sócrates, que evitava conversar sobre a natureza do suposto cosmos, sobre as leis que governam necessariamente os fenômenos celestes.

11 Uso o texto do Perseus Project, acessado em 09/03/2008, 10 AM. Sigo a tradução de Thomas Hobbes: The Peloponesian War with notes by David Grene (Chicago, University Press, 1989, pp. 364 e ss.

12 De officiis, III, 2 : Panaetius igitur, qui sine controversia de officiis accuratissime disputavit quemque nos correctione quadam adhibita potissimum secuti sumus, tribus generibus propositis, in quibus deliberare homines et consultare de officio solerent, uno cum dubitarent, honestumne id esset, de quo ageretur, an turpe, altero utilene esset an inutile, tertio, si id, quod speciem haberet honesti, pugnaret cum eo, quod utile videretur, quomodo ea discerni oporteret, de duobus generibus primis tribus libris explicavit, de tertio autem genere deinceps se scripsit dicturum nec exsolvit id, quod promiserat. Panécio nos dá a mais profunda discussão sobre os deveres morais. Ele classifica em três itens os problemas éticos que as pessoas costumam considerar e pesar : primeiro, se a questão analisada é moralmente certa ou errônea; segundo, se é expediente ou não; terceiro como uma decisão deve ser assumida, nos casos em que ela parece ser moralmente certa mas se choca com o que parece expediente. Tradução livre (RR).

13 Anais, XIV, 44.

14 Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIª IIae, q. 2 e 3. Ad primum ergo dicendum quod epieikeia correspondet proprie iustitiae legali, et quodammodo continetur sub ea, et quodammodo excedit eam. Si enim iustitia legalis dicatur quae obtemperat legi sive quantum ad verba legis sive quantum ad intentionem legislatoris, quae potior est, sic epieikeia est pars potior legalis iustitiae. Si vero iustitia legalis dicatur solum quae obtemperat legi secundum verba legis, sic epieikeia non est pars legalis iustitiae, sed est pars iustitiae communiter dictae, contra iustitiam legalem divisa sicut excedens ipsam. (...) Ad tertium dicendum quod ad epieikeiam pertinet aliquid moderari, scilicet observantiam verborum legis. Sed modestia quae ponitur pars temperantiae, moderatur exteriorem hominis vitam, puta in incessu vel habitu, vel aliis huiusmodi. Potest tamen esse quod nomen epieikeiae, apud Graecos, per quandam similitudinem transfertur ad omnes moderationes. Citado a partir do site Corpus Thomisticum (http://www.corpusthomisticum.org/sth3109.html, consultado no dia 12/10/200/, 20.30 PM.

15 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro V, 10 e ss. Na edição da Loeb Classical Library Aristotle, XIX, trad. H. Rackham (Cambridge, Cambridge University Press, 1990), pp. 312 e ss. Também Aristóteles, Retorica, Ed. W.D. Ross, (Oxford, Clarendon Press, 1959). O dicionário Little &Scott designa: epieikéia como “reasonableness”, “fairness”, “equity”

16 De Legibus, 1.15.42, in Cicero, De Re Publica ; tradução De Legibus por Clinton Walker Keyes, Loeb (1928;Harvard, Univ. Press, 1952). Cf. Ch. S. Ross, “Justifying Violence: Boiardo's Castle Cruel” in Philological Quarterly, Vol. 73, 1994. O essencial é a referência aos textos platônicos e sua coerência doutrinal interna. No debate sobre o nexo entre a República e as Leis, Cícero afirma, no De Legibus (2.6.14) que as Leis definem um código legal apropriado ao regime descrito na República. Tal debate é antigo, tendo relação com outro, saber se o soberano de carne e osso é cria da lei, a qual seria o verdadeiro soberano, ou o contrário.Cf. V. Bradley Lewis. “Politeia kai Nomoi: on the coherence of Plato ´s Political Philosophy” in Polity, Vol. 31, 1998.

17[42] Iam uero illud stultissimum, existimare omnia iusta esse quae sita sint in populorum institutis aut legibus. Etiamne si quae leges sint tyrannorum? Si triginta illi Athenis leges inponere uoluissent, et si omnes Athenienses delectarentur tyrannicis legibus, num idcirco eae leges iustae haberentur? Nihilo credo magis illa quam interrex noster tulit, ut dictator quem uellet ciuium aut indicta causa inpune posset occidere. Est enim unum ius quo deuincta est hominum societas et quod lex constituit una, quae lex est recta ratio imperandi atque prohibendi. Quam qui ignorat, is est iniustus, siue est illa scripta uspiam siue nusquam. Quodsi iustitia est obtemperatio scriptis legibus institutisque populorum, et si, ut eidem dicunt, utilitate omnia metienda sunt, negleget leges easque perrumpet, si poterit, is qui sibi eam rem fructuosam putabit fore. Ita fit ut nulla sit omnino iustitia, si neque natura est ea quae propter utilitatem constituitur utilitate lia conuellitur.[43] Atqui si natura confirmatura ius non erit, uirtutes omnes tollantur. Vbi enim liberalitas, ubi patriae caritas, ubi pietas, ubi aut bene merendi de altero aut referendae gratiae uoluntas poterit existere? Nam haec nascuntur ex eo quod natura propensi sumus ad diligendos homines, quod fundamentum iuris est. Neque solum in homines obsequia, sed etiam in deos caerimoniae religionesque tollntur, quas non metu, sed ea coniunctione quae est homini cum deo conseruandas puto. Quodsi populorum iussis, si principum decretis, si sententiis iudicum iura constituerentur, ius esset latrocinari, ius adulterare, ius testamenta falsa supponere, si haec suffragiis aut scitis multitudinis probarentur.[44] Quodsi tanta potestas est stultorum sententiis atque iussis, ut eorum suffragiis rerum natura uertatur, cur non sanciunt ut quae mala perniciosaque sunt, habeantur pro bonis et salutaribus? Aut cum ius ex iniuria lex facere possit, bonum eadem facere non possit ex malo? Atqui nos legem bonam a mala nulla alia nisi natura norma diuidere possumus. Nec solum ius et iuria natura diiudicatur, sed omnino omnia honesta et turpia. Nam, communis intellegentia nobis notas res effcit easque in animis nostris inchoauit, honesta in uirtute ponuntur, in uitiis turpia. [45] Haec autem in opinione existimare, non in natura posita, dementis est. Nam nec arboris nec equi uirtus quae dicitur (in quo abutimur nomine) in opinione sita est, sed in natura. Quod si ita est, honesta quoque et turpia natura diiudicanda sunt. Nam si opinione uniuersa uirtus, eadem eius etiam partes probarentur. Quis igitur prudentem et, ut ita dicam, catum non ex ipsius habitu sed ex aliqua re externa iudicet? Est enim uirtus perfecta ratio, quod certe in natura est: igitur omnis honestas eodem modo.Nam ut uera et falsa, ut consequentia et contraria sua sponte, non aliena iudicantur, sic constans et perpetua ratio uitae, quae uirtus est, itemque inconstantia, quod est uitium, sua natura probai; nos ingenia im non item? [46] An ingenia natura, uirtutes et uitia quae existunt ab ingeniis, aliter iudicabuntur? An ea non aliter, honesta et turpia non ad naturam referri necesse erit? quod laudabile bonum est, in se habeat quod laudetur, necesse est; ipsum enim bonum non est opinionibus, sed natura. Nam ni ita esset, beati quoque opinione esse, quo quid dici potest stultius? Quare quom et bonum et malum natura iudicetur, et ea sint principia naturae, certe honesta quoque et turpia simili ratione diiudicanda et ad naturam referenda sunt.

18 T. A. Sinclair : A History of Greek Political Thought (Routledge & Kegan Paul, 1952) pp. 40 e ss. Também H.E. Stier: “Nomos Basileus” in Philologus, 83, 1928.

19 Nomos Basileus (Napoli, Edizioni Glaux, 1956), p. 12 e ss.

20 Ilaria Ramelli : Il basileus como nomos empsychos tra diritto naturale e diritto divino. Spunti platonici del concetto e sviluppi do età imperiale e tardo antica. Memorie dell’ Istituto Italiano per gli Studi Filosofici 34 (Napoli, Bibliopolis, 2006).

21 Discorsi, I, proemio in Niccolò Machiavelli Il Principe e Discorsi, a cura di G. Procacci (Milano, Feltrinelli, 1973), p. 124.
22 “Come dimostrano tutti coloro che ragionano del vivere civile, e come ne è piena di esempli ogni istoria, è necessario a chi dispone una republica ed ordina leggi in quella presupporre tutti gli uomini rei, e che li abbiano sempre a usare la malignità dello animo loro qualunque volta ne abbiano libera occasione [. . . ] Però si dice che la fame e la povertà fa gli uomini industriosi, e le leggi gli fanno buoni”. Discorsi, I, 3. Cit. por M. Viroli, Machiavelli (Oxford, Univ. Press, 1998), p. 47.
23 Cicero, (De officiis I, 34) e Tito Livio (Ab urbe condita 2. 3) cit. por Viroli.
24 Chiapelli, in Studi sul linguaggio di Machiavelli (Florença, Le Monier, 1952).
25 Cf. Jack H. Dexter : “The vision of politics on the eve of the Reformation” in More, Machiavelli, and Seyssel ( New York: Basic Books, 1973), 150-78.
26 Talvez referência ao De officiis (I,XI, 34).
27 Príncipe, capítulo 18.
28 De officiis, 2.7.24
29 Principe, capítulo 17.
30 Leo Strauss : “Machiavelli ´s intention: ´The Prince’ in American Political Science Review, LI ( 1957) e Thoughts on Machiavelli ( Glencoe, Ill., 1958). "The Prince is neither a moral nor an immoral book; it is simply a technical book. In a technical book we do not seek rules of ethical conduct, of good and evil. . . . Machiavelli studied political actions in the same way as a chemist studies chemical reactions. Assuredly a chemist who prepares in his laboratory a strong poison is not responsible for its effects. . . . Machiavelli's Prince contains many dangerous and poisonous things, but he looks at them with the coolness and indifference of a scientist. He gives his political prescriptions." Ernst Cassirer, The Myth of State (New Haven/London, Yale University Press, 1966), p. 153.

31 Maritain, Jacques: “The end of machiavelianism” in Machiavelli: Cynic, Patriot, or Political Scientist ?” ed. cit. pp. 91 e ss.
32 Embora tenha sido aluno de Claude Lefort, e com ele defendido meu doutoramento na École des Hautes Études em 1978, as referências aos seus trabalhos, a partir de agora, as retiro de Dick Howard no livro The Specter of Democracy ( Columbia Univ. Press, 2002). Trata-se de análise abrangente do pensamento lefortiano. Da explanação de Howard, só uso a que interessa aos meus fins neste texto.
33 Cf. “La résurrection de Trotsky?” in Claude Lefort, Eléments d' une critique de la bureaucratie (Genebra, Droz, 1971).
34 Cf. Lefort,Claude : “Organisation et parti,” Socialisme ou Barbarie, no. 26 (1958).
35 Paris, Gallimard, 1947.
36 Dispot, Laurent. La machine a terreur. Paris: Bernard - Grasset, 1978.
37 Londres, 1940.
38 Michel Laval : Arthur Koestler, l’ Homme sans concessions [Paris, Calman Levy, 2005] citado por Pierre Raiman, “Autour de Trois Solitudes, 1 : Roubachov- Le Zéro et l ´infini, no Site Autour de la Liberté : http://autourdelaliberte.blogspot.com/ Os fatos são narrados por Walter Krivitsky, general que fugiu em 1937 para os EUA, onde provavelmente foi assassinado em 1941 : “Sloutsky o persuadira que os bolcheviques têm o dever de submeter suas idéias e vontade à vontade do partido (...) ou que seria preciso permanecer no partido, mesmo até a morte, a desonra, a morte desonrosa, se necessário para consolidar a potência dos sovietes”. (J´ étais l´ agent de Staline [Paris, Champ Libre, 1979] citado por Raiman).
39 Sigo o trabalho de Dominique Colas, “Lénine et la dictature de parti unique” in Maurice Duverger (Ed.) Dictatures et Légitimité (Paris, PUF, 1982), pp. 309 e ss. Uso também a sua indicação das obras de Lénine em francês : Oeuvres en 47 volumes (Paris, Editions Sociales, 1959. No caso dos fuzilamentos e deportações citados, o documento encontra-se na p. 108, do Tomo 44.
40 Oeuvres, Tomo 36, p. 504.
41 Oeuvres, T. 44, pp. 149 e 509.
42 Oeuvres, T. 30, p. 495. Tchekista, de Tcheka, criada para contrabalançar o poder do Comissariado do Povo para Assuntos Internos. Durante toda a guerra civil as duas organizações coexistiram, de maneira autônoma, como rivais. Lenine sugeriu a criação de um outro orgão para controle e retribuição, o Rabkrin (Controle do Povo), para controlar a elite bolchevista, a Tcheka e o Comissariado para os Assuntos Internos. Cf. Военная литература : Исследования : Suvorov V. Inside soviet.....in [militera.lib.ru/research/suvorov8]
43 Tomo 33, p. 365.
44 Tomo 28, p. 244.
45 Tomo 26, p. 142.
46 Colas, D. op. cit. p. 314.
47 Tomo 26, p. 241.
48 Tomo 28, pp. 53, 75, 285.
49 Tomo 27, p. 243.
50 Tomo 27, p. 278.
51 Tomo 27, p. 279.
52 Uma análise percuciente desse imaginário encontra-se em Heller, M. : La machine et les rouages: la formation de l ´homme soviétique (Paris, Calman Levy, 1985).
53 Tomo 19, p. 437.

54 A temática vem da crítica romântica e idealista às luzes. Lenine pensa contra o idealismo e o romantismo, e assume o modelo da máquina recusado pelos pensadores europeus na virada do século 18 para o 19 . O jovem Hegel, crítico da concepção mecânica de Fichte sobre o Estado, pensa que “a liberdade humana pode ser compatível com a natureza mas não com o Estado. (...) uma idéia de máquina seria algo profundamente contraditório : é rejeitada por tal razão a idéia de um Estado, porque Hegel parte do pressuposto de que o Estado é ´algo mecânico´. A comparação do Estado à máquina desumana e a oposição entre máquina e organismo livre, é um lugar comum da época (...) como a físíc*a, por seu modelo mecanicista e determinista afasta o homem do mundo, também o Estado, por seu mecanicismo determinista afasta o homem de si mesmo. Como a física, que divide o mundo com seus procedimento quantitativo, o Estado divide a humanidade reduzindo os indivíduos à condição de engrenagem, constrangidos a desempenhar num contexto de ausência de liberdade o papel limitado que lhes é atribuido. Estado e liberdade são incompatíveis. (...) O Estado deve desaparecer”. Panagiotis Thanassas (Universidade Aristóteles de Tessalônica) : “Mythologie de la raison. Un manifeste hégélien de jeunesse” in Methodos, savoirs et textes. 5 (2005), La subjectivité, no site http://methodos.revues.org/document341.html O que indica Thanassas foi efetivado por mim em Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo (SP, Ed. Unesp, 1997, 1a. ed. 1981). O contexto do pensamento russo sobre o Estado, com base no idealismo alemão, pode ser discutido a partir do livro Hegel en Russie de Planty- Bonjour (La Haye, Martinus Nijhoff, 1978).

55 Lenine, Oeuvres cit. tomo 19, p. 528.
56 Tomo 44, p. 456.
57 Trato dessa temática em Silêncio e Ruído. A sátira em Denis Diderot (Campinas, Ed. Unicamp, 1997).
58 Jean- Jacques Rousseau Dictionnaire de musique (Paris, Pléiade, Volume V), pp. 885.

59 Kant, I : Que significa orientar-se no pensamento? Trad. Artur Morão, in www. lusosofia. net. Existe uma preocupação perene, na história da filosofia moderna, desde Kant até os nossos dias, com o famoso Rasönnieren, um jeito tortuoso e medíocre de arrazoar, que serve para fugir da forma racional em sentido estrito. Trata-se das “boas desculpas” ou da lógica que finge ignorar erros graves nas teorias ou práticas do grupo ao qual o enunciador pertence. Trata-se, nesses casos, de pura e simples mentira disfarçada de formas aparentemente racionais. Analiso o assunto no texto “Mentira e Razão de Estado” (aula magna na Escola Superior da Procuradoria Geral de São Paulo). O escrito pode ser lido no Blog da referida Escola.
60 Se descermos no tempo, a metáfora do relógio surge bem antes do totalitarismo. Basta recordar que o símile do Leviatã, logo nas linhas iniciais do projeto hobbesiano, é o relógio. Não por acaso, os indivíduos perdem a liberdade e o direito de manifestar em público o seu pensamento, pois tal é a prerrogativa e o monopólio do soberano. Se é difícil aceitar que Hobbes seja um precursor do Estado totalitário, é preciso que se recorde o fascínio exercido por ele sobre o pensamento que racionalizou os mandos de Hitler, Stalin, Mussolini. O exemplo de Carl Schmitt é um entre vários, de jurista obsecado pela visão de Hobbes sobre o espaço público, as individualidades, a soberania. Cf. Solon, Ari Marcelo : Teoria da Soberania como Problema da Norma Jurídica e da Decisão (Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Ed. 1997), sobretudo página 80 e seguintes. A polêmica de Schmitt contra a tecnologia política, cujos frutos encontram-se no Estado moderno, se inspira em Hobbes e se dirige contra ele. Há uma história a ser determinada, no trato dos românticos tardios alemães, como Tönnies (estudioso, crítico e editor de Hobbes) e Carl Schmitt.
61 Kölnische Zeitung, número 179, citado por Merleau Ponty.
62 Citado por Ari Marcelo Solon, op. cit. p. 81.
63 Pindaro, Odes Píticas 8. 95-96. Trato do assunto em meu artigo “A razão Sonhadora”, editado em O Caldeirão de Medéia (SP, Ed. Perspectiva, 2002). in Sens et Non Sens (Paris, Nagel, 1966)
64 p. 212.
65 São Paulo, Alfa Ômega Ed. 1978, 2a ed.
66 p. 366. Citado por Sérgio Joachim Rückert : Persuasão e Ordem. A escola de quadros do Partido Comunista do Brasil na Década de 50. Tese de Mestrado apresentada à Unicamp em 1987, sob minha orientação. Infelizmente o autor faleceu meses após a defesa da tese, não se conseguiu publicar em livro os resultados de sua pesquisa. Todas as citações sobre o Partido Comunista no Brasil, aqui consignadas, são extraídas daquele escrito, salvo indicação em contrário.
67 Carta de Albert Burgh a Spinoza, 11 de setembro de 1675. Cf. Claudin, Fernando : La crisis del movimiento comunista da la Komintern al Kominforn, no capítulo “El apogeo del stalinismo”. (El Ruedo Ibérico, 1970).
68 Para a política soviética em termos internacionais na época, cf. William Waack “Conferências de Yalta e Potsdam (1945)” in Magnoli, Demétrio (Org.) História da Paz (São Paulo, Ed. Contexto, 2008), pp. 269 e ss. O que os norte-americanos não “entenderam imediatamente é que Potsdam criou claras zonas de influência embora Truman aceitasse, até de bom grado, que uma parte da Europa se tornaria ´eslava´ por um bom tempo. Curiosamente, num dos últimos diálogos travados em Potsdam” os mandatários norte-americanos “perguntaram ao chefe do Kremlin se uma linha que dividisse a Europa em duas grandes metades seria traçada do Báltico ao Adriático e Stalin respondeu que sim.” Waack, p. 294.

69 ) Arquivos Presidenciais, f. 3, inv 24, dossier 427, f.13-18. Texto publicado em Istocnik (1993), p. 23-25. As notas entre parêntesis são de Nicolas Werth . Na internet, o documento foi publicado no site do Instituto de História do Tempo presente (IHTP), do CNRS. http://www.ihtp.cnrs.fr/spip.php?rubrique56?lang=fr

70) Raison d´ État et pensée politique à l ´époque de Richelieu (Paris, Albin Michel, 2000, 1ª edição 1966), pp. 166 e seguintes.

71)Thuau, op. cit. p. 166.

72 ”I put for a general inclination of all mankind a perpetual and restless desire of power after power, that ceaseth only in death. And the cause of this is not always that a man hopes for a more intensive delight than he has already attained to, or that he cannot be content with a moderate power, but because he cannot assure the power and means to live well, which he hath present, without the acquisition of more. And from hence it is that kings, whose power is greatest, turn their endeavours to the assuring it at home by laws, or abroad by wars: and when that is done, there succeedeth a new desire; in some, of fame from new conquest; in others, of ease and sensual pleasure; in others, of admiration, or being flattered for excellence in some art or other ability of the mind. Competition of riches, honour, command, or other power inclineth to contention, enmity, and war, because the way of one competitor to the attaining of his desire is to kill, subdue, supplant, or repel the other. Particularly, competition of praise inclineth to a reverence of antiquity. For men contend with the living, not with the dead; to these ascribing more than due, that they may obscure the glory of the other.” Leviathan, capítulo 11 in eBooks@Adelaide 2007 [http://ebooks.adelaide.edu.au/h/hobbes/thomas/h68l/chapter11.html.]

73) Cf. Henri de Rohan: De l ´interêt des princes et des Etats de la chrétienté, Lazzeri, Christian Editor (Paris, PUF, 1995), p. 161: “Le prince se peut tromper, son conseil peut être corrompu, mais l´ interêt seul ne peut jamais manquer. Selon qu ´il est bien ou mal entendu, il fait vivre ou mourir les Etats”. O tema do interesse, como assinala Lazzeri nas notas ao livro de Rohan, foi desenvolvido por Botero no Della Ragion di Stato. Para Botero “razão de Estado” é idêntica à razão de interesse. Lazzeri cita outros autores que defendem posições semelhantes, como é o caso de Frachetta e F. Bonaventura.

74) Os autores do verbete ( Diderot e Jaucourt) examinam a idéia no sentido filosófico, musical, médico, etc. E terminam com a noção de sistema em finanças, com o exemplo de Law. “on a donné très -bien ce nom vers l' an 1720 au projet connu & exécuté par le sieur Law écossois, de mettre dans ce royaume du papier & des billets de banque pour y circuler, & représenter l'argent monnoyé, comme en Angleterre & en Hollande. J'ai vu plusieurs éloges de ce grand projet, & quelques -uns faits avec éloquence. C' étoit, dit M. Dutot, un édifice construit par un habile architecte, mais dont les fondemens n' avoient été faits que pour porter trois étages. Sa beauté surpassa même les espérances que l' on en avoit conçues, puisqu'il fit mépriser pendant quelques mois l' or & l'argent, espece de miracle que la postérité ne croira peut- être pas. Cependant, sans égard au bien que la postérité pouvoit retirer de cette idée, une puissante cabale formée contre l' architecte, eut assez de crédit pour engager le gouvernement à surcharger ou à élever cet édifice jusqu'à sept étages, ensorte que les fondemens ne pouvant supporter cette surcharge, ils s' écroulerent, & l' édifice tomba de fond en comble. Voilà bien de l' esprit en pure perte. Je veux croire cependant que le sieur Law en formant une banque, se proposoit d' augmenter utilement la circulation publique, de faciliter le commerce, & de simplifier la perception des revenus du roi ; mais comment pouvoit -il se flatter dans la disette la plus générale, d' établir une banque de crédit qui eût la confiance de la nation & des étrangers ? Si l 'on parut pendant quelques mois donner la préférence des billets de sa banque à l'argent réel, c' étoit dans la vue de les fondre, & d' en tirer du profit dès qu' ils auroient haussé davantage par le délire de la nation. Enfin, les remboursemens du sieur Law n' ont enrichi que des familles nouvelles en ruinant les anciennes, & les débris de son systême n' ont produit dans l' état qu' une compagnie exclusive de commerce, dont je laisse à de plus habiles que moi à calculer les avantages rélativement au bien public. (D. J.) Encyclopédie, Ed. CD Rond, Macintosh.

75) “Praeterea ostendere forsan voluit, quantum libera multitudo cavere debet, ne salutem suam uni absolute credat, qui nisi vanus sit et omnibus se posse placere existimet, quotidie insidias timere debet ; atque adeo sibi potius cavere et multitudini contra insidiari magis, quam consulere cogitur. Talvez [Maquiavel] tenha querido mostrar que a multidão livre deve, a todo preço, se precaver para não confiar sua salvação a um só homem. Pois este, a menos que seja muito vaidoso e imagine ser possível agradar a todos seus dirigidos, temerá ininterruptas insídias. Ele será obrigado de se manter alerta e, ele mesmo, insidiar a multidão —em vez de cuidar, como seria seu dever, dos interesses gerais”. Tratado Político, cap. 5, 7 (Hyper Spinoza, http://hyperspinoza.caute.lautre.net). Cf. Lefort, Claude: Le travail de l ´oeuvre, Machiavel (Paris, Gallimard Tel, 1986), pp. 100-1001.

76) Apesar da qualificação de “sistemático” dada a Spinoza, ocorre o elogio dos políticos, contra quem segue modelos da humanidade : Affectus, quibus conflictamur, concipiunt philosophi veluti vitia, in quae homines sua culpa labuntur; quos propterea ridere, flere, carpere vel (qui sanctiores videri volunt) detestari solent. Sic ergo se rem divinam facere, et sapientiae culmen attingere credunt, quando humanam naturam, quae nullibi est, multis modis laudare et eam, quae revera est, dictis lacessere norunt. Homines namque non ut sunt, sed ut eosdem esse vellent, concipiunt; unde factum est, ut plerumque pro e t h i c a satyram scripserint, et ut nunquam p o l i t i c a m conceperint, quae possit ad usum revocari; sed quae pro chimaera haberetur, vel quae in Utopia vel in illo poëtarum aureo saeculo, ubi scilicet minime necesse erat, institui potuisset. Cum igitur omnium scientiarum, quae usum habent, tum maxime p o l i t i c e s t h e o r i a ab ipsius p r a x i discrepare creditur, et regendae reipublicae nulli minus idonei aestimantur, quam theoretici seu philosophi”. É clara a alusão à tese platônica do rei filósofo. A cautela manda não atribuir o juízo spinozano a Platão, mas ao neo platonismo.

77) Para esta passagem, cf. Burke, Peter: A Fabricação do Rei. A Construção da Imagem Pública de Luís XIV (RJ, Jorge Zahar Editor, 1994). Análises várias sobre o tema são expostas no livro coletivo publicado pela Société d´ Étude du XVIIe siècle : L´ Image du Souverain dans les Lettres Françaises, des Guerres de Religion a la Revocation de l ´ Édit de Nantes, Colloque de Strasbourg, 25-27 mai 1983. (Paris, Klincksieck, 1985). No volume, cf. sobretudo Jacques Bailbé : “L´ image d´ Henry IV dans l´ oeuvre d´ Agrippa d´ Aubigné” (pp. 27-40) .

78) Após a batalha de Actium (31 AC), na qual venceu Marco Antonio, Otávio definiu uma paz na república romana, que estava combalida. Com o poder sobre a cidade de Roma, o Senado se entrega ao vencedor. Em 27 AC os senadores lhe dão o título de Augusto. Neste dia tem começo o império. Otávio acumula o título de Princeps senatus e as mais importantes magistraturas militares, civis, religiosas. Ele instala as prefeituras encarregadas do abastecimento, segurança, da vida civil. Ele nomeia os magistrados superiores e os candidatos às eleições. Para conseguir adesão ao novo regime, o príncipe inicia a propaganda tendo em vista a sua legitimidade. Otávio é dito Pai da Pátria por escritores e artistas. O mês sextilis foi rebatizado como Augustus, enquanto o mês quinctilis passou a ser Julius, em honra de Júlio César. O novo regime, o império, mistura formas republicanas e monárquicas e nele restam como focos do poder o Senado e o povo romano e o príncipe . Para o problema, cf. Yavetz, Zvi: La plèbe et le prince. Foule et politique sous le haut empire romain (Paris, Maspero, 1984).

79) Uma variante do princípio “maquiavélico” de Luís XI, “Quem não sabe dissimular, não sabe governar”. O elo entre Luís XI e Richelieu é indicado desde pelo menos Damiens de Gomicourt (tradutor do jurista Blackstone para o francês) no livro Mélanges historiques et Critiques contenant diverses pieces relatives à l' Histoire de France (Paris, De Hansy le Jeune Ed. 1768). Richelieu “este ministro tão grande político quanto Luís XI, mais empreendedor e mais conseqüente do que ele, executou sob um rei fraco o projeto que o rei mais decidido de todos os reis da monarquia, só tinha conseguido esboçar. É certo que para torná-lo efetivo, foi preciso os mesmos princípios de Luís XI, arrancar dos grandes os meios de fazer valer na corte as pretensões de independência que eles defendiam, e para isto foi preciso privá-los de recursos infinitos que a posse das dignidades lhes conferia sem cessar, para conseguir partidários”. Citado por Adrianna Bakos em Images of kingship in Early Modern France, Louis XI in Political Thought, 1560-1789. (London, Routledge, 1997), p. 210. Pierre Bayle, crítico de Luís XIV salienta os defeitos e qualidades de Luís XI, sobretudo no Dictionnaire Historique et critique.

80) “ libertas scelerum est quae regna invisa tuetur sublatusque modus gladiis. facere omnia saeve non inpune licet, nisi cum facis.exeata aula qui volit esse pius. virtus et summa potestas non coeunt; semper metuet quem saeva pudebunt” “Para o poder sem lei a melhor defesa é o crime,* atos cruéis encontram segurança apenas ao serem feitos. Quem deseja ser piedoso deixe a sala do trono; virtude e sumo poder não se juntam, o poderoso vive com medo se diminui sua crueza” (Bellum civile sive Pharsalia in Bibliotheca Augustana. http://www.hs-augsburg.de]



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Um comentário:

Roberto Romano disse...

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