domingo, 11 de maio de 2008

RAISON D´ÉTAT

Roberto Romano


Maquiavel se movimenta na vida efetiva e na História, imagem desta vida. Ele é um escritor cuja superioridade sobre os demais de seu campo é inegável. Ao contrário dos autores que seguem o paradigma ideal para indicar tarefas aos governantes e ao Estado, ele pensa segundo princípios diferentes, pois julga mais útil seguir a efetividade das coisas em vez de um modelo imaginado. Ela nada diz sobre repúblicas nunca vistas na ordem histórica. Se fossem seguidos semelhantes modelos imaginários, o governante aprenderia mais a arte de perder o poder do que o conservar. Pois um homem de bem, imerso na multidão dos que não são bons, perece necessariamente.

O juízo de Fichte sobre Maquiavel, parafraseado acima, é lembrança direta do Tratado Político redigido por Spinoza. “Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais, detestá-los. Julgam assimagir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda a espécie de louvores a uma natureza humana que existe em parte alguma e atacando através dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem. Daí, por consequência, que quase todos, em vez de uma ética, tenham escrito uma sátira, e não tenham relativamente à política concepções que possam ser postas em prática, devendo a política, tal como a concebem, ser tomada por quimera, ou pertencente ao dominio da Utopia ou da Idade do Ouro, ou seja, a um tempo em que nenhuma instituição era necessária. Assim, entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria passa por diferir mais da prática, e não há homens que se pense menos adequados para governar o Estado do que os teóricos, os filósofos. (TP, I).

Não se deve julgar Maquiavel, afirma Fichte, usando conceitos que ele desconhece, numa lingua que ele não fala. O pior é quando são citados os seus escritos como se formassem uma espécie de tratado de direito constitucional contemporâneo, colocando-o, séculos depois de sua morte, numa escola onde, ainda vivo, ele não teve condições de frequentar. Fichte refere-se, neste ponto, à confraria de má fama dos pensadores postos na rubrica infame: raison d´État.

Com certeza O Príncipe, escreve o idealista alemão do século 19, foi ideado com o desejo de introduzir alguma estabilidade e duração nas turbulentas repúblicas italianas. Por isso, o primeiro dever do principe exige a conservação de si (Selbsterhaltung) e sua virtude suprema e única é o espírito de consequência. Maquiavel não diz, alerta Fichte, “seja um usurpador, ou tome o poder por meios canalhas. A sua primeira obrigação é refletir se a tomada do poder pode ser bem sucedida. Ele diz ao governante em nome dos governados: ´se você é um usurpador, ou se você se apossou do poder usando meios canalhas, é preferível para nós conservar o seu poder, em vez de nos submeter a um novo usurpador ou esperar que uma nova canalha (Buben) lhe suceda e suscite novos tumultos ou canalhices novas. Devemos desejar que você seja mantido, mas isto só pode ocorrer de tal ou tal maneira´”. ( )

Não admira o apreço de Fichte ao Florentino. Entusiasta da Revolução Francêsa e admirador, naquele movimento, do partido mais radical, o jacobino, o filósofo enfrenta a difícil tarefa de justificar os atos revolucionários (execução do rei, Terror, etc) e a manutenção do Estado democrático francês. Como pensa num instante em que a Revolução entra em refluxo, suas esperanças são destruídas e ele passa a se interessar pela nação alemã, fragmentada como a Itália do tempo maquiavélico em inúmeros pequenos Estados (a chamada Kleinstaatarei). A história do pensamento político europeu, após Napoleão, é a crônica das lutas pelo poder de Estado, as tentativas de impôr limites aos governos, as revoluções liberais e socialistas cujos fracassos levam ao reforço do Executivo em detrimento das outras faces estatais. No final desse período, após as aventuras de Napoleão 3 (narradas com lucidez extrema por Karl Marx, no 18 Brumário de Luis Bonaparte), surge a figura impar de Bismarck, a personificação primorosa da Raison d´État. Antes de analisar o peso do Chanceler de Ferro nas representações

Razão de Estado é termo nascido no Renascimento tardio. Em nossos dias a palavra significa o recurso da força ou instrumento excepcional a serviço do poder político que busca conservar o mando ou garantir a ordem social. De Giovanni Botero (1589) até Scipione Chiaramonti (1635), o termo adquire uma polissemia estonteante, mas sempre com a permanência da idéia central de conservação do poder e disciplina da coletividade humana concreta. O ápice do prestigio usufruído pela fórmula encontra-se no Estado absoluto, posto acima e fora das instituições comuns da sociedade e mesmo dos procedimentos jurídicos tradicionais, seja no setor do direito romano modificado pela Igreja, seja no campo do direito natural antigo ou moderno. Como a própria expressão indica, o poder absoluto não possui nenhuma amarra que o prenda aos ritos religiosos e jurídicos anteriores ao seu surgimento.

A doutrina do absolutismo encontrou muitos representantes na Europa moderna. O modelo mais perfeito, no entanto, foi ideado por James I, para quem o soberano não deve satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. Esta tese foi combatida desde longa data na Inglaterra. No tempo de Bacon e de Hobbes, Edward Coke defendeu a independência dos juizes contra a Igreja Anglicana e contra James I. Ao replicar ao rei que defendia suas prerrogativas contra “os advogados”, Coke afirma que o soberano “não foi educado no conhecimento das leis da Inglaterra”. James I, mais do que ofendido, afirmou que se Coke tivesse razão, ele deveria estar sob a lei, “ traição evidente”. E o governante cita Bracton : “Rex non debet esse sub homine sed apud Deo et lege”. O autor do Basilicon Doron e do tratado The True Law of Free Monarchies or the Mutual Duty Betwist aa Free King and His Subjects, escrevera que “um bom rei enquadra todas as suas ações segundo a lei; mas ele prende-se a ela só pela sua boa vontade e para dar exemplo aos súditos. Ele é o senhor sobre todas as pessoas, tem poder de vida e morte. Embora um principe justo não tire a vida de nenhum súdito sem uma lei clara, a mesma lei com a qual ele tira a vida é feita por ele mesmo ou por seus predecessores”. Além de pai do povo, o rei, segundo Jaime, seria o professor universal, pois os súditos são fracos e ignorantes. E assim, ele é em tudo independente do judiciário: “A ruindade de um rei nunca pode fazê-lo ser julgado pelos juízes que ele próprio ordenou”.

Na fala ao Parlamento de 1616, ele proclama que “os reis são justamente chamados deuses; pois eles exercem um modo de semelhança do Divino poder sobre a terra. Porque se forem considerados os atributos de Deus, ve-se o quanto eles concordam com a pessoa de um rei. Deus tem poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbitrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable). O mesmo poder possuem os reis. Eles fazem e desfazem seus súditos; têm poder de erguer e abaixar; de vida e morte; julga acima de todos os súditos em todos os casos e só deve prestar contas a Deus (yet accountable to none but God). Eles têm o poder de exaltar as coisas pequenas e rebaixar as altas e fazer de seus súditos como fazem os jogadores com as peças de xadres”.

Ainda em 1616 o monarca assim se dirigiu aos juízes da Star Chamber: “não usurpem a prerrogativa da Coroa. Se aparecer uma questão ligada à minha prerrogativa ou mistério do Estado, trato que não lhes diz respeito, consultem o rei ou o seu conselho, ou ambos; porque tais matérias são transcendentes. As prerrogativas absolutas da Coroa não é assunto para a lingua de um advogado, nem é legal disputar sobre elas”. Coke em companhia de outros juristas foi preso na Torre de Londres por nove meses, devido à resistência à referidas prerrogativas. Não é por acaso que James I evocou Bracton para afiançar o seu poder. Mas dele fez uma leitura unilateral ao acentuar o seu mando em trato com o ser divino. ( )

Bracton ( ), em vez de garantir um poder sobrenatural absoluto do rei, recolhe o debate sobre as bases pelas quais os dirigidos devem e podem obedecer aos reis e magistrados. No De legibus et consuetudinibus Angliae Bracton vai ao ponto: “o poder do rei refere-se à geração da lei e não à injúria.” ( ) Gerador da Lei, o rei define-se como o seu intérprete maior. “O rei é filho da lei, mas torna-se pai da lei” e sua legitimidade requer a base teológica. “O rei”, afirma Bracton, “não tem outro poder, desde que ele é o vigário de Deus e seu ministro na terra, exceto isto apenas, que ele deriva da lei”.

E mais: “o próprio rei deve estar, não sob o homem, mas sob Deus e sob a lei, porque a lei faz o rei…Porque não existe rei onde domina a vontade arbitrária e não a lei”. Se o círculo do rei como maior et minor se ipso se quebrar e se desaparecer a interpretação correta da lei, o governante tomba na situação de puro tirano. Em termos teológicos Bracton chega à solução : o rei é semelhante a Deus (sobre a lei) quando julga, legisla e interpreta a lei. Ele é sob a lei porque a ela se submete. O nexo entre rei e Deus prolonga o mandamento de que Nullum tempus currit contra regem (o tempo não corre contra o rei), o que implica no enunciado de que Longa possessio parit ius (a longa possessão gera o direito). Tudo o que se liga aos bona publica é integrado no registro a-temporal e são res quasi sacrae. Na teologia jurídica os Bona patrimonialia Christi et fisci comparantur (pode-se comparar os bens patrimoniais do Cristo e do fisco). Cristo e Fisco tornam-se comparáveis quanto à inalienabilidade e à prescrição. O sacratissimus fiscus torna-se alma do Estado. Como Cristo, Fiscus ubique praesens.

Vimos acima Jaime I afirmar o “mistério do Estado”. O segredo, no entanto, não pode ser atribuído apenas à instituição estatal. Os momentos decisivos do Estado moderno, a sua inauguração enquanto poder secular e sem a tutela religiosa, se inicia com a necessidade urgente de saber sobre o que e sobre quem reinava o principe.


A razão de Estado afasta os conceitos teológico-politicos e assume a linguagem do interesse de Estado. Neste processo, juristas e teólogos como Botero, em resposta ao desafios de Maquiavel, definem o uso legítimo dos poderes tendo como alvo manter e expandir os bens públicos. ( ) A nova razão de Estado incorpora o segredo para garantir o gabinete real, lugar onde não são admitidos os homens comuns.

Do gabinete onde se oculta, o príncipe nota o que para a maioria dos cidadãos passa desapercebido. Este ideal do governo que tudo enxerga, tudo ouve, tudo alcança, é a base histórica dos atuais serviços de informação. O governante acumula segredos e deseja os súditos sejam exposto a uma luz perene. Desse modo se estabelece a heterogeneidade entre governados e dirigentes. Na aurora dos tempos modernos “a verdade do Estado é mentira para o súdito. Não existe mais espaço político homogêneo da verdade; o adágio é invertido: não mais fiat veritas et pereat mundus, mas fiat mundus et pereat veritas. As artes de governar acompanham e ampliam um movimento político profundo, o da ruptura radical (…) que separa o soberano dos governados. O lugar do segredo como instituição política só é inteligível no horizonte desenhado por esta ruptura (…) à medida que se constitui o poder moderno. Segredo encontra sua origem no verbo latino secernere, que significa separar, apartar”. ( ).

A palavra razão de Estado surge na Itália durante a segunda metade do século 16. No Del reggimento di Firenze, Francesco Guicciardini por volta de 1523, fala numa “ragione degli Stati”, designando a razão “pouco cristã e pouco humana” do mundo político. Um interlocutor do diálogo, Bernardo, afirma que se em questões de governo surge um mal, é dificil saná-lo sem medicação forte, sem crueldade. Impossível governar com os preceitos evangélicos, as normas do Sermão da Montanha.

Ragion di Stato aparece na Orazione a Carlo V (1547) de Giovanni Della Casa dirigida ao imperaror espanhol para pedir a restituição da cidade de Piacenza ao duque Ottavio Farnese. Della Casa distingue a voce barbara e fiera da ragion di Stato da ragion civil e argumenta que não podem existir duas práticas opostas, o útil distinto do honesto, a moral separada da política. Duas razões diversas são alegadas, mas a primeira, a razão de Estado “opera com a fraude e a violência”. Em todos estes autores, a crítica à razão de Estado é ligada ao horror pela soberania laica do Estado contrária à moral religiosa, em especial a católica, a qual também estava imersa em questões de Estado, com os territórios pontifícios.

Razão de Estado, após o século 16, passa a recolher o tema da conservação política. Vejamos numa rápida inspeção, os principais autores que dissertaram sobre o tema. O primeiro autor relevante é Giovanni Botero. O livro Della Ragione di Stato (1589), surge como a primeira elaboração teórica do projeto de conservação do Estado.”Estado é um domínio firme sobre os povos; e Razão de Estado é notícia dos meios aptos a fundar, conservar, e ampliar um dominio assim feito. É verdade que, embora absolutamente falando a razão de Estado liga-se às três partes mencionadas, parece no entanto, que abrace mais estreitamente a conservação do que as outras; e além disso ligue-se mais à ampliação do que à fundação”.

Ragion di Stato é a busca dos instrumentos idôneos para conservar o que se realizou, as situações de poder político adquirido. Trata-se de “manter firmemente, quando cresceram, sustentá-las de tal modo que não se degradem e não se precipitem, é empreendimento de um valor singular, e quase superhumano”. A prudência política é o centro da reflexão de Botero. Trata-se de uma forma de ars practica, no sentido aristotélico, a capacidade de usar o conhecimento dos fatos e dos saberes diversos para os fins da ação política. O governo deve contar com notícias aprofundadas das coisas e da prática. Com tais notícias acumuladas, são estabelecidos códigos de comportamento. O governante identifica problemas que exigem a sua intervenção para fins técnicos ou disciplinares aos governados. Com as noticias e os comportamentos, os governam ganham tempo na ação, garantindo a conservação do coletivo. As práticas políticas prudenciais abreviam o tempo, trazendo o futuro para o presente. O dominio do tempo regula-se segundo a prudência, na fórmula de Botero, “non fare novità”. O governante deve reduzir ao mínimo as situações de excepcionalidade, definindo padrões habituais de intervenção.

Entre as técnicas de governo, a Razão de Estado privilegia o tempo oportuno. O poder deve usar a dissimulação para isolar o objeto a ser tratado dos demais a ele relacionados. Com semelhantes estratagemas, o governante ganha tempo e pode acelerar ou retardar atos, ficando menos sujeito às pressões cronológicas, o que permite a previsão que lhe garante a iniciativa em situações de conflitos ou dificuldades econômicas.

A razão de Estado procura, no interior do corpo social e político, os setores que mais ganham ou perdem com a conservação do poder. Aos primeiros, ela arrebanha e aos segundos, procura afastar. Com isto, define o consenso que lhe fornece a legitimação. Claro que, neste ponto, o governante deverá diminuir o poder dos muito fortes e promover os “mezani”, os que possuem interesses médianos, que não são muito ricos ou muiro pobres. Os muito pobres são “pericolosi alla quiete pubblica” pois não têm interesse algum para salvar : “deve dunque il Re assicurarsi di costoro, il che farà in due maniere, o cacciandoli dal suo Stato, o interessandoli nella quiete di esso; ... s'interesseranno con l'obligarli a far qualche cosa, cioè ad attendere, o all'agricoltura, o all'arti; o ad altro essercizio, col cui emolumento possano mantenersi”. Afinal, “ragion di Stato è poco altro, che ragion di interesse”.

O governo da razão de Estado busca organizar a cidade na qual são reconhecidas as razões de interesse e os artifícios que permitem a obediência civil.
Contra Botero, Fabio Albergati, no livro La republica regia (1627), recusa a ragione e l'interesse do Estado, em prol das razões naturais e morais que sustentariam o poder político: “o saber operar por razão de Estado absolutamente, o que ocorre com todos os Estados e repúblicas, é obra do legislador universal (…) prudente civil que, conhecendo toda forma de governo sabe conformar a forma ao mode de operação. Operar por razão particularizada deste ou daquele Estado, é próprio do legislador desta ou daquela república. Razão de Estado absoluta é a regra, pela qual o legslador absoluto opera em cada Estado segundo a sua forma”.

Ragion di Stato, instrumento de governo usado por todos os governantes, deve unir-se à prudência civil que garante o elo (explicitado por Aristóteles) entre o que é honesto e o que é útil. Embora de fundamento católico, a base da doutrina de Albergati não é transcendente : “as razões do político modernos devem ser refutadas não com termos da fé, mas com a razão natural”. Mesmo Albergati, no entanto, admite a prática da dissimulação pelo governante, o que apresenta problemas para a sua idéia do honesto em política.

Federico Bonaventura, no Della Ragion di Stato et della prudenza politica (1623), procura demonstrar, baseando-se em Aristóteles e na escolástica, que a ragion di Stato pertence à virtude moral e à prudência civil. Seu papel seria especialmente consultivo : “hábito prático de bem consultar e resolver segundo a reta razão as coisas mais importantes da república”. Esta capacidade consultiva não se vincula às obrigações das leis ou à administração impessoal da justiça ; nos casos particulares que tratam do que é justo mas não escrito e nas questões duvidosas , a ragion di Stato “muda e altera sempre, e corrige segundo a necessidade”. A razão de Estado não restringe a lei, mas a interpreta ou a dilata , logo ela não vai contra a lei, “mas está sobre a lei”. Ragion di Stato é a disciplina política necessária a todos os governantes para realizar a saúde e a manutenção do Estado. Para tal fim, ela utiliza as insidie lecite contra os inimigos e artimanhas contra os cidadãos, para eccitare qualche virtuoso affetto.

A razão de Estado, em suma, é a mentira do poder. O resto que se diga sobre ela constitui apenas variação da pseudologia.

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